Puro Chile

Puro Chile
O presidente deposto Salvador Allende (Foto: Biblioteca Nacional de Chile)

 

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“Puro, Chile, és tu cielo azulado.” Assim começa o hino nacional chileno e também este relato: se tenho uma imagem da capital, Santiago, é do céu muito azul emoldurando as neves eternas dos picos andinos. Eu amei o Chile, profundamente. Não apenas porque era perto do Brasil, o que permitia que a família viesse nos visitar, mas por uma soma de pequenos detalhes que juntos compunham uma sensação não redutível a palavras. Eu era criança e a infância tem dessas coisas, vive intensamente, não aprofunda. Naquele então, tinha nove anos, morava em Santiago e estudava numa escola notoriamente de esquerda, o Colegio Latinoamericano de Integración.

No Colégio, todas as crianças aderiram ao embate que fermentava nas ruas e dividia o país entre a defesa e o repúdio ao governo socialista. Não havia como se alienar: as greves dos caminhoneiros (fomentadas pela direita), a escassez de carne e produtos não perecíveis, como açúcar e papel higiênico (armazenados pela direita), os atentados e ataques dos fascistas do Patria y Libertad imprimiam a violência política no cotidiano. E havia o nosso lado: a alegria do povo morocho (moreno, de matriz indígena) desfilando pelas ruas nas passeatas da Unidade Popular, as jornadas de trabalho voluntário colhendo cebola e ajudando os adultos a carregar sacos de açúcar e farinha ilegalmente acaparados (estocados) pela direita. Participar de um esforço coletivo e solidário imprime na gente o sonho socialista. As urtigas que cresciam nos campos de cebola ardiam nas mãos como um detalhe passageiro. Eu voltaria à colheita o quanto fosse necessário, pelo governo Allende.

Em que pese o sentimento de adesão, só fui mesmo entender o que havia de tão especial no país de Allende quando voltei para uma temporada de férias no Atacama, em 2014. Era a primeira vez que pisava em solo chileno desde o golpe de 1973. O que segue é um relato de viagem. Meu companheiro e eu decidimos passear na contramão da rota turística e assim fomos a Caspana, um vilarejo ao norte de San Pedro. A ele se chega por uma estradinha sinuosa, encimada por paredões de rocha e terra. De tantos em tantos metros, uma placa alertava para o risco de desabamentos. Não sem tensão percorremos os últimos quilômetros até o fim do vale, onde uma nascente permitiu que um povoado florescesse ali desde os tempos pré-hispânicos.

Hoje a população se concentra em Caspana Nueva, morro abaixo, às margens do rio de mesmo nome. Tufos de capim dos pampas escondem um prado ralo onde pastam poucas llamitas e alpacas (uma grande seca que teve início em 2007 dizimou o rebanho). Entre os meandros do rio está o casario pintado em cores vivas. Quando chegamos à praça central, um grupo de homens cobria o coreto com grandes braçadas de capim, preparando a festa que aconteceria no dia seguinte. Muito gentis, nos convidaram para passar a noite. Agradecemos, mas tínhamos que retornar naquela mesma tarde ao hotel em San Pedro, a 180 km dali. Os homens nos recomendaram visitar o museu. Sabíamos da importância arquitetônica da pequena igreja dedicada a São Lucas e do cemitério de los abuelos. Nenhum guia mencionava a existência de um museu.

A igreja estava fechada e o depositário da chave havia saído sem hora para voltar. Em compensação, logo apareceu uma moça para abrir o museu. Com olhos doces e imenso orgulho, ela contou que o museu fora montado pelas gentes do pueblo no fim da era Pinochet. Mencionou também a luta que o povo atacamenho empreendera para resgatar os corpos embalsamados dos avós sequestrados nas coleções etnográficas mundo afora, razão pela qual havia pouco o que visitar no cemitério. Chegamos a um casebre. Ela abriu a porta, entramos numa sala vazia não fosse por alguns painéis pendurados nas paredes. Não sei se consegui disfarçar a decepção e comecei a ler. Os diagramas reproduziam, para melhor compreensão dos forasteiros, a organização social do pueblo. Para o povo de Caspana, o tesouro não era a igrejinha de adobe, tombada pelo patrimônio histórico, mas o fato de serem uma sociedade sem chefes, na qual todos compartilham as tarefas necessárias à sobrevivência no deserto: a manutenção dos aquedutos, os cuidados com o rebanho, a colheita, as festas. Era o que eles tinham de melhor a mostrar, e eu entendi a origem da Unidad Popular.

Estava de volta nas ruas de Santiago, onde um milhão de pessoas aclamava o discurso do Allende, um orador brilhante que sabia falar ao coração do povo. Um grande amor unia a massa de gente que escorria pelas ruas da capital. Naquela passeata, eu vi a juventude comunista marchando ao som dos tambores e desde então tocar tambor foi meu sonho. O pai do meu melhor amigo chileno, o Germán, era do governo, uma família de judeus de esquerda. Por ocasião de uma parrillada em casa deles a pequena brasileira foi apresentada à deputada comunista Gladys Marín, que prometera que logo eu também marcharia de lenço vermelho e tocando tambor. Não deu tempo. Depois do golpe não mais revi o Germán Dobri nem as outras crianças do Colégio. Nunca mais tive notícias do Miguel, um menino de traços indígenas, morocho, que morava numa población perto da minha casa. No pequeno museu de Caspana entendi que a población do Miguel, tão organizada que era, reproduzia a ordem comunitária dos povos originários daquela estreita faixa de terra entre o Atlântico e a cordilheira. Puro, Chile.

Nos anos seguintes, durante o exílio na França e depois na volta ao Brasil, colei na parede ao lado da cabeceira da cama os nomes das amizades gravados em tiras de Rotex – um aparelho com o formato da nave espacial de Jornada nas Estrelas que imprimia palavras em alto-relevo. Antes de dormir, meus dedos tocavam as letras que formavam os nomes dos meus amigos de infância e eu adormecia pensando em rostos que continuam crianças até hoje. As vozes não consigo lembrar. Se fosse hoje, teríamos mantido contato. Na época, ligações internacionais tinham um custo proibitivo e as cartas só funcionavam com o endereço completo. Eu sabia onde moravam meus amigos, mas não os números das casas nem os nomes das ruas.

De volta a 2014, do Atacama fomos a Santiago para constatar que a brutalidade do golpe aparentemente vencera. A capital continuava provinciana, mas havia desaparecido os maravilhosos murais pintados pelas brigadas muralistas que a tornavam tão especial. Será que o povo chileno, que não fora rendido em sua organização popular pelos Incas nem pelos espanhóis, capitulara ao ideário neoliberal? Anos depois aconteceram novas passeatas lideradas pela esquerda e Boric foi eleito presidente por uma pequena vantagem, assim como Allende. O Chile continua um país dividido. Na minha memória falha, o hino chileno tem apenas dois versos, começa com o ceú azul e termina no refrão: Que o la tumba será de los libres, o un asilo contra la opresión. Na saída do museu de Caspana, a moça dos olhos doces nos esperava com um cesto de damascos colhidos pela manhã. Preciso dizer que foram os melhores damascos da minha vida? Viva a Unidade Popular.

Marta Nehring é mestre em teoria literária e doutora em cinema. Roteirista, diretora e pesquisadora do audiovisual, trabalha com documentário e ficção de vários formatos.


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