Quem é parasita de quem?
Parasita (2019), do cineasta coreano Bong Joon Ho (Foto: Divulgação)
De acordo com o dicionário, parasita é o organismo que “vive de e em outro organismo, dele obtendo alimento e não raro causando-lhe dano”. O termo também acabou se tornando uma expressão pejorativa para se referir àquele que “vive à custa alheia por pura exploração”.
Ainda que o título Parasita (2019) não tenha sido a primeira opção do cineasta coreano Bong Joon Ho (de O Hospedeiro, 2006, e Okja, 2017), a escolha acabou sendo perfeita para ilustrar a complexidade das tensões que o filme propõe.
O ponto de vista é, principalmente, da família Kim, formada por quatro pessoas (pai, mãe, filha e filho), que vive em condições precárias. O pai, Ki-taek, está desempregado e os demais vão fazendo bicos e se virando como podem, até que um pedido improvável leva o filho, Ki-woo, ao posto de tutor de uma adolescente na casa de uma família riquíssima, os Park.
A família Park também é composta por quatro integrantes: pai, mãe, filha e filho. A diferença é que vivem na área nobre da cidade, em uma casa imponente, com um lindo jardim e incontáveis privilégios, tais como uma governanta e um motorista à disposição. São como duplos mais abastados.
Quando Ki-woo começa a dar aulas de inglês para a garota — com quem se envolve secretamente—, logo vê uma oportunidade para infiltrar sua família na casa dos Park. Então passa a movimentar peças, como num jogo de xadrez. E faz isso sem medir esforços, inescrupulosamente.
Cada um assume uma identidade diferente, acompanhada de uma personalidade forjada para se adequar àquele meio social. Assim, os quatro passam a frequentar a mansão e parasitar os ricos — cada organismo Kim ligado mais intimamente a um organismo da família-espelho.
As críticas ao filme, em geral muito positivas, têm ressaltado o aspecto do mal involuntário causado pela parasitagem, já que a exploração praticada não é movida por crueldade, e sim por uma questão de subsistência. Mas gostaria de propor uma hipótese de interpretação um pouco diferente aqui: nessa história, afinal, quem é parasita de quem?
Uma pesquisa divulgada recentemente pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) analisou a distribuição da renda de trabalho no mundo de 2004 a 2017. O relatório, que abrangeu quase 200 países, aponta que os 10% mais ricos recebem quase 50% da renda de trabalho. Vale destacar, ainda de acordo com a OIT, que a renda de trabalho corresponde apenas a 51% de toda renda gerada. Os outros 49% são relativos à renda do capital. Em outras palavras, destinam-se aos proprietários do dinheiro.
Quanto aos proprietários do dinheiro, o relatório de 2018 da Oxfam, organização não governamental dedicada à investigação e implementação de programas relacionados à desigualdades e direitos humanos, informou que as 26 pessoas mais ricas do mundo detêm uma riqueza equivalente à metade mais pobre da humanidade somada (3,8 bilhões de pessoas).
Os dados também indicam que a concentração de riqueza mundial aumentou: em 2017, os mais ricos somavam 43 pessoas. A fortuna dos bilionários aumentou 12%, enquanto a metade mais pobre teve seu patrimônio diminuído em 11%. A realidade que conhecemos permite deduzir que a abastança em que vivem famílias como a dos Park só pode existir às custas do empobrecimento e da exploração de famílias como a dos Kim.
O filho dos Kim utiliza mais de uma vez a expressão “isso é tão metafórico!” em situações diferentes: quando ganha de presente uma pedra que simbolizaria prosperidade, quando vê um quadro pintado por uma criança e exibido na casa dos Park como se numa parede de museu. A frase, que o rapaz parece exclamar sem cinismo, acaba dando o tom do filme: a história é, ao mesmo tempo, realista e fabular, formada de objetos igualmente concretos e simbólicos.
Geograficamente e arquitetonicamente, os pobres vivem abaixo dos ricos, numa espécie de subsolo social e estão quase sempre em posições rebaixadas. É como diz a canção brasileira: “Analisando essa cadeia hereditária, quero me livrar dessa situação precária, onde o rico cada vez fica mais rico, e o pobre cada vez fica mais pobre. E o motivo todo mundo já conhece, é que o de cima sobe, e o de baixo desce”.
Mas, felizmente, Bong Joon Ho constrói essa dicotomia sem as simplificações que encontramos em filmes como o brasileiro Que horas ela volta? (2015), de Anna Muylaert, mais maniqueísta do que Parasita.
Aqui, as personagens, de ambos os lados, não são meras alegorias do bem e do mal. Todos se revelam capazes de pensamentos e atitudes sádicas e vis, buscando justificativas, sobretudo discursivas, para legitimá-las ou atenuá-las. A sra. Kim diz que, se fosse tão rica quanto a sra. Park, também seria legal como ela, pois somente o dinheiro poderia trazer essa leveza.
O filme tem sido comparado a Bacurau (2019), de Kleber Mendonça, pela renovação estética com que representa o velho embate de classes. Mas, em muitos aspectos, o longa coreano supera o brasileiro. Se aqui também há injustiça, dor, retaliação, sangue e tragédia, ocorre que, ainda que nos identifiquemos mais com um lado do que com outro, essa simpatia não é angariada com simplificações. Por essa razão, acaba sendo uma experiência cinematográfica mais complexa, ainda que compartilhe com Bacurau tensões irmãs.
Parasita oscila entre o humor, o absurdo, o drama, o suspense e o horror. Mas, dessa vez, os monstros são as próprias pessoas. Ou, melhor, é sobretudo a estrutura monstruosa sobre a qual o mundo se organiza que produz monstruosidades.
Em uma ótima cena, o mundo sobrenatural chega a ser ironizado pelo diretor (fantasmas trazem prosperidade, diz a sra. Park para se acalmar, enquanto sabemos que o buraco é mais embaixo).
De todo modo, podemos concluir que, tal como ocorre em boa parte dos filmes de terror asiáticos, também a mansão de Parasita é amaldiçoada, habitada por fantasmas. Porém, é de outra maldição, muito mais mundana e talvez por isso mais terrível, a que Bong Joon Ho se refere aqui.
FABIANE SECCHES é psicanalista e doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo