Queermuseu e o obscurantismo dos cidadãos de bem

Queermuseu e o obscurantismo dos cidadãos de bem
‘O buraco’, de Telmo Lanes, 2004; obra estava em exposição na mostra ‘Queermuseu’ (Divulgação)

 

 

A mostra Queermuseu: cartografias da diferença na arte brasileira, com curadoria de Gaudêncio Fidelis, realizada no Santander Cultural de Porto Alegre, tornou-se repentinamente um dos principais temas da semana. A mostra, a despeito de promovida por uma instituição privada, foi financiada por incentivos e benefícios fiscais, ou seja, por dinheiro público.

Pela primeira vez no país, uma mostra se propôs a fazer uma leitura das artes plásticas brasileiras a partir de uma perspectiva LGBTQ, ou seja, mostrando diferentes formas como as diversidades sexual e de gênero vêm sendo retratada e representada na nossa história. Isso é muito simbólico em um país que mata uma pessoa LGBT por dia.

Para se ter uma ideia da dimensão da empreitada ambiciosa, a mostra, segundo o curador, começou a ser pensada em 2010 e contava com quase 270 trabalhos de 85 artistas consagrados dentro e fora do país. Volpi, Portinari, Adriana Varejão, Lygia Clark, Leonilson e Flávio de Carvalho eram alguns desses nomes mundialmente conhecidos e admirados.

Vale apontar que as obras não eram inéditas, tendo sido produzidas em diferentes períodos do século 20 e a maior parte delas já tinha sido exposta anteriormente em outros lugares e centros culturais. A exposição priorizava trabalhos de arte moderna e, sobretudo, contemporânea.

No entanto, a mostra foi encerrada antecipadamente por acusações de pedofilia, zoofilia e vilipêndio de símbolos religiosos, o que não procede, como se verá a seguir.

Diferença entre representação artística e apologia

Em primeiro lugar, é preciso tomar como ponto de partida a diferença entre a realidade e a representação. Não é preciso evocar teorias para constatar que a arte não é a realidade, mas uma representação desta em diferentes linguagens (como a fotografia, a pintura, a escultura, a performance etc).

Além disso, é preciso frisar que exibir, em linguagem artística, determinada cena erótica, um ato obsceno ou mesmo uma conduta repulsiva não configuram elogios ou apologias. Aliás, é preciso registrar que a mostra Queermuseu não fazia qualquer apologia a crime.

‘Agora e as oportunidades’, de Leonilson, 1991. Obra que estava em exposição na mostra ‘Queermuseu’ (Divulgação)
‘Agora e as oportunidades’, de Leonilson, 1991; obra estava em exposição na mostra ‘Queermuseu’ (Divulgação)

Representar sob a forma da obra de arte pode ser, inclusive, uma forma de denunciar ou criticar aquilo que se retrata. A relação entre a intenção do artista e a recepção do público não é simples e dada de antemão como se quer fazer crer. Há múltiplos conflitos e tensões nesse processo, mas certamente o silenciamento pela censura não é uma alternativa. Afinal, se não se puder falar ou representar algo, como se pode viabilizar a reflexão crítica e o juízo moral sobre esse mesmo algo?

Uma das obras que despertou maior polêmica, a “Cena Interior II” de Adriana Varejão, que mostra cenas com uma série de abusos sexuais, pode ser lida exatamente como uma forma de denúncia do espaço privado e doméstico como lócus da violência e não da cordialidade na formação da sociedade brasileira.

Vale lembrar que silenciar sobre um problema não faz com que ele deixe de existir. Nesse sentido, alias, é ilustrativo notar como a Igreja católica sempre lidou com a pedofilia: fingindo que ela não existia. Isso só aumentou o problema e dificultou que apurações fossem feitas e punições fossem aplicadas. Silenciar é abafar, interditar o debate e perpetuar a prática.

Liberdade artística e seus limites aos discursos de ódio

 Outro argumento recorrente no debate em curso diz respeito à confusão entre a censura com patrulha moral tal como feita pelo MBL e a proibição, reivindicada por diversos grupos de direitos humanos, de que sejam veiculados e expressados discursos de ódio com apologia a crimes.

Há uma diferença fundamental entre essas duas situações.

Liberdade artística é uma das dimensões da liberdade de expressão, que está assegurada constitucionalmente no Brasil e independe de censura ou de licença, seja do MBL ou mesmo do Estado.

Mas, como todo e qualquer direito, essa liberdade não é absoluta e pode sofrer restrições a posteriori, desde que justificadas e amparadas legalmente. Exemplos de abuso do direito de liberdade de expressão são a apologia a crime ou mesmo discursos de ódio, ou seja, a inferiorização e discriminação de determinado(s) grupo(s) por conta da raça, cor, procedência nacional, etnia, sexo, idade, religião, etc. E caberá ao sistema de justiça fazer esse juízo depois de um processo baseado no contraditório e na ampla defesa, coisas com que o “liberalismo” do MBL não convive bem.

Tampouco na mostra se veiculava discurso de ódio contra segmentos já estigmatizados. Pelo contrário, a exposição era uma tentativa de retratar a diversidade sexual e de gênero de modo plural, aberto e adulto.

Portanto, Queermuseu é diferente de Bolsonaro, Danilo Gentili, Alexandre Frota e cia. Só quem age por má-fé pode igualar duas coisas tão distintas entre si.

‘Poluída at certo ponto’, Suzana Lobo, 1971. Obra que estava em exposição na mostra ‘Queermuseu’ (Divulgação)
‘Poluída at certo ponto’, Suzana Lobo, 1971; obra estava em exposição na mostra ‘Queermuseu’ (Divulgação)

Santander e MBL definirão o que é arte?

De um lado, o MBL manipulando, como é sua praxe, uma massa de pessoas que sequer teve contato com as obras de arte eleitas como alvo, acusando a mostra de apologias à pedofilia, à zoofilia e ao vilipêndio de símbolos religiosos. Militantes desse movimento, que de liberal só carrega o “L” na sigla, invadem a exposição, assediam espectadores, agridem artistas e hostilizam as pessoas em atitude flagrantemente autoritária.

Do mesmo lado, ainda que tivesse de estar do lado contrário à patrulha moral, o Banco Santander que, antes mesmo de dar oportunidade ao curadores e aos artistas para responder às acusações em um debate público, cedeu à pressão dessa minoria violenta e conservadora. Assim, determinou o encerramento antecipado da exposição, desrespeitando a equipe toda, desperdiçando o dinheiro público ali investido e chancelando, institucionalmente, uma censura moral injustificada.

O mais grave deste episódio, assim, não é haver uma moral tacanha ou um senso estético autoritário e uma crítica de arte desinformada. Tampouco me parece que o essencial seja que os discursos da “moral e dos bons costumes” ou da “arte degenerada” embale diversos setores da sociedade, pois isso sempre ocorreu.

O MBL apenas catalisa e amplifica nas redes, com seu alcance conquistado com um golpe, esse senso comum moralmente conservador diluído por aí. É evidente que quem verbaliza o senso médio do conservadorismo dialoga mais com esses segmentos majoritários da nossa sociedade. Eles não precisam transformar nada, só fortalecer o que já é hegemônico.

O mais grave, pra mim, é que uma instituição cultural se chame Santander Cultural, ou seja, tenha nome de um banco. E ainda mais grave é uma instituição cultural de um banco ceder a pressões desinformadas sobre arte para cancelar uma exposição. É atestado de privatização da cultura e de total colonização desta unicamente pelos critérios de mercado.

Santander não está preocupado com qualidade curatorial ou com buscar a diversidade, mas apenas com a imagem do banco e os seus lucros, como acabou de demonstrar. Afinal, é pra isso que serve um banco. Por isso, pouco nos importa a estética dos membros do MBL. A nossa tarefa passa por tirar as instituições culturais do controle dos bancos e empresas privadas, forjando novos modos de financiamento da cultura por critérios públicos e representativos da sociedade.

Cultura e educação na mira do fundamentalismo religioso

Este caso consiste em precedente muito perigoso. Os grupos moralmente conservadores estão conseguindo, cada vez mais e ainda mais depois do golpe de 2016, pautar políticas públicas no campo da educação e da cultura.

Vetaram o kit anti-homofobia ainda no governo Dilma, patrulharam as escolas para impedir a discussão de gênero e sexualidade sob o argumento de acabar com a “ideologia de gênero” e, agora, passam para o controle das exposições e impõem limites para a livre expressão artística.

Isso é fundamentalismo conjugado com poder político e econômico, que resulta em censura. Não se trata de defender ou de gostar dos trabalhos em si, mas tampouco se trata de esperar que a função da arte seja agradar o senso estético e moral de todos.

E o banco Santander, que cedeu a essa pressão, tornou-se cúmplice do absurdo. Estou fechando minha neste banco e declinando a razão pra isso, espero que outras pessoas façam o mesmo.

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