Por uma política das diversidades sem renunciar às lutas pela igualdade

Por uma política das diversidades sem renunciar às lutas pela igualdade

“Temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades.”

Boaventura Souza Santos

 

Nesse texto, o objetivo é apresentar uma breve análise de alguns deslocamentos que as bandeiras da igualdade e das diferenças implicaram para os conflitos políticos dos nossos tempos, com foco nas lutas pelas diversidades.

A principal tarefa histórica das revoluções burguesas durante os séculos 18 e 19 nos países centrais foi, sem dúvida, a universalização de determinada igualdade formal entre sujeitos de direito.

Ao constituir os indivíduos modernos com autonomia contratual e liberdades contra o Estado, ainda dotados de deveres e direitos, tais revoluções conseguiram consolidar um mercado de trocas e uma sociedade afinados com o capitalismo que se afirmava.

A ideologia econômica e política do liberalismo deu substrato a esses anseios de uma classe que rompia com as estruturas de hierarquia e de laços pessoais de servidão rumo à promessa de igualdade.

No entanto, a partir da “desconfirmação” que essas “mitologias jurídicas da modernidade” sofreram diante das desigualdades socioeconômicas produzidas pelo capitalismo, organizaram-se, cada vez mais intensamente, as lutas por justiça social e por igualdade material.

Tratava-se, assim, de radicalizar e aprofundar as promessas não cumpridas de uma igualdade aparente que convivia e se alimentava das desigualdades estruturais da sociedade.

As revoluções socialistas e os diversos matizes de reformismos, durante o séc. 20, levaram a uma busca incessante pela realização de um igualitarismo na distribuição de recursos e poderes em seus diversos planos: econômico, político, cultural etc.

Mas não demorou para que, no curso dos conflitos políticos, emergisse a percepção de que tão importante quanto as igualdades são nossas diferenças. As lutas redistributivas tiveram de conviver, na política, com reivindicações cada vez mais marcadas pelo direito ao reconhecimento.

Assim, movimentos sociais de cunho identitário como o feminismo, o negro, o LGBT, dentre outros, apresentavam demandas não apenas de igualdade material, mas sobretudo de reconhecimento da diversidade cultural (de gênero, de raça e de sexualidade) e de suas reivindicações específicas.

Foi se tornando cada vez mais claro que diferenças não precisariam, necessariamente, justificar desigualdades. Ao contrário, o direito às diferenças e às particularidades de cada grupo deveria ser assegurado para combater as desigualdades que marcaram a invisibilidade e as violências dirigidas contra tais setores vulneráveis.

Nessa linha, os programas de emancipação e as agendas políticas de transformação social não podiam mais prescindir, a partir desses deslocamentos, de uma perspectiva capaz de incorporar as demandas particulares.

É preciso destacar que isso não significa dizer que a luta pela justiça tenha deixado de ser material, mas ela se tornou complexa a ponto de incorporar outros marcadores sociais de diferença que são constitutivos das subjetividades políticas contemporâneas.

Aliás, vale frisar que o processo descrito acima não é linear e tampouco progressivo, como pode fazer crer essa breve análise esquemática.

Como afirmou Nancy Fraser, o desafio é “desenvolver uma teoria crítica do reconhecimento, que identifique e assuma a defesa somente daquelas versões da política cultural da diferença que possam ser combinadas coerentemente com a política social da igualdade”.

A justiça, hoje, portanto, exige tanto redistribuição como reconhecimentos. Não um contra o outro como um mal-entendido antigo das esquerdas parecia sinalizar, mas um com o outro.

Não se deve instituir uma “fila das prioridades” a fim de definir, de antemão, um etapismo a partir do qual as lutas sociais deverão passar, como se algumas conquistas devessem preceder e ter estatuto maior do que outras. Nada deve ficar para “depois da revolução”.

Classe, gênero, raça, sexualidades e demais recortes estão todos implicados em um mesmo processo histórico de manifestação da existência humana e de suas demandas por reconhecimento. Cabe-nos investigar e forjar mediações capazes de articular essas diferentes frentes em uma ação plural e inventiva, sem dogmatismos, com criatividade e com sensibilidade para as novas formas de agir e pensar a política.

Sem igualdade material, o debate das diversidades não passa de culturalismo ingênuo. Sem diversidades, a luta pela igualdade material só faz reproduzir estigmas e estratificações, afastando atores políticos centrais e boicotando as possibilidades de reinvenção democrática da nossa vida social.

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