Por um teatro que coloque o mal em cena

Por um teatro que coloque o mal em cena
Cena do espetáculo 'Branco, o cheiro do lírio e do formol', de Alexandre Dal Farra (Foto: Bob Sousa)

Não me interessa tanto um teatro que mostre como o mundo deveria ser, mas sim que possibilite que olhemos justamente para o que o mundo não deveria ser (mas ainda é)

 

Desde pelo menos 2009, inicialmente dentro do Tablado de Arruar, mas depois também fora dele, venho desenvolvendo uma determinada abordagem da linguagem teatral, juntamente com artistas como Clayton Mariano, Janaina Leite, Alexandra Tavares, André Capuano, Ligia Oliveira, Vitor Vieira, Eduardo Climachauska, entre outros muitos parceiros não tão constantes. Tal abordagem, ou proposta teatral, poderia ser caracterizada sobretudo pela busca de colocar o mal em cena. Trata-se de um teatro que não propõe caminhos positivos, pedagógicos, que não visa criar convicções; ao contrário, aborda justamente aquilo que carregamos conosco sem nenhum orgulho: toda a opressão e tudo de ruim que, mesmo que façamos todos os esforços para esconder, existe em nós e nos forma.

Nesse sentido, não me interessa tanto um teatro que mostre o que deveríamos ser, nem que mostre como o mundo deveria ser, mas sim um teatro que possibilite que olhemos justamente para o que o mundo não deveria ser (mas ainda é). E para o que nós não deveríamos ser (mas ainda somos). Todos nós carregamos, queiramos ou não, o gene da estrutura violenta, opressora, desigual que nos forma. Ninguém está livre das amarras do mundo onde nasceu. E o nosso mundo é péssimo. Fazer um teatro que simplesmente se limpe disso tudo para entrar em cena como se estivéssemos prontos para adentrar o paraíso simplesmente não me interessa.

O lugar do teatro tem servido, nesse sentido, para que se abra espaço, justamente para que tudo aquilo que nós normalmente escondemos (e, ao esconder, enrijecemos) possa se mover. Para que tudo o que é tabu possa deixar de sê-lo – porque o movimento enfraquece o mal; o espaço enfraquece o mal, e o simples esquecimento, a repressão, a tentativa de exclusão só o fortalece.

Um tal teatro, uma tal arte, nunca se propôs e nunca esperou ser consensual. Ele gera, por isso, quase sempre, reações as mais diversas, e isso é sempre para mim um ótimo sinal, porque trata-se de um teatro necessariamente contra o consenso. Se há algo que pretendo sempre questionar, em todas as peças, livros, roteiros que fiz ultimamente, é o consenso. Porque quase sempre onde há consenso, há algo sendo escondido. Daí a tendência a tocar em pontos tensos, inflamados, da atualidade: trata-se de, ali onde o consenso está querendo mais fervorosamente se impor – exatamente ali – se posicionar, e olhar para os outros lados da questão, mesmo que a necessidade do consenso se instaurar decorra por vezes de questões legítimas.

O dramaturgo Alexandre Dal Farra (Foto: Reprodução/Facebook)

Ao contrário, o teatro que tenho buscado procura tocar em pontos obscuros, invisíveis. Mas isso sempre tem que acontecer, antes de tudo, em mim mesmo – em nós mesmos. Essas obscuridades são as nossas, de quem faz a peça também, e faz parte desse teatro que não tenhamos um olhar para o público que difira significativamente do nosso olhar para nós mesmos. Se algo se mover no público, nessas peças, será sempre porque esse algo terá se movido, antes, em nós mesmos.

Tal abordagem da forma teatral obviamente não é uma invenção, não é um estilo, não é uma criação vanguardista. Muitos são os artistas na atualidade cujas propostas, a meu ver, têm proximidade com este ponto de partida, dentro e fora do país, e de formas muito diversas entre si – poderia citar Frank Castorf, Elfriede Jelineck, Angelica Liddel, Antonio Araújo, Christoph Schlingensief, Sergio Blanco, Rodrigo Garcia, Maria Alice Vergueiro, entre tantos outros, e isso só para ficar no teatro contemporâneo de grande reconhecimento.

A estrutura em que estamos inseridos deixa marcas no nosso ser. Por mais que tentemos esquecê-las, elas estarão lá. Acho que tenho tentado olhar para isso em todas as minhas peças recentes. Em alguns momentos isso se fez com violência, em outros, com tristeza, em outros, com graça, em outros, de forma desajeitada e inclusive por vezes mal resolvida. Mas é um norte. É um projeto. É disso que se trata. Não é uma peça só. Não é um acidente. É intencional. Em alguns momentos isso pode gerar peças que agradem a muitos. Em outros momentos, peças que não agradem nem a nós mesmos. Algumas resultam em trabalhos bem acabados e equilibrados, outras, em peças difíceis. No entanto, para além dessas características, trata-se de um projeto que não se encerra em uma ou outra produção.

O país, o mundo, estão em um momento extremamente autoritário, retrógrado e reacionário. Um teatro que não se suje nem um pouco com nada disso, que não veja esse horror como nosso, mesmo que possa ajudar a entender a realidade, será a meu ver um teatro insuficiente. Porque já faz tempo que entender não basta. A cena precisa abrir espaço para que apareçam ali também as razões obscuras que fazem justamente com que entender seja insuficiente. As formas subterrâneas que o poder encontra de se manter, e de nos impedir de alterá-lo. A forma como o poder está em nós. Abrir espaço para que isso possa se mover, se desestruturar. O que fazer com isso, para onde ir, não é esse teatro que apontará – outros o farão, e o fazem.

Como diz Walter Benjamin: “O caráter destrutivo não idealiza imagens. Tem pouca necessidade delas, e esta seria a mais insignificante: saber o que vai substituir a coisa destruída. Para começar, no mínimo por um instante: o espaço vazio, o lugar onde se achava o objeto, onde vivia a vítima. Com certeza haverá alguém que precise dele sem ocupá-lo.”

Alexandre Dal Farra é escritor, diretor e dramaturgo

(1) Comentário

  1. mais uma vez, o espaço é cedido pra quem já tem palanque continuar a narrativa do “gênio incompreendido”, ao invés de ser oferecido àqueles que são, mais uma vez, silenciados e invisibilizados, ao se tornarem objeto de discussão, tendo sua capacidade de falar por si deslegitimada. sim, o artigo se pretende ir além da “polêmica” envolvendo “Branco”. mas negar que ele serve de instrumento de justificação do autor e cia em relação à peça, é fingir cegueira. esse espaço deveria ter sido cedido àqueles, muitos, que estão a fazer o contraponto dessa narrativa que essa coluna vem solidificar.

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