Registros de uma história

Registros de uma história

TUCA reúne em seu acervo documentos de uma trajetória de arte e engajamento

Wilker Sousa

Ao longo de 43 anos, o TUCA – Teatro da Universidade Católica de São Paulo – tornou-se cenário de acontecimentos marcantes para a história da arte e política do país. A partir de sua inauguração, em setembro de 1965, com o espetáculo Morte e vida severina, expoentes da cultura, da academia e da política passaram pelo palco do teatro. Chico Buarque, Caetano Veloso, Nara Leão e Elis Regina ali realizaram shows. Reuniões da UNE (União Nacional dos Estudantes) e do SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) tiveram importante papel de resistência frente ao regime militar e fizeram do TUCA um polo de discussão da intelectualidade brasileira da época. Registros dessa história estão preservados e reunidos pelo CDM TUCA (Centro de Documentação e Memória do teatro TUCA). Criado em 2006, o CDM reúne periódicos, documentos, fotografias, cartazes, plantas arquitetônicas e gravações em áudio – armazenados em 220 caixas-arquivo e divididos por dossiês temáticos. “A PUC serviu de casa para os protestos nas décadas de 60 e 70. O TUCA foi se tornando um espaço de liberdade. Considerando essas questões importantes, nós achávamos que tínhamos que preservar não só o prédio mas também toda a documentação que tinha as pegadas dessa história”, comenta Ana Salles Mariano, diretora do CDM TUCA.

Anteriormente, os documentos estavam soltos, não catalogados. A ideia de criar o centro de documentação tem como objetivo organizá-los e disponibilizá-los adequadamente para consulta pública. “Os documentos tinham grampos de ferro, estavam em caixas não apropriadas. Então, foram feitos o rearranjo e a limpeza de todo esse material”, afirma Ana. A responsável pela organização do acervo é a cientista social Luiza Helena Novaes.

O acesso ao acervo, porém, não ocorre da forma ideal para um centro de memória. Luiza recebe os pesquisadores na mesma sala em que são armazenados os documentos, o que é prejudicial à conservação. A intenção é criar uma nova sala, destinada à recepção dos consulentes. Para tal, o CDM TUCA criou um projeto de captação de recursos. Além da construção da nova sala, o projeto visa à aquisição de mobiliário e equipamentos adequados para o armazenamento e catalogação de todo o material. “Precisamos de estantes deslizantes, computadores para montar realmente esse centro. O que temos hoje são esses documentos já organizados de algum modo, mas ainda não estão adequadamente conservados porque falta mobiliário”, comenta Ana Salles.

Para dar sequência ao projeto e ampliar seu acervo, o TUCA conta com a doação de documentos. Pessoas que possuem materiais – sejam eles fotográficos, textuais ou audiovisuais – podem doá-los e, consequentemente, contribuir para o enriquecimento do acervo.

De Morte e vida severina ao tombamento histórico

Havia incertezas. Morte e vida severina já fora encenado em 1958 sem muito sucesso por Walmor Chagas e Cacilda Becker. Porém, a identificação com a realidade do país e a predileção por um autor nacional foram as razões que levaram o grupo de teatro universitário TUCA a escolher o texto de João Cabral de Melo Neto. Às 21 horas do dia 11 de setembro de 1965, a estreia. Uma hora depois, dez minutos de aplausos e a angústia dá lugar ao alívio. No dia seguinte, jornais publicam críticas elogiosas à peça. O auditório Tibiriçá estava inaugurado, porém, a partir daquela data, o nome torna-se outro: TUCA.

O espetáculo mobilizou estudantes e docentes de diversas disciplinas da PUC. Fauze Saadi, professor de Geografia, apresentou slides sobre a caatinga. O curso de Letras fez a análise literária do texto de João Cabral, enquanto que a faculdade de Psicologia estudou aspectos emocionais dos retirantes. A música ficou por conta de um estudante de Arquitetura da USP, o “Carioca”, apelido do jovem Chico Buarque de Holanda. Após o sucesso inicial, Morte e vida severina foi inscrito no 4º Festival Mundial de Teatro Universitário, em Nancy, na França. O dinheiro era escasso. Para viabilizar a viagem, artistas faziam shows após a encenação da peça. Elis Regina, Dorival Caymmi, Geraldo Vandré e o próprio Chico Buarque doaram seus cachês. Chico chegou a vender o “Clóvis”, seu Fusca. Levantado o dinheiro, o espetáculo vai à França e sagra-se o vencedor do festival.

Passado o sucesso de Morte e vida severina, os anos seguintes foram marcados pelos shows dos grandes nomes da MPB. Sob o olhar atento da censura, Vinicius de Moraes, Elis, Caetano, Francis Hime, Nara Leão e Chico Buarque, entre outros, apresentavam-se para uma plateia de até 1.200 pessoas – número alto para os padrões da época.     

Antes do início da temporada de shows, o repertório devia passar pelos censores. Em março de 1973, Chico, Nara Leão e MP4 fizeram cinco apresentações no TUCA.
O repertório, submetido à censura, foi aprovado; exceção feita à “Bárbara”, canção de Chico Buarque e Ruy Guerra, cuja temática gay não agradou os censores.

O incômodo à censura não se dava apenas no âmbito artístico. Ágora da PUC, o TUCA promovia debates ligados à universidade, o que afrontava os militares. Em julho de 1977, a reunião do 29º encontro anual do SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) fora proibida duas vezes – primeiramente, em Fortaleza, posteriormente, na USP. A contragosto dos militares, a PUC decidiu realizá-la. Ao final da reunião, foi aprovado documento a favor da reintegração dos cientistas cassados às suas instituições de origem. O acinte estava feito. Em 22 de setembro do mesmo ano, líderes estudantis reuniram-se nas dependências do TUCA para o 3º ENE (Encontro Nacional dos Estudantes), que fora proibido pelo governo. Na entrada do teatro, faixas reivindicavam uma Constituinte livre e o fim da ditadura. Às 21:30, bombas são atiradas contra os estudantes. Cerca de 900 policiais – comandados pelo coronel Antônio Erasmo Dias – perseguem os estudantes, que são conduzidos a bordoadas ao estacionamento da universidade. Centenas de manifestantes são levados para o batalhão Tobias de Aguiar e 37 deles são indiciados na Lei de Segurança Nacional. O episódio chocou a opinião pública.

Na década de 1980, o teatro recebeu seu mais duro golpe. Em 22 de setembro de 1984, técnicos preparavam o teatro para um show humorístico, quando estouros foram ouvidos. Rapidamente, as chamas espalham-se pelo teto e plateia. Os 90 homens do corpo de bombeiros lutam para conter o fogo, que toma todo o teatro. Após o incêndio, restaram ferros retorcidos e pedaços do teto. Apesar das suspeitas de um ato criminoso, nada foi comprovado e o inquérito ficou inconcluso.

O desafio de reconstruí-lo contou com o apoio das classes artística e estudantil. Quadros foram leiloados, músicos realizaram shows em meio aos escombros, na tentativa de arrecadar fundos para a reconstrução, que ocorreria dois anos depois, em 1986. Porém, faltavam ainda elementos básicos, como sistema elétrico e ar condicionado. Somente em 2003, a reconstrução foi concluída. Foram nove meses de obras, a fim de que fossem implementados os padrões de conforto e segurança. No dia 22 de agosto de 2003, ocorreu a reinauguração.

Em reconhecimento ao legado cultural do TUCA, em 1998, o teatro teve sua fachada principal e espaço volumétrico tombados pelo Patrimônio Histórico do Estado de São Paulo.

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