Preenchendo o vazio

Preenchendo o vazio
Integrantes da bateria da escola Império Serrano preparam os instrumentos para o desfile de 1970 (Foto: Arquivo Nacional/ Fundo Correio da Manhã)

 

Há quem diga que o surdo, um instrumento fundamental do samba, teria sido criado em 1928 por Alcebíades Barcelos, o Bide do Estácio, com um latão de manteiga, aros e pele de cabrito. Um caso clássico da sabedoria que a escassez provoca nas miudezas do cotidiano. Outras versões falam que, com contribuições aqui e ali, Bide deu a forma final a um tambor de marcação que já vinha se desenvolvendo.

Seja como for, o fato é que de lá para cá os surdos foram se transformando em instrumentos fundamentais do samba. Para a turma das escolas de samba, eles são o coração de uma bateria. E de forma simples podemos dizer que as baterias hoje, em geral, trazem três tipos de surdos, responsáveis pelas funções de marcação do tempo, andamento e corte. Proponho uma breve introdução a cada um deles.

Surdo de primeira (ou de marcação): pensando no samba a partir do compasso binário (tempo 1: tum – tempo 2: tum), este surdo é o de som mais grave, confere peso à bateria e faz a marcação no tempo 2, o tempo fraco. O som mais grave é tocado nesse tempo, o que é uma característica fundamental do samba.

Surdo de segunda: é um pouco mais agudo que o surdo de primeira e é tocado no tempo forte.

Surdo de terceira: como dissemos, o surdo de primeira é um tambor grave que marca a referência do tempo para toda a bateria. O surdo de segunda, menos grave, responde a ele, batendo o primeiro tempo do ritmo. É só escutar as batidas regulares do coração para saber do que se trata. O surdo de terceira é aquele que surge porque existe o vazio entre uma marcação e outra; o espaço entre a pancada do surdo de primeira e a resposta do surdo de segunda. Cabe ao surdo de terceira preencher esse vazio.

No Rio de Janeiro, o instrumento foi inventado por Tião Miquimba, ritmista de Padre Miguel. Ao contrário dos dois outros, que batem segundo a previsibilidade da marcação e da resposta, o surdo de terceira desenha um ritmo cheio de síncopes, quebrando a sensação de normalidade gerada pelas pancadas constantes dos outros surdos: ele brinca, desnorteia, faz fraseados inusitados o tempo inteiro. A síncope, não custa lembrar, é uma alteração inesperada no ritmo, causada pelo prolongamento de uma nota emitida em tempo fraco pelo tempo forte, que quebra a sequência previsível do som e proporciona sensações de um vazio que subitamente se preenche.

É claro que existem exceções, bem conhecidas pelo povo do samba. A Mocidade Independente de Padre Miguel, por exemplo, inverte a afinação dos surdos. A Mangueira não tem surdo de segunda, mas sim outro tipo de tambor, o surdo mór, que conversa com o surdo de primeira.

Partindo dessas breves colocações, parece ser possível considerar o surdo de terceira o tambor de Exu. Orixá transgressor de lógicas normativas e ritmos constantes, senhor de soluções imprevisíveis, ele é a presença, como o tambor mencionado, que preenche o vazio com os saracoteios dos corpos e a cadência dos baticuns. Fosse um jogador de futebol, o surdo de terceira seria Mané Garrincha gingando, indo e voltando no ritmo do corpo-atabaque, diante da rigidez do marcador.

Ando cismado faz tempo com a ideia de que precisamos ler os tambores. Na sofisticada construção do samba como um sistema de compreensão e interação com o mundo, pulsa o convite para pensar nas entrelinhas, brincar nas frestas, desafiar a norma das marcações preestabelecidas e ousar a inconstância que, paradoxalmente, só se manifesta porque conversa com a constância.

O surdo de terceira sabe que atua na fresta entre os outros dois. Ele não rompe a lógica do compasso fundamentado na pergunta e na resposta dos tambores do samba, mas desafia e dá novos sentidos às baterias. É como o citado Garrincha, que só inventou seus modos de driblar porque pela frente encontrou um marcador. O futebol do Mané, anjo de pernas tortas, só se completa diante da presença do lateral do outro time. Sem o outro, não há drible. Sem silêncio, não existe som.

O samba, no fim das contas, é o mais poderoso e complexo manancial de exercício de mundo, prática de espaço e tempo e criação de modos de vida do povo do Brasil. O samba não faz sentido por causa do som, mas pela ausência dele e pelas formas inusitadas de preencher o assombro do vazio com tambor e corpo. Nada muito diferente da vida cotidianamente inventada nas esquinas brasileiras. Por aqui, que não esqueçamos: cada tambor é um livro e cada bateria é uma biblioteca.

 

Luiz Antonio Simas é escritor, historiador, professor, poeta e compositor popular.


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