Por que o bolsonarismo organizado está chocado?
A chapa esquentou para a família Bolsonaro e para o bolsonarismo organizado (Foto: Marcos Correa/PR)
Olá amigos, esta é a minha centésima coluna no site da Cult. Quem diria que passaríamos tanto tempos juntos, desde que em 2018 aceitei o convite de Daysi Bregantini para fazer comentários sobre política e comunicação política neste espaço? Queria, portanto, antes de tudo, agradecer à Cult, por me garantir a liberdade de pensamento e pauta, e o respeito com que tenho sido tratado desde o primeiro dia, mas agradecer também a você leitor, que tem me acompanhado aqui, por cem semanas, tateando na confusão e na voracidade da política nacional, tentando extrair sentido do caos em que estamos metidos nos últimos anos. Se me acompanham é porque compartilham comigo as crenças na democracia liberal, sem partidarismo nem dogmatismo cego, e apostando na dignidade da política, por mais que esses tempos sombrios nos indiquem o contrário. Meu sincero muito obrigado a todos, que têm sido meus companheiros de jornada justamente em um dos períodos mais turbulentos da vida política brasileira.
E voltemos à pauta da semana, que desde a última vez em que nos falamos aconteceu tanta coisa que daria para alongar por dias esta conversa de minutos. Resumo em uma frase tudo o que aconteceu da sexta-feira passada até hoje: a chapa esquentou para a família Bolsonaro e para o bolsonarismo organizado. Na sexta-feira o ministro de Estado Ramos, general da ativa, deixou consignado em uma entrevista a ameaçadora frase, dirigida à oposição do STF e do Congresso, “não estica a corda”. Secundando o próprio presidente que já havia pronunciado o desde então célebre mote “Não vamos admitir mais interferência, acabou, porra”. No domingo, o ministro Weintraub, num ato que selou o seu destino, participou de uma manifestação bolsonarista em local proibido pelo GDF, em que repetiu a sua máxima de que os vagabundos do STF deveriam ir para a cadeia.
Todo esse conjunto recebeu como resposta imediata, para além dos manifestos e pronunciamento de autoridades deplorando as declarações, uma liminar do ministro Fux, do Supremo, estabelecendo que a atuação das Forças Armadas tem limites, sim, que a Constituição não autoriza ao presidente recorrer às Forças Armadas contra o Congresso e o STF, e que tampouco concede aos militares a atribuição de moderadores de eventuais conflitos entre os demais Poderes, conforme uma interpretação distorcida do artigo 142 da CF que os bolsonaristas andavam pregando.
Pois, sim, a corda foi esticada muito além dos que se imaginava e ainda não acabou o pesadelo do bolsonarismo. No plano dramático e histérico tivemos na sexta o desmonte do acampamento da milícia armada em defesa do bolsonarismo denominado “Os 300 do Brasil”. Que, no sábado à noite, foi lançar fogos de artifícios contra o edifício do STF, ante a mais completa inação da polícia, chamando o STF e o Governo do Distrito Federal de “comunistas bandidos e vendidos”. Este mesmo grupo ensaiara antes algo como uma invasão do Congresso Nacional, contido pela polícia legislativa. O que deu margem para a abertura de um novo inquérito na PF sobre o financiamento e a organização de atos antidemocráticos.
Com isso, agora temos dois inquéritos com enorme potencial de dano ao bolsonarismo. O assim chamado “inquérito das fake news”, conduzido pelo próprio STF, que elucida ameaças contra os juízes da Suprema Corte, e o novo inquérito sobre planejamento e financiamento de atos contra o Supremo e o Congresso, conduzido pela PF a pedido da Procuradoria da República. Ambos tendo gerado efeitos imediatos sobre as hostes bolsonaristas, como a prisão, na segunda-feira, de Sara Giromini, a Sara Winter, militante extremista do bolsonarismo e líder dos 300, e mais cinco pessoas do seu grupo, a pedido da Procuradoria da República e autorizada por Alexandre de Moraes. Na terça de terror do bolsonarismo, o mesmo ministro determinou a quebra dos sigilos bancários de 10 deputados e um senador bolsonaristas, como medidas para identificar financiadores de manifestações antidemocráticas. Além disso, a Polícia Federal cumpriu 26 mandados de busca e apreensão contra 21 pessoas, entre as quais empresários, blogueiros, YouTubers e um deputado. O bolsonarismo organizado entrou em convulsão.
Em nenhum país civilizado alguém ficaria surpreso, quanto mais chocado e escandalizado, como os bolsonaristas pareceram estar, por ter o STF despejado a sua força contra quem há meses vem tratando os juízes da Suprema Corte como se fossem cachorros, inclusive expondo e atacando as suas famílias. Aliás, por muito menos que expor juízes e seus familiares, fazer apologia da ditadura, ou literalmente atacar o edifício do STF, já teria gente na cadeia e um zilhão de processos em qualquer lugar do mundo. Apesar disto, os bolsonaristas parecem surpresos, incrédulos e indignados, a se acreditar nos vídeos e declarações publicados nas plataformas digitais pela parte mais influente do bolsonarismo organizado.
Sabem por que estão sinceramente surpresos? Porque os jovens deputados bolsonaristas e a ponta de lança do bolsonarismo mais influente em ambientes digitais é gente que entrou na política de 2013 para cá, e cujo treinamento e formação política coincidiu com o período em que foi liberado caçar e trucidar petistas a céu aberto em mídias sociais. Por sete anos o jornalismo assistiu à incivilidade, à grosseria antirrepublicana. Algumas vozes foram contra, mas o grosso da instituição do jornalismo até registrou e estimulou. O STF isentou-se. Enquanto a sociedade brasileira, em surto, atiçava “vai, morde, mata, trucida”. Foram todos criados no Vale-Tudo Pós 2013 em que quem mais morde, xinga e ameaça mais é recompensado, e nunca punido. No mundo pós 2015, então, formou-se a convicção de que você pode fazer o que quiser em política, fora corrupção, que está tudo bem. Ora, o resultado não poderia ser outro, temos uma geração inteira de trogloditas políticos.
Divergir com civilidade, aceitar os limites constitucionais dos próprios apetites políticos, respeitar as regras do jogo, entender a diferença entre adversários políticos e inimigos, são todos elementos que faltaram à sua formação política. Foram treinados para morder e dilacerar e não para conversar e negociar, porque é assim que tem sido a política nacional nesses últimos e fatídicos sete anos.
Tratam Gilmar Mendes, Dias Toffoli e Alexandre de Moraes do mesmo jeito que trataram Dilma: de vaca, puta, verme, quero impeachment, vagabundos/a, quero-os/a na cadeia e coisas deste padrão. Como lá atrás ninguém falou nada, e ainda ganharam uma eleição como recompensa por tanta selvageria, por que com o STF e o Congresso não se pode fazer o mesmo? Foram sete anos de adestramento “cívico” como hienas políticas desses que hoje são lideranças consagradas e até portadores de mandatos populares. Sempre na mesma toada. “Quer dizer se podia mandar a presidente tomar naquele lugar, mas não se pode mandar Gilmar Mendes fazer o mesmo?”, dizem, sinceramente surpresos com este Alexandre do mal que insiste em dizer que há leis e limites neste país.
Pois é. Parece que tem.
Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)