Profissional da sensibilidade

Profissional da sensibilidade
(Foto: Daryan Dornelles/Divulgação)

“O cara perguntou o que tinha acontecido. Eu disse que não sabia, que sou baterista, tomei tiros, estou paraplégico e a minha vida acabou”, diz Marcelo Yuka com a voz mansa, olhando para a câmera da diretora Daniela Broitman no documentário Marcelo Yuka no caminho das setas, de 2011. Ao contrário do que previu, três anos após o depoimento e quase quinze anos depois do incidente que o deixou na cadeira de rodas, a vida segue intensa para o músico, compositor e ativista social.

Apesar de conservar a mesma fala pausada e tranquila – como se tomasse seu tempo para organizar as palavras que correm dentro de si –, Yuka, aos quarenta e oito anos, acumula projetos e equaciona seus dias, medos e possibilidades numa fórmula que prevê a criação artística. “Sou um workaholic”, avisa. Mas o alerta já havia partido de um de seus assessores de imprensa, quando disse que o músico costumava passar as madrugadas no estúdio que mantém em sua casa, na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro. “Sou assim em boa parte porque me joguei emocionalmente no trabalho – o que acaba criando uma lacuna pessoal. Mas a arte e a música me ajudaram a conviver com os meus fantasmas”, diz o artista, dono de uma trajetória em que música, política e ativismo sempre caminharam lado a lado. Talvez ocupando o mesmo lugar no espaço.

Desde a década de 1990, em paralelo com a sua carreira musical, ele ajudou o Grupo Cultural Afrorreggae a construir a Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE) do Rio de Janeiro; fundou a Brigada Organizada de Cultura Ativista (BOCA), responsável por levar arte e cultura a presídios brasileiros e criou a banda FURTO (Frente Urbana de Trabalhos Organizados) – além de manter parcerias com o Movimento Sem Terra (MST). Criador dos principais sucessos d’O Rappa, grupo do qual foi mentor e baterista por sete anos, Yuka foi quem escreveu Me deixa (“Podem os homens vir que/ Não vão me abalar/ Os cães farejam o medo/ Logo não vão me encontrar”), Todo camburão tem um pouco de navio negreiro (“Quem segurava com força a chibata/ Agora usa farda/ Escolhe sempre o primeiro negro pra passar na revista”) e Minha alma (“As grades do condomínio são para trazer proteção/ Mas também trazem a dúvida/ Se é você que está nessa prisão”), além de muitas outras canções até hoje executadas pelo grupo, que seguiu sem ele.

Embora diga que a arte é livre e que não precisa, necessariamente, adotar um tom político para estar no mundo, ao refletir sobre ela sua fala sempre se amplia para contextos maiores, econômicos, sociais, urbanos. A música – e a arte –, para Yuka, parece passar por um lugar de inflexão entre o que vê e o que vive. “Não acho que as pessoas devem ter um posicionamento político em sua manifestação artística, mas a arte pode funcionar como um espelho da sociedade. Ela mantém utopias vivas e um artista é um profissional da sensibilidade”, acredita. “Ao mesmo tempo em que, para mim, a arte é uma coisa tão corriqueira, tão cotidiana, ela é também um contato muito forte e muito bonito com a tradição humana, e deve ser respeitada em todas as suas possibilidades. Eu a respeito como um possível espelho da sociedade e uso o máximo de relações a que ela se propõe ao meu redor.”

O amor como inteligência

“Além de misturar os batuques de todos os povos, Marcelo Yuka mantém, em suas letras, a tradição poética da música popular brasileira”, diz Paulo Lins, amigo e parceiro de Yuka em diversos projetos – de composições musicais à produção de videoclipes. Junto de Kátia Lund e Breno Silveira, o escritor participou da direção do vídeo para Minha alma, o mais laureado da história do VMB, extinta premiação da MTV. É Paulo, autor de Cidade de Deus e Desde que o samba é samba, quem assina o prefácio da “coisa mais egoísta” já feita por Marcelo Yuka: a biografia Não se preocupe comigo (Sextante, 2014), escrita em parceria com o jornalista e produtor musical Bruno Levinson. “Tudo o que eu produzo tem que ter a presença do outro. Mas eu fiz o livro para exorcizar os meus fantasmas e, por isso, foi a coisa mais egoísta que já fiz. E fiz para mim mesmo, porque eu precisava reler a minha história”, explica.

Essa história, sempre lembrada por nove tiros e um rompimento nada amigável com a banda que ajudou a fundar, está exposta nas prateleiras de livrarias em todo o país, ao alcance de quem quiser conhecê­‑la. Já foi escrita. O que interessa a Yuka é “escrever outra” e, no momento, o músico parece se empenhar exatamente nisto. “Neste ano, talvez uma década de trabalho começa a se canalizar, um trabalho que ficou represado aqui, mas que foi e é muito intenso”, diz.

As madrugadas em estúdio são, em grande parte, destinadas à finalização de um projeto que vem sendo concebido há cinco anos, o disco Canções para depois do ódio – talvez ele mesmo fruto da calmaria depois da tempestade ou de muito refletir após o turbilhão. “Um turbilhão que não é só meu, mas próprio do tempo que estamos vivendo”, enfatiza. “Muitas vezes, eu vejo que a melhor saída não é pelo rancor. Talvez essa tenha sido a única lição que aprendi na cadeira de rodas, que o amor pode ser uma possibilidade humana de reflexão e não apenas uma relação de um compartimento sentimental que você mantém com um grupo de pessoas. Então, estou investindo no amor como inteligência – e não só como sentimento.”

Com participações de intérpretes como Jorge Ben Jor, Marisa Monte, Céu, Letícia Sabatella e Seu Jorge, o álbum carrega uma das principais características do seu trabalho não só na pluralidade de vozes que compõem as faixas: “o outro” também está presente nas setecentas e noventa e cinco pessoas que contribuíram para que o disco possa ser lançado. “Fazendo Canções para depois do ódio eu me associei a essa questão da economia solidária, porque quero abraçar qualquer saída que aposte no comércio baseado na confiança; afinal de contas, as pessoas compraram o meu disco sem saber exatamente o que ele é”, considera.

As campanhas de financiamento coletivo, ou crowdfunding, se fortalecem cada vez mais como opção àqueles que, sem patrocínio ou leis de incentivo, buscam formas alternativas de realizar seus projetos. A partir de um valor total estipulado para que aquela ideia saia do papel, os entusiastas são convidados a doar determinadas quantias – que podem girar entre dez reais e vinte mil, por exemplo. Uma experiência positiva, segundo Yuka. “Tive orgulho, no final das contas, de conseguir a minha grana sem me associar a uma empresa em que eu não confio exatamente, ou sem ter que mendigar por políticas públicas que me enxerguem como uma pessoa apta a receber um financiamento que eu nem sei de onde vem. É uma forma independente muito pró-ativa de realizar as coisas e vai de encontro a tudo o que eu tento colocar na minha vida.”

Mas o disco não é o único projeto em andamento em sua vida. Em agosto, estreou na televisão fechada com o programa “Hoje eu desafio o mundo sem sair da minha casa”, série documental de vinte e seis episódios em que assume o posto de entrevistador. Ou algo mais natural que isso, já que na tela Yuka apenas repete o que costuma fazer em sua casa todos os dias, longe das câmeras. “Quando eu tomei os tiros, meu ativismo ficou muito restrito, porque eu trabalhava basicamente em comunidades e o deslocamento para esses lugares, na cadeira de rodas, se tornou muito mais difícil. Mas antes que eu pudesse pensar numa saída para isso, as pessoas começaram a vir até a minha casa”, explica. Quase todas as tardes em que arrumava a mesa para o café, havia sempre alguém em sua cozinha disposto a levar uns dedos de prosa. O diretor – e amigo de Yuka – Antonio de Andrade, vendo que essas ocasiões já eram praticamente “talk shows” por si sós, tratou de “organizar e dirigir propriamente a coisa para TV”.

A cada semana, ele recebe um convidado para discutir assuntos de interesse social como racismo, meio ambiente, drogas, segurança pública e acessibilidade. Já passaram por sua casa o delegado Orlando Zaccone, membro da ONG internacional LEAP (Law Enforcement Against Prohibition – isto é, Agentes da Lei Contra a Proibição), que defende a descriminalização das drogas; o sociólogo carioca Luiz Eduardo Soares e a atriz Leticia Sabatella, por exemplo. “A gente está vivendo um momento em que o fascismo começa a ser visto como opção e tem muita gente saindo do armário ao adotar posições desse tipo”, diz Yuka, que encara o programa como uma “ocupação midiática”. “Se eu posso fazer alguma coisa em relação a isso, é dividir informação de qualidade, informação progressista, que proponha algum tipo de felicidade plural e não somente individual – mas não fazemos isso de forma panfletária. É dentro da minha casa e eu não deixo a minha vida ser roteirizada pela gravação, tudo é bastante informal.”

Yuka, que se declara o “último dos pacifistas”, vê com assombro certo tipo de pensamento conservador que circula pela sociedade brasileira, propagado por aqueles que defendem a justiça da redução da maioridade penal, de linchamentos públicos, de desapropriações violentas. “Quando as pessoas se associam a esse tipo de pensamento, estão apostando muito mais em vingança do que em justiça, e esse engano arrasta muita gente”, acredita. “Mesmo com um país injusto socialmente como o nosso, ainda é possível pensar em justiça, que não é um lugar para se chegar – é um caminho a se determinar. Não há linha de chegada. Mas você tem que se perguntar se está no caminho certo, e o termômetro desse caminho é o outro, o coletivo, o comum.”

É por isso que, segundo ele, as ideias que se colocam contra esse discurso precisam de um lugar, de visibilidade. “Uma vez me perguntaram por que o meu programa não fazia contraponto de ideias. É simples, porque as ideias mais fascistas ganham muito mais espaço e têm muito mais visibilidade todos os dias: elas estão na mídia tradicional. Não precisam de mim para sustentá­‑las”, afirma.

A participação política de Marcelo Yuka, evidente em toda a sua trajetória, alcançou as vias de fato em 2012, quando foi convidado a compor a chapa do então candidato à prefeitura do Rio de Janeiro, Marcelo Freixo, no posto de vice: “Isso nunca fez parte dos meus planos, como não faz agora. Mas eu me deixei servir, acredito em servir e fui com fé, sabendo que poderíamos fazer um trabalho muito bonito, principalmente se fôssemos eleitos”. Apesar de terem realizado uma campanha bem sucedida, que segundo ele “ecoou muito nas manifestações de junho de 2013”, o candidato Eduardo Paes, do PMDB, venceu as eleições com mais de dois milhões de votos. “Mas deixamos um legado”, diz.

Botar os bichos para fora

Yuka planeja, ainda, montar uma exposição com as suas pinturas. “Meu pai é pintor, embora não seja profissional e desde criança essa era a expressão artística mais fácil para mim. Mas a timidez não deixou que isso viesse à tona. Na pintura, a gente se mostra muito”, conta. No último ano, enquanto trabalhava nas gravações do disco, ele costumava desenhar durante os intervalos – e o que começou como mera distração, incitou a busca por um conceito, por uma estética. A arte, diz Yuka, o “salvou” algumas vezes, antes e depois da cadeira: “Mas eu não superei nada não, estou em processo de superação – e se eu estivesse em pé, também estaria. Acho que sempre estarei em busca de algo, e me lançar sobre as artes visuais aos quarenta e oito anos, por exemplo, faz parte disso. De alguma maneira, mostra que as minhas possibilidades como artista ainda estão em processo”.

E as possibilidades são muitas, como ele mesmo reconhece. Num certo momento, Yuka conta que estava trabalhando nas gravações do programa, na produção do disco e na escrita do livro ao mesmo tempo. “É uma demanda muito grande, mas é a demanda que eu preciso cumprir para me sustentar, porque se já é difícil viver de cultura nesse país, para um baterista sem as pernas e com um braço e meio é mais ainda.” Mas não é só isso. Esta é a sua forma de estar no mundo.

Apesar de dizer que o seu apoio ao PSOL o prejudicou em termos de mercado, da mesma forma que poderia ter muito mais visibilidade se não mantivesse suas convicções políticas muito claras para si – e para os outros – Yuka acredita que sempre há aqueles que o enxergam. “Foram essas pessoas que me deixaram fazer o disco, me deram um espaço na TV, compraram meu livro. Eu só faço o que acredito, e se eu continuo sobrevivendo disso é porque, por mais que esse país seja injusto, ainda existe espaço para aqueles que realmente acreditam no que fazem. Não importa as condições, porque eu tenho todas elas contra mim.”

Yuka já declarou que, às vezes, sente que as principais coisas a serem ditas sobre si são os tiros que o deixaram na cadeira e a saída d’O Rappa. Não são necessários grandes esforços para compreender o contrário. A história que ele quer contar agora é outra, e inclui uma infinidade de projetos, caminhos e possibilidades que abraça com paixão: “É muito esforço, mas, porra, é emocionante. Dá pra ver a sua própria passagem através desses registros. A neurociência já prova isso, que quando o corpo tem alguma função restrita, o córtex se deforma e potencializa outros campos. Acho que eu sou consequência disso. A minha imobilidade me movimenta, e eu faço isso de maneira interna e externa. Há essa questão de ter que ganhar a vida, mas é mais que isso. É ter que botar seus bichos pra fora. E isso me faz ter orgulho da minha entrega”.

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