Por que Bolsonaro continua pregando aos convertidos?
(Fotomontagem: Henrique Galdi)
Bolsonaro foi de novo à ONU falar para os seus seguidores. Podia ser a famosa live da quinta-feira, podia ser a conversa cotidiana com os fiéis que se aglomeram para uns instantes junto ao seu pastor no Alvorada. Como sugestivamente anotou o jornalista Otávio Guedes, por pelo menos um dia o Cercadinho do Alvorada foi transferido para Nova York. A live da quinta, também.
Antes disso, contudo, o presidente fez “política de imagem”, aquele tipo de ação política que não trata de questões substanciais, mas de construir a percepção pública sobre alguém. Comeu pizza na calçada num dia, em uma comitiva de machos, e picanha bem passada no outro, para mostrar que chegou à metrópole do mundo na condição de presidente, mas continua o mesmo frequentador de churrascaria da Zona Norte do Rio de Janeiro. Desdenhou de quem protestava, xingou a imprensa. O filho foi à Fox News dizer que o prefeito da cidade que o acolhia era marxista, enquanto admoestava os norte-americanos de que aquele país podia virar uma Venezuela. Já o ministro da Saúde que o acompanhava foi ao fundo da vã mostrar o dedo do meio a quem os vaiava. O papel era o de uma comissão liderada por um rebelde antissistema, um homem autêntico que não se dobra às convenções, às frescuras cerimoniais, às futilidades litúrgicas das elites.
Na Assembleia das Nações Unidas despejou o familiar combinadinho de fantasias, parcialidades e mentiras.
E voltou a fazer política de imagem, dessa vez no papel do último herói “invacinável”, mesmo à custa de levar um esporro do prefeito de Nova York e uma descompostura de Boris Johnson. Mesmo dando trabalho ao cerimonial das Nações Unidas que se esforçou para evitar que o bruto antivacinas chegasse perto de John Biden, que falou depois dele. Mesmo proporcionando o espetáculo de funcionários correndo para limpar o púlpito possivelmente contaminado pelo último líder mundial não vacinado, antes que outros oradores o pudessem usar. Para completar a obra, deixou atrás de si o rastro de membros da sua comitiva contaminados pelo coronavírus, entre eles, por tosca ironia, o ministro da Saúde e, ao que parece, o próprio filho. Pereça o mundo, se necessário, Bolsonaro resistirá, como Asterix aos romanos, ainda que sitiado por vacinadores por todos os lados.
Bem, todo mundo sabe o que tudo aquilo significou. Era um espetáculo e um discurso que se dirigiu restritivamente ao nicho bolsonarista, pois só nele poderia encontrar o eco que procurava e produzir os efeitos motivacionais desejados. E quanto mais o presidente se dirige ao núcleo radical de seus seguidores, mais vai produzindo, nesta ordem, consternação, reprovação, repulsa e asco de todos os outros públicos. Pois é evidente, a este ponto, que a tática de captura de afeto e adesão pública de Bolsonaro é constituída de tal maneira que não é possível crescer em mais de um tipo de público ao mesmo tempo. É um movimento de gangorra: se um lado sobe, o outro necessariamente desce, simplesmente porque mais do que o candidato, os lados é que se movem por contrariedade.
O resultado da repetição sistemática desse procedimento se pode ver facilmente. Foi retratado, por exemplo, em pesquisa publicada pelo Ipec nesta quarta-feira (23/9). Lula ganha de Bolsonaro por mais de 20 pontos no primeiro turno nos dois cenários pesquisados, 53% consideram o governo ruim ou péssimo, 68% reprovam o modo como Bolsonaro governa o país e 69% não confiam no presidente. Os números são consistentes com a tática adotada: a prioridade não é expandir, mas compactar.
Isto posto, temos que nos perguntar qual o sentido de manter uma estratégia que não dá sinais de que pode ser vencedora. Pregar aos convertidos, portanto, parece uma loucura para quem tem tanto apego ao poder e, ainda mais, precisa ganhar a próxima eleição. Por que, então, adotar esse padrão? Por que não mudar de rumo e de táticas? Por que gastar tanta energia repetindo um modelo de comportamento e discursos que tornam a próxima eleição presidencial impossível?
A minha hipótese é que Bolsonaro não sabe como ganhou a eleição passada. Nós o sabemos, Bolsonaro foi um anão nos ombros do gigante que era o antipetismo em 2018, mas ele simplesmente não sabe como veio parar aqui. Então, repete o que é de sua natureza, o que sabe fazer, na esperança de que fazendo mais do mesmo e com mais intensidade a mesma coisa se repita.
Na verdade, Bolsonaro está usando a tática certa, mas para um candidato a deputado que precisaria de 150 mil votos no Rio de Janeiro para continuar em Brasília, e que sabe que pode encontrar todos os votos de que precisa em um público só. De 1991 até 2014, já na onda do antipetismo, as suas votações oscilaram entre 80 e 120 mil votos. Durante todo esse período, era um deputado de nicho, que passava para coletar votos nas famílias de militares e policiais. A sua mentalidade, suas atitudes e, sobretudo, os seus discursos foram formatados para falar com esse público.
É para eles que foi organizado o seu repertório de temas e de formas de expressão. Da parte militar das Forças Armadas vieram as fantasias anticomunistas, o horror à esquerda e a convicção de que um Estado dominado por civis é fraco, desorganizado e corrupto. Dos policiais militares e civis vieram as pautas corporativas da classe, o sentimento de que a política é parte dos problemas sociais e não a solução deles, o horror aos freios e limites que o Estado de Direito impõe à atuação contra o crime, a compensação de que a criminalidade pode ser resolvida a tiros desde que parem de amarrar as mãos dos homens da lei e dos homens de bem, o ódio aos Direitos Humanos entendidos como proteção à bandidagem, o enorme sentimento de inferioridade contra o que considera as elites intelectuais, científicas e artísticas.
Quando se fala para um nicho, observam-se algumas regras básicas, que Bolsonaro aprendeu a seguir com extremo zelo. Consiga o máximo de atenção possível, nem que seja preciso se destacar pelo exagero, extravagância ou agressividade. Produza e mantenha a imagem apropriada para o seu nicho. Controle a dramaturgia: construa uma história e um personagem e se mantenha consistentemente neles. Há 30 anos Bolsonaro faz isso com sucesso, por que imaginaria mudar?
Isso é o que Bolsonaro é e acredita. Os outros temas que incorporou são verificados com base na compatibilidade aos seus sentimentos mais arraigados. Lutará até a morte contra as políticas de vacinação ou contra políticas ambientais porque, do outro lado da margem, estão, na sua percepção do mundo, os públicos contra os quais acumula um ressentimento atávico e profundo: as elites intelectuais, a esquerda, gente de Direitos Humanos, das artes e da cultura, jornalistas, todos “vagabundos comunistas e globalistas”. Não há teoria, exame racional, projeto de país, visão de mundo, nem mesmo valores morais envolvidos nessa decisão, apenas ressentimento e a certeza intuitiva de que ele e os seus inimigos imaginários precisam estar de lados opostos e contrários.
O problema, para ele, é que Bolsonaro não é mais o deputado dos militares, policiais, milicianos e anticomunistas do Rio de Janeiro. Além disso, não há mais o mesmo nível antipetista como sentimento social a funcionar de combustível e câmara de eco para magnificar o que ele diz e faz. Ao contrário, a sua insistência em continuar falando para o seu distrito eleitoral está empurrando aceleradamente as intenções de voto para Lula. É o antibolsonarismo, hoje abundante, o elevador expresso de que Lula se beneficia amplamente e, ao que tudo indica, será o grande eleitor de 2022.
O Bolsonaro que aliena de si a maior parte dos cidadãos é hoje o maior cabo eleitoral de Lula, pois as pessoas nem mais estão querendo ponderar alternativas, formular um plano de saída sustentável, demorar-se em sutilezas, querem é ter certeza de que ele se vá. De modo que quanto mais ele fala e representa para os seus, mais se transforma em um suplício para a maior parte da população que já não confia nele nem o suporta. É uma agonia da qual as pessoas só querem se livrar da forma mais garantida possível.
Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)