Por uma ontologia da canção: poema e letra

Por uma ontologia da canção: poema e letra
O escritor e compositor Aldir Blanc (Foto: DIvulgação)

 

A relação entre poema e letra de música se triparte – pelo menos – em planos que podemos denominar assim: o teórico, o cultural e o contemporâneo. É claro que esses níveis se interpenetram, mas, para efeito de análise, podemos distingui-los, respectivamente, da seguinte maneira: 1) o plano teórico diz respeito às propriedades estruturais e incondicionadas do poema e da canção; 2) o plano cultural refere-se ao jogo de forças dos discursos no interior da cultura brasileira; 3) o plano do contemporâneo concerne à atualização histórica, neste momento, no Brasil, da relação entre poesia e letra de música.

1. Recentemente, em uma mesa de bar, um poeta e acadêmico dizia não entender a discussão acerca do valor dos letristas, pois, para ele, “Drummond seria necessariamente o melhor letrista” (desde que seus poemas sejam musicados), “posto que é o melhor poeta”. É precisamente nessa relação direta, nesse critério valorativo indiscriminado que reside a causa maior dos equívocos de juízo em relação à letra de música. A pré-condição para um juízo estético pertinente sobre a letra de música é a compreensão das diferentes propriedades estruturais do poema e da canção. Essa diferença, em uma palavra, é a seguinte: o poema é autotélico, dirige-se a si mesmo, sua estrutura é “simples” (discurso verbal, apenas), sua tarefa, como a de toda obra de arte, segundo a estética deleuziana, é pôr-se de pé, mas pôr-se de pé sozinho, através de seus próprios recursos; já a letra de música é heterotélica, dirige-se à totalidade estrutural a que pertence – a canção –, e por isso não deve pôr-se de pé, mas antes pôr de pé a canção, o que só será feito no jogo das reciprocidades e sobredeterminações de sentido que se dá no interior da estrutura “complexa” da canção (discurso verbal, linguagem musical).

Letra de música é portanto – e necessariamente – letra para música, não importa em que ordem cronológica foram feitas uma e outra (se a letra, primeiro, ou se a melodia): pois, de uma perspectiva estrutural, letra e música são sempre contemporâneas. Assim, se um letrista recebe uma melodia para “letrar”, ele o fará levando em conta essa espécie de superforma fixa que é a melodia-para-ser-letrada (mais complexa e mais restritiva que a forma fixa em poesia, já que exige que se respeite, não apenas o metro, a estrofação e o esquema de rimas, mas sílabas longas e breves, modulações, variações rítmicas, mudanças de intensidade, eventualmente até fonemas etc.), procurando criar uma letra que, junto a essa pré-estrutura, forme uma estrutura definida; da mesma maneira, se um músico recebe uma letra-para-ser-musicada, ele o fará levando em conta a pré-estrutura deste texto (uma letra-para-ser-musicada é uma pré-estrutura ou estrutura parcial), procurando atingir os mesmos objetivos de formar, ao cabo, a estrutura definida e definitiva da canção. É portanto neste para recíproco que se estabelece o fundamental de uma definição ontológica da canção. A canção é: letra-para-música, música-para-letra. Trata-se de uma estrutura complexa, e de uma técnica, a do cancionista, extremamente complexa. É por essa razão que Chico Buarque fala de sua grande dificuldade em fazer letras para outros parceiros: essa dificuldade deve-se às múltiplas e delicadas exigências da superforma fixa que é a pré-estrutura da melodia-para-ser-letrada (ao passo que quando o compositor é a um tempo músico e letrista, a margem de negociação entre as duas partes está todo o tempo sob seu controle).

De tudo se conclui, obviamente, que o juízo estético sobre a letra de música só pode ser feito da perspectiva da totalidade estética a que ela se dirige: a canção. Daí resulta a impertinência estrutural de enunciados do tipo: “a letra de música não resiste no papel, desamparada da música”. A letra não foi feita para o papel (o que significa: para si mesma, o para si do poema), mas para a música. Que haja uma tradição de letristas cujas letras possam, eventualmente, “resistir” no papel, isso não deve levar a confusões teóricas que resultarão em equívocos críticos. Uma letra de música pode ser, ao mesmo tempo, também um poema por uma espécie paradoxal de solidão suplementar: quando a letra, sem nunca deixar de ser-para-a-música, é igualmente para-si. Trata-se de um excesso, de um a-mais que entretanto não nos deve conduzir a uma hierarquização infundada: as letras-poemas não são melhores que as letras-letras, uma vez que o critério orientador do julgamento é a totalidade estética da canção.

2. Já está longe o tempo em que os negros tinham seus pandeiros apreendidos pelos chefes de polícia à la Major -Vidigal, ou que o sujeito que tocava violão era chamado de “capadócio”. Do malandro de Wilson Batista – de lenço de seda no pescoço para cegar o fio da navalha –, passando pela contra-imagem do sambista em Noel, até chegar ao estatuto de artista pop do cancionista, muitas águas correram e a canção desembocou no século 21 como um grande business, um mercado de altas cifras, em que pese a crise da indústria fonográfica e o estado de incerteza provocado pela pirataria e pelas novas tecnologias (e seu potencial a um tempo democratizador e ilegítimo). A canção popular tornou-se, no decorrer do século, uma força da cultura brasileira, uma força de representatividade internacional. Entretanto, na relação entre a canção popular e alguns dos demais discursos que compõem a cultura, observa-se ainda hoje uma espécie de tensão.

Quem acompanha a produção crítica sobre a canção popular brasileira deverá provavelmente concordar em que, se do ponto de vista da fundamentação teórica das propriedades estruturais da canção a mais decisiva contribuição vem sendo, já há pelo menos uma década, aquela de Luiz Tatit (como o concede, por exemplo, o brasilianista inglês David Treece), do ponto de vista do esclarecimento das especificidades culturais da canção popular no Brasil, o trabalho mais importante vem sendo feito por José Miguel Wisnik, desde os anos de 1970, mas atingindo sua formulação a um tempo mais abrangente e sintético no recente ensaio -“Machado maxixe” (publicado no livro Sem receita, Publifolha, 2005). Resumidamente, Wisnik alerta para o caráter híbrido e complexo da canção popular no Brasil, capaz de conciliar mercado e diferença, radicalidade estética e pregnância social, cultura letrada e cultura oral, folclore e vanguarda etc. É essa complexidade que exige instrumentos críticos adequados, diante dos quais a crítica cultural de matriz adorniana, por exemplo, acaba por tornar-se uma espécie de ideia fora do lugar.

A contribuição de Wisnik encontra eco – ou, mais precisamente, ecoa – nos inúmeros trânsitos entre a cultura letrada, acadêmica, intelectual e a canção popular ao longo do século 20, no Brasil (como o mostrou Hermano Vianna, em seu O mistério do samba). Catulo, Orestes Barbosa, Noel (cuja fatura textual era rigorosamente moderna, como o demonstrou Affonso Romano em seu Música popular e moderna poesia brasileira), Caymmi, Jorge Amado, Vinicius, o tropicalismo, Aldir Blanc, Leminski, Cazuza, Waly Salomão, Antonio Cicero, Arnaldo Antunes são alguns, cada um a seu modo, dos mediadores culturais que promoveram passagens entre a canção popular e a literatura ou o pensamento crítico sobre a cultura brasileira. O saldo de um século dessas transas estético-discursivas é, quero crer, a amenização da resistência a se considerar a canção popular como campo cultural capaz de produzir obras de inestimável valor estético, para muito além de um mero entretenimento gerador de mitos pops e movimentador de um mercado milionário.

Como membro ativo da comunidade acadêmica posso atestar a (embora não-consensual) aceitação da canção popular nos estudos acadêmicos, não como objeto apenas de interesse sociológico, mas como produção estética de grande valor. Inúmeras publicações, acadêmicas ou não, vêm contribuindo para uma avaliação mais pertinente da canção popular brasileira. É certo que, em meio a isso, ainda espocam, na imprensa como no meio acadêmico, intervenções territorializantes e ressentidas contra a canção popular. O sentido geral costuma ser algo como: a nós, poetas e intelectuais, o prestígio; aos compositores, o sucesso espetacularizado. É importante, contudo, lembrar que a triste situação cultural de esvaziamento do discurso acadêmico não deve conduzir à diminuição do valor da canção, o que só serve para piorar as coisas.

3. A relação entre a poesia e a letra de música na produção contemporânea de canção popular no Brasil é o nível, a meu ver, mais difícil de se pensar. Há a tentação de se afirmar que passamos por um momento, após a grande aproximação das décadas de 1960 e 1970, de distanciamento entre a linguagem da poesia contemporânea e a linguagem da canção popular. Com efeito, há uma perfeita ignorância por parte de muitos jovens compositores em relação à produção da poesia contemporânea. Além disso, o fato mesmo de o mercado da canção popular ter-se agigantado ao longo das últimas décadas (para reduzir-se drasticamente nos últimos anos) influi, é claro, no nível estético: um jovem compositor já começa a produzir, hoje, tendo de levar em conta as injunções e exigências de um tal mercado. Isso faz com que o horizonte da produção tenha de se equilibrar em algum lugar entre o mercado e a invenção. É a presença cada vez mais coercitiva desse mercado que nos faz terminar a leitura do livro de Wisnik perguntando se a canção popular, hoje, ainda se configura como o amplo espaço cultural que ele tão bem descreve, referindo-se, porém, sobretudo a compositores das décadas de 1960-70.

Ao mesmo tempo, há inúmeros sinais que contradizem essa direção de pensamento. Compositores, para ficar apenas entre os surgidos a partir das décadas de 1980 e 1990, como Arnaldo Antunes, Adriana Calcanhoto, Zélia Duncan (que inclusive faz faculdade de letras), Alice Ruiz, Fred Martins, entre outros, abrigam a produção poética contemporânea em seus trabalhos. Além disso, há outras formas de aproximação entre literatura e canção popular: três dos livros mais importantes lançados no Brasil, no ano passado, reúnem ensaios de autores que são, a um tempo, cancionistas e ensaístas ou escritores: Wisnik, Antonio Cicero e Caetano Veloso (pois Caetano é seguramente um ensaísta, um inventivo ensaísta, e sobretudo um brilhante leitor). O último romance de Chico Buarque, Budapeste, coloca-o, a meu ver, sem favor, no primeiro time da prosa brasileira contemporânea. O poeta Eucanaã Ferraz vem organizando livros, como Letra só e Veneno antimonotonia, que promovem aproximações entre poema e canção, questionando as territorialidades pré-estabelecidas.

Seja como for, penso que o essencial desta discussão reside na compreensão das especificidades estruturais da canção (tal como desenvolvi na primeira parte deste texto), compreensão que nos leva a pensar que efetivamente importante é a manutenção do espaço cultural da canção como um lugar híbrido, inventivo e socialmente pregnante: lugar de uma construção afirmativa da cultura brasileira.

Francisco Bosco é escritor, ensaísta, professor de Teoria Literária e letrista de canção popular.


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