“Por que o senhor atirou em mim?”
Em memória de Douglas Rodrigues, 17 anos, assassinado por um PM em 27 de outubro de 2013
É muito importante fazer uma análise da violência atual, mas isso não trará Douglas Rodrigues de volta. A impotência das análises serve, no entanto, à violência. E alimenta o senso comum.
Sabemos que vários outros jovens vem sendo mortos pela Polícia Militar e isso é, por incrível que pareça – por mais estarrecedor que pareça – uma explicação total do que vivemos em nosso país. Para o bom leitor não é preciso nem meia palavra. A pergunta feita por Douglas quando tomou o tiro no peito que o levou à morte é estarrecedora porque já está respondida e ela põe em cena a nossa falência como sociedade.
No entanto, não creio que ideia de que temos o governo que merecemos explique o que estamos vivendo. Nós merecemos mais, merecemos algo melhor. Como Douglas merecia. Eu penso nos pais de Douglas, em seu irmão. Em seus colegas e penso que não merecemos isso. Que Douglas merecia um futuro bom. Li que um motorista de caminhão incomodou-se com a manifestação em nome de Douglas, que incomodou-se com os caminhões queimados, com a interrupção da rodovia Fernão Dias no dia seguinte à morte de Douglas. Pensei que aquele que não tem capacidade de colocar-se no lugar dos outros, que não consegue imaginar o sofrimento alheio, é alguém que precisa rever seus conceitos. É claro que não desejamos sofrer as consequências diretas das dores alheias, mas não se trata de uma dor alheia. E vivemos neste país, todas as consequências da ditadura cínica que nos quer arrebentar a cada um que não concorde com ela. Que país é esse? O país onde Douglas Rodrigues de 17 anos foi morto à queima roupa por um PM.
Neste sentido, cito o senhor taxista com quem conversei ontem. Ele perguntava mais ou menos assim: por que o governador Alckmim se pronunciou – estarrecido e todo dominador – contra o espancamento do coronel dia desses e por que o mesmo governador não pronunciou-se quando do assassinato do menino?
Douglas Rodrigues foi assassinado pelo soldado Luciano Pinheiro. Luciano Pinheiro, quem será? Não o conhecemos. Poderíamos saber o que pensa? Como se sente? Por que fez o que fez? É muito difícil colocar-se no lugar dele. Não é tão difícil colocar-se no lugar de Douglas. Lembro dos mortos vivos que, nos filmes, tiram a vida de outro sem explicação. Não gostaria de reduzir a interpretação social dos fatos, mas PMs e governador atuam como mortos vivos. O governador representa-se como a figura abjeta que, como um conde drácula, governa esse estado de coisas, esse reino do mal estar, esse império do ódio em que não haverá justiça nem para vivos, nem para mortos. Por isso talvez a campanha “Fora Alckmin” seja toda movida por jovens que tem medo de uma figura dessas que representa o mal radical entre nós. Rei do império do ódio em que todos estão condenados à morte diariamente.
Mas eu não gostaria de escrever sobre a questão da violência com nenhum tipo de exagero retórico. Tenho visto muito exagero retórico e muita histeria por parte da televisão. A televisão que eu não assisto diariamente (não tenho tv em casa há anos, mas vejo tv por aí nas ruas) tem sido o principal aparelho de repressão e precisamos tomar cuidado com ela como sempre. Televisão é um meio de comunicação que deverá ser democratizado como qualquer outro. É para isso é que tem trabalhado a midia alternativa que sustenta a democracia no meio da atual ditadura cínica dos meios de comunicação fazendo a cabeça do povo com a retórica baixa e imbecilizante que usam. Praticam o pior tipo de violência simbólica, aquela que conserva o estado injusto contra as pessoas enquanto, ao mesmo tempo, seduz as pessoas.
Assim como temos que “ocupar” o governo temos que “ocupar” a televisão… Mas sem violência e com muito cuidado, por que o assassinato é, na nossa democracia cínica (uma ditadura cínica…), realmente distribuído para todos pelo governo.
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O assunto da violência é muito complicado e no âmbito do senso comum é muito difícil falar dele. Tenho notado que as pessoas defendem certos tipos de violência mesmo quando querem combatê-la e que criticam a mesma violência que praticam ficando enroladas num círculo vicioso. Vejo que há uma propaganda contra a violência dos black blocs e não contra a violência dos policiais. Por que uma violência é permitida ou consentida e outra não? Será que podemos avaliar isso com cuidado? Outra questão: por que choca tanto que os vidros dos bancos sejam quebrados e não choca tanto que professores sejam espancados? Estamos em uma sociedade que valoriza mesmo mais os vidros do que as pessoas? Ou será que os meios de comunicação denominam “vândalos” um outro – e primeiro – para evitar que sejam chamados eles mesmos de “vândalos” pela violência que praticam com sua comunicação cheia de violência? O uso da expressão “vândalo” e “vandalismo” entre nós tem sido ridícula. Mas quem se dedica a pensar no que está realmente se passando? Onde está nosso discernimento?
A complexidade da violência atual, expressa no espancamento e assassinato que PMs tem dirigido à população a mando do Estado tem também combinado com o estranho “direito” que muitos praticam em particular. E não é só no governo e na PM. Tenho percebido pelo menos dois tipos de mentalidade discursarem no mundo cotidiano: 1 – uma que é a do fascista potencial que encontra nesse momento o seu ódio ao outro e seu desejo de humilhar realizado; 2 – o cidadão que busca ser razoável e olha para o nexo entre particular e universal, entre individuo e sociedade. Esse último ainda deseja um mundo melhor.
O que os outros realmente querem? Douglas teve a resposta. Nós todos agora sabemos do que se trata.
Penso que tudo o que venhamos a dizer só pode ser dito em nome de que a morte por assassinato de nosso jovens pela polícia não se repita.
Que Douglas não seja esquecido.