Reflexões sobre a parentalidade negra
Edição do mêsImagem restaurada pelo projeto Retratistas do Morro, coordenado por Guilherme Cunha (Foto: Afonso Pimenta)
Uma figura de cuidado parental bastante visível em nossa cultura é a da mulher negra. Com grande frequência, ela ocupa um lugar que remonta ao modelo de exploração escravista e de objetivação de corpos negros e que é o da mãe preta. Muito comum, se pensarmos no que Suely Gomes Costa chamou de “maternidade transferida”, no texto “Proteção social, maternidade transferida e lutas pela saúde reprodutiva” (2002). Transferência que se fazia inclusive relegando ao desamparo os filhos e filhas biológicos dessas mulheres que, muitas vezes, nutriam a prole de seus patrões em detrimento de sua própria. Essa realidade está retratada de forma contundente em um quadro do artista plástico piauiense Lucílio de Albuquerque (1877–1939) que faz parte do acervo do Museu de Belas Artes de Salvador: Mãe preta, de 1912. Nele, uma mulher negra amamenta um bebê branco enquanto olha melancolicamente para uma criança negra, certamente seu próprio filho, repousada em uma esteira ao lado. Muitas interpretações de cenas assim falharam ao não enxergar e ressaltar a extrema violência a que estavam submetidos mães e filhos e filhas negros nesse tipo de relação tão comum em nossa sociedade. Comum por força do modelo de exploração do trabalho escravo, que tornava tal função inerente ao papel dessas mulheres, mas que ultrapassou as fronteiras da sociedade escravista vindo habitar nosso cotidiano – tendo em vista a predominância de mulheres negras no trabalho doméstico no Brasil – e nosso imaginário – uma vez que muitas memórias afetivas trazem as figuras das mães pretas, amas de leite e iaiás. Vínculos que, embora possam ter sido mediados pelo afeto, trazem em sua gênese a relação sujeito-objeto que ainda constitui fator determinante na expressão de nosso padrão de exclusão social. Um padrão que se materializa em dados de diversas ordens estratificados por cor, raça ou etnia.
Os números da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) de 2015 mostram que, apesar de negros, negras, pardos e pardas representarem 54% da população brasileira, a participação deles no grupo dos 10% mais pobres era muito maior, chegando a 75%. Quanto à educação, a taxa de analfabetismo é maior entre os negros e negras (9,9%) do que entre os declarados brancos e brancas (4,2 %), ainda de acordo com os dados da Pnad, dessa vez do ano de 2016. O Atlas da Violência de 2019 traz dados ainda mais estarrecedores em relação a esse cenário e nos mostra que “a violência continua recaindo sobre os corpos negros em um processo iniciado com a escravidão e que chega, sem interrupção, a 2017, ano em que 75,5% das vítimas de homicídios foram indivíduos negros. Isso é o mesmo que dizer que, para cada indivíduo não negro que sofreu homicídio em 2017, aproximadamente 2,7 negros foram mortos”. O que atesta o uso da expressão “genocídio da população negra”.
Os dados referentes à perinatalidade de mulheres negras, um dos pontos de partida possíveis para o exercício da parentalidade, surgem como mais um exemplo de exclusão. Poucos estudos se dedicaram a analisar o impacto da raça/cor no padrão de assistência perinatal de mulheres negras, e uma exceção é o Nascer no Brasil, pesquisa nacional sobre parto realizada pela Escola Nacional de Saúde Pública (Fiocruz) a partir da avaliação de prontuários de 23.894 mulheres em 2011/2012, com o objetivo de observar as iniquidades nessa perspectiva. Alguns recortes da pesquisa revelam que as mulheres pretas têm maior risco de um pré-natal inadequado, são mais impedidas de ter acompanhantes durante o trabalho de parto e o parto (direito garantido pela lei 11.108 de 7 de abril de 2005) e também são as que mais peregrinam em busca de maternidade para o parto. Durante o pré-natal, as pretas também foram menos orientadas sobre o início do trabalho de parto e sobre possíveis complicações na gravidez. Observou-se menor probabilidade de cesariana e também de intervenções dolorosas no parto vaginal, como a episiotomia e uso de ocitocina, mas, em comparação com as brancas, as mulheres pretas receberam menos anestesia local quando a episiotomia foi realizada.
No entanto, os dados que escancaram os números da violência contra negros e negras não representam uma patologia ou conduta desviante de um grupo específico de indivíduos. Quando falamos de racismo no Brasil, não se pode apontar um sujeito racista, uma persona em que se condensaria toda a violência a ser combatida. Essa é a perspectiva que considera o racismo como algo estrutural, que o compreende como algo que permeia as relações e é elemento formador de todas as estruturas, incluindo as institucionais. Segundo Silvio de Almeida, no livro O que é racismo estrutural? (2018), pensar no racismo como um fenômeno estrutural não significa pensar em um “tipo” de racismo, mas sim concebê-lo como um fenômeno que “fornece o sentido, a lógica e a tecnologia para as formas de desigualdade e violência que moldam a vida social contemporânea”. Ou seja, o pleno exercício da parentalidade por pessoas negras tem obstáculos concretos que aprofundam sua vulnerabilidade.
Com base nessa concepção, a parentalidade negra pode também ser compreendida como um campo de disputa narrativa e simbólica. Uma disputa que se entranha no cotidiano à medida que o cuidado precisa ser modulado a partir da percepção da violência que torna os corpos negros as maiores vítimas, da ausência crônica em espaços privilegiados e em nosso currículo escolar, por exemplo, e da representação objetificada desses indivíduos. O cuidado parental nessas condições se dá a partir de projetos pessoais ou coletivos com vistas a romper com esse ciclo. Pais e mães se estabelecem como sujeitos políticos em comunidades presenciais e virtuais para oferecer um contraponto a tudo o que seus filhos e filhas poderão encontrar ao longo de sua formação. Produzem conteúdo e se organizam a partir desse lugar de cuidadores e cuidadoras em contextos de vulnerabilidade. Mas há um número significativo de pessoas que, tendo sido elas mesmas alijadas de meios materiais e culturais para ampliar a ação parental, ocupam-se da já hercúlea tarefa de manter filhos e filhas alimentados e longe das estatísticas de violência.
Encontram-se amplamente registradas essas condições de opressão, violência e exclusão a que estão sujeitos tanto os filhos e filhas do continente africano forçosamente trazidos para as Américas como seus descendentes. Há também um acúmulo considerável de análises críticas desses registros, embora sejam ainda pouco empregadas na promoção de uma rede de cuidado que questione nossa estrutura racista. Uma rede formada não apenas por pessoas diretamente vulnerabilizadas, mas também pelos grupos que gozam de privilégios. E assim como as mães escravizadas – que, conforme narra-se atualmente, nos porões dos navios negreiros, durante a travessia do oceano, confeccionavam as bonecas Abayomi (do iorubá, “encontro precioso”) com pedaços de tecidos de suas vestes e as ofertavam a seus filhos como forma de acalento –, mães, pais, cuidadores e cuidadoras negras também buscam tecer possibilidades para aqueles de quem cuidam, reconstituindo a experiência ao longo da travessia do desenvolvimento
Daniela Roberta Antônio Rosa é doula e mestre em Sociologia pela Unicamp