Quer vender também uma coisa chamada “livro”?

Quer vender também uma coisa chamada “livro”?

Pontos alternativos de venda contribuem para a democratização do acesso ao livro

Wilker Sousa

Vossa Senhoria tem o seu negócio montado, e quanto mais coisas vender, maior será o lucro. Quer vender também uma coisa chamada ‘livro’? Vossa Senhoria não precisa inteirar-se de que coisa é. Trata-se de um artigo comercial como qualquer outro: batata, querosene ou bacalhau.” O trecho citado foi extraído de uma carta escrita por Monteiro Lobato a comerciantes brasileiros em 1918. Naquela época, havia no país aproximadamente 30 livrarias, a maioria delas concentrada no eixo Rio-São Paulo. Lobato adquirira a Revista do Brasil, publicação criada em 1916 por intelectuais paulistas, e a transformara, dois anos mais tarde, na editora Monteiro Lobato e Cia. Editores. Em face da má distribuição dos livros e o baixo número de livrarias, o autor de Urupês necessitava de locais alternativos para comercialização dos títulos de sua editora. A saída foi recorrer a donos de bancas de jornal, mercearias, farmácias e papelarias. Os comerciantes aderiram e o escritor-empreendedor conseguiu formar uma rede com quase dois mil distribuidores em todo o país. Uma façanha para o mercado editorial daquele período.

A empreitada de Lobato seria o prenúncio para um fenômeno moderno: a comercialização de livros fora das livrarias e a consequente ampliação do acesso a eles. A presença dos títulos em hipermercados, bancas de jornal, igrejas e até postos de gasolina permite aproximá-los daquele público não habituado a frequentar livrarias. Segundo a última edição da pesquisa Retratos da Leitura do Brasil (2008), realizada pelo Ibope a pedido do Instituto Pró-livro, as vendas de livros em pontos alternativos correspondem a 65% do mercado. As bancas de jornal, por exemplo, respondem sozinhas por 19%. “Esse fenômeno se deve, fundamentalmente, à segmentação do mercado e à comodidade. Algumas editoras, por exemplo, investem cada vez mais em livros de bolso, visando esse nicho. Uma pessoa que não costuma frequentar livrarias pode, eventualmente, ir a uma banca, ver um livro e acabar comprando. Há também, no caso das igrejas [6% do mercado], aquele público que só encontra títulos na sua própria igreja e não em livrarias”, justifica o antropólogo Felipe Lindoso, autor de O Brasil pode se tornar um país de leitores? (Summus, 2004). Divanil Pires, proprietário da banca de jornal Oswaldo Cruz, na região da Avenida Paulista, constata que as vendas de livros têm crescido: “No meu ponto de venda, aumentaram pelo menos 30% em relação ao último ano. Algumas editoras, como a Record e a Planeta, seguiram o exemplo da L&PM e estão investindo nesse segmento”, comenta. Patrícia Pinheiro, gerente da loja de conveniência do Posto Hexa, próximo ao aeroporto de Congonhas, também se mostra satisfeita: “A venda é boa. Os clientes gostam muito. Vendemos, em média, 250 livros ao mês”.

O público consumidor dos hipermercados é outro importante foco por parte de editoras e distribuidoras de livros. Para Julio Cesar Cruz, diretor da Catavento, distribuidora que atua nas cinco regiões do país, deve-se levar um produto que atenda às necessidades imediatas daquele público não leitor para, gradativamente, habituá-lo à leitura. “Primeiro nós temos que desmistificar o livro enquanto produto da elite. É ótimo o indivíduo ter acesso ao livro no supermercado. De repente, ele pega o produto, gosta e aquilo fez bem de alguma forma. Aí ele vai se tornar um leitor”, enfatiza. Ainda que os gêneros mais vendidos junto a esse tipo de público sejam autoajuda e aqueles relacionados ao desenvolvimento profissional, há algumas surpresas, como aponta Julio: “Quando nós trabalhávamos para as Lojas Americanas, sabíamos que predominava um público mais popular, mas, um dos livros que mais vendemos lá foi O Príncipe, de Maquiavel. Em outros supermercados, colocamos a versão de bolso de Além do Bem e do Mal, do Nietszche, e vendeu muito bem”. Outro fator que alavanca o consumo nesse segmento é o preço atrativo. Grandes redes de supermercados, como não dependem exclusivamente da venda de livros, podem, eventualmente, diminuir os preços e estimular a compra dos títulos. Segundo Julio, um grande grupo de hipermercados em Brasília conseguiu vender 1.200 livros em apenas um fim de semana. O principal motivo: preço único de R$ 9,90.

O mercado on-line e a má distribuição das livrarias

A era digital modificou o cenário da venda de livros. De acordo com pesquisa realizada pela Nielsen/NetRatings, empresa norte-americana especializada em consumo on-line, 41% de 875 milhões de e-consumidores compram mais livros do que qualquer outro produto. O estudo contou com a participação de internautas de 48 países ao longo de 2007. Outro dado significativo da pesquisa é a posição do Brasil no ranking dos países que mais compram livros via internet – 5º lugar, posição à frente de potências como China (7º) e Reino Unido (10º). No topo da lista, está a Coreia do Sul. Cientes desse fenômeno, as livrarias brasileiras investem cada vez mais nesse tipo de mercado. A Livraria Cultura, uma das maiores do país, tem 18% de seu faturamento proveniente das vendas on-line. Outra grande do setor, a Martins Fontes, aumentou em 200% as vendas de sua loja virtual ao longo do último ano.

A má distribuição de livrarias em território nacional permanece, a exemplo da época em que viveu Monteiro Lobato. A mais recente pesquisa do setor, intitulada Diagnóstico do Setor Livreiro, realizada pela ANL (Associação Nacional das Livrarias) entre 2007 e 2008, indica que somente a região Sudeste responde por 53% das livrarias do país. No outro extremo está a região Norte, com apenas 5%. Em locais onde há essa carência, a venda alternativa de livros contribui para atenuar tal deficiência. Morador de Boa Vista, Roraima – estado que, segundo a pesquisa da ANL, possui apenas 4 livrarias –, Genival Amaral de Brito montou há dez anos a distribuidora Brito e Brito. Atualmente, a pequena empresa resiste a duras penas, com apenas dois funcionários: Genival e sua esposa. Diante da difícil situação econômica, é Genival quem vai às ruas à busca de leitores. O trabalho é feito de porta em porta, na região de Boa Vista. Houve tempos em que trabalhou no interior do estado, mas as vendas eram quase nulas. Entre altos e baixos, Genival ganha, aproximadamente, um salário mínimo ao mês (R$ 465,00). O vendedor, que concluiu apenas o Ensino Fundamental, lamenta não ter tido a oportunidade de cursar o Ensino Superior. Contudo, não abre mão da venda de livros, o que considera uma missão. “Eu continuo vendendo livros porque, apesar das dificuldades, estou levando cultura a todos”.

Literatura na mercearia

Entre os produtos vendidos na Mercearia São Pedro, na Vila Madalena, em São Paulo, o livro ocupa papel de destaque. O estabelecimento possui 40 anos de história e, há 15, adotou a venda de livros. Clássicos da literatura nacional e mundial dividem espaço com produtos de limpeza, alimentos e bebidas. Na prateleira acima do caixa, A Metamorfose de Kafka escora uma garrafa de conhaque. No mesmo balcão em que são servidos cervejas e lanches, uma pilha com exemplares do novo romance de Chico Buarque.

A iniciativa, além de trazer rendimento extra, contribuiu para atrair um público ligado ao universo das letras, como escritores e universitários. “Só o fato de não dar prejuízo é muito interessante e, além disso, atrai um público que interessa para nós. Como não dependo exclusivamente da venda de livros, eu acho isso ótimo”, comenta Marcos Issa Benuthe, um dos proprietários da mercearia. O número de exemplares vendidos ao mês varia de mil a dois mil, o que, segundo Marcos, corresponde ao movimento de uma livraria de pequeno porte. Como a maior porcentagem do faturamento da mercearia não vem dos livros, o proprietário pôde escolher com liberdade o catálogo. Não há livros de autoajuda, nem religiosos. A literatura é o gênero predominante, para satisfação pessoal de Marcos e dos frequentadores. Se Monteiro Lobato batia à porta de mercearias para comercializar seus livros, hoje, na São Pedro, escritores como Marcelino Freire, Xico Sá e Michel Laub lançam, vendem e autografam suas obras. O aperitivo não falta, é claro. Porém, há quem afirme que o sabor e teor alcoólico sejam um tanto superiores àqueles característicos do Biotônico Fontoura, bebida habitualmente servida por Lobato aos amigos.

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