Populista não, sectário

Populista não, sectário

 

Para quem não sabe, o populismo é um dos temas mais preocupantes hoje nos estudos sobre democracia. Afinal, nas últimas décadas, governos e movimentos populistas da esquerda e da extrema-direita pipocaram em toda a parte, com consequências sérias na desestabilização de sociedades democráticas. Vimos primeiro a emergência de líderes populistas da esquerda latino-americana como Rafael Correa, Evo Morales, Hugo Chávez e Nicolás Maduro. Mas hoje também se reconhece como populistas o estilo e o governo de Donald Trump, assim como os movimentos que sustentam Marine Le Pen e Geert Wilders, na França e nos Países Baixos, o Movimento 5 Estrelas na Itália, o Syriza na Grécia, o Podemos da Espanha, Erdoğan na Turquia, dentre tantos outros.

De alguma maneira, o populismo é o sintoma de uma civilização que finalmente consolidou a sua aceitação da democracia liberal como valor universal, mas que não é imune a formas de autoritarismos que se disfarçam com o jargão democrático. Como diz Jean-Werner Müller, que escreveu uma teoria geral do populismo em 2016 (What is populism? University of Pennsylvania Press), na fachada, a democracia parece um valor de que ninguém quer abrir mão ou um modo de funcionamento do Estado que ninguém quer abertamente desafiar. O que não quer dizer que não deixem de tentar.

O perigo para as democracias de hoje não é uma ideologia abrangente que negue sistematicamente os ideais democráticos. O perigo é o populismo – uma forma degradada de democracia que promete fazer bem aos ideais mais elevados da democracia (“Que o povo governe!”). O perigo vem, em outras palavras, de dentro do mundo democrático – os atores políticos que representam o perigo falam a linguagem dos valores democráticos.

Por isso é natural que, no caso brasileiro, a gente se pergunte se Bolsonaro é mais um caso da praga populista. E, de fato, para quem define o populismo como um antielitismo a resposta é “sim”. O bolsonarismo, como o trumpismo e outros ismos da nova extrema-direita, é um antielitismo, e um muito radical. Para ele, basicamente tudo (política, economia, educação, magistratura, jornalismo, cultura, ciência e o que mais se conseguir pensar) está dominado pela elite da esquerda, dos liberais (onde liberal significa “progressista”) e do globalismo – as Três Pragas do Apocalipse. Bolsonaro, por outro lado, é o povão autêntico, sem frescuras nem hipocrisia, enquanto Trump representa a alma da América profunda e por aí vai.

Mas desçamos à vida real para tirar a prova dos nove. Como pode Bolsonaro ser um populista se, enquanto inundações, desmoronamentos e vazamentos de barragens castigavam duramente centenas de municípios baianos e mineiros, ele continuou a publicar fotos posando com jet sky em balneários do Sudeste e do Sul, como uma subcelebridade deslumbrada do Instagram? Se no mesmo dia em que os jornais mostravam o desespero das pessoas que perderam tudo nas enchentes, exibia-se também o presidente curtindo a vida adoidado, brincando de dar cavalo de pau, festejando com os riquinhos do Sul e se empanturrando de camarões sem sequer os mastigar primeiro?

Não se pode ser ao mesmo tempo populista e rei do camarote, ser povão e ostentar como um influencer do Instagram enquanto os brasileiros afundam em lama e entulhos.

O bom senso mandaria que ante o desastre o presidente fosse o primeiro em campo e aquele que tomaria a dianteira para a contenção de danos e para aliviar o sofrimento dos desabrigados, dos que perderam tudo. O populismo, por sua vez, determinaria que lá estivesse ele consolando velhinhas, salvando criancinhas e pets da lama, mangas arregaçadas, diretamente no meio do drama. Nem uma coisa nem outra ele fez, o presidente estava farreando com amigos.

O contraste entre o presidente instagramável e os muitos vídeos de tragédias e sofrimento publicados na mesma plataforma é certificado bastante de que o presidente não apenas é um sujeito desumano, incapaz de assumir as suas responsabilidades, e preguiçoso, como também de que o rótulo de populista definitivamente não lhe cai bem. Nem para populista Bolsonaro serve.

Objetam-me que na própria ideia de populismo há a percepção de que o populista não fala para “todo o povo”, mas para uma parte da população que considera “o povo autêntico”. Assim, seria possível ser populista e não se importar com todo a população.

Na verdade, não é exatamente assim. A ideia de que existe um povo único e homogêneo é certamente uma fantasia, mas só há populismo se o líder apostar tudo nesta quimera. Os seus liderados e partidários efetivamente não são toda a população, ao menos no começo do movimento, mas o populismo precisa criar e vender a ilusão de um povo único para chegar ao poder e para governar.

Claro, o populista, além de antielitista é também antipluralista, no sentido de que reivindica que apenas ele representa o povo, ninguém mais. Os seus concorrentes são parte de uma elite corrupta, egoísta e imoral, de modo que quando os populistas governam, automaticamente recusam reconhecer a legitimidade da oposição. Com isso, também a parte da sociedade que insiste em não se juntar ao líder carismático é transformada retoricamente em “elite privilegiada, impura ou vendida”.

Mas não se trata disso com Bolsonaro. O bolsonarismo é sim um antielitismo, e do pior tipo, o paranoico (todos nos perseguem!). E é um antipluralismo, desse que sataniza não apenas a oposição parlamentar e intelectual ao seu pacote de incompetências e maldades, mas trabalha incansavelmente para demonizar todas os sistemas de pesos e contrapesos do Estado que funcionam como constrangimento ou impedimento na implementação do seu projeto de poder.

O antipluralismo, contudo, não é uma característica apenas do populismo, mas de qualquer tipo de autoritarismo. É isso, afinal: Bolsonaro é essencialmente um autoritário, que só poderia desabrochar corretamente em um regime autocrático.

Bolsonaro está mais para um sectário do que para um populista. O oposto de populista é elitista, a contraposição a sectário é eclesial, universal. Sectário é o que funciona como seita, não como igreja. Uma seita é uma parte que se desgarra de uma igreja por se considerar, em comparação com a comunidade de que se aparta, mais pura do ponto de vista da doutrina, mais autêntica, mais verdadeira, mais próxima do que dizem as Escrituras e prescreve a fé, do ponto de vista da religiosidade. A seita se importa apenas com os seus, os puros, os do bem, que cuidam de reafirmar os próprios valores e separar-se do mundo e das suas tribulações. Os outros, ou são perdidos que odeiam a Luz ou infiéis a serem convertidos, nada mais.

Bolsonaro não se entende como o Líder de Todos (como na tradição populista do Führer, do Duce, do comandante), mas como o líder de uma seita que acabou de chegar a uma terra onde reina corrupção e pecado, e que precisa ser convertida à Verdade. Nem é populismo orgânico (o líder e o seu povo formam uma unidade) nem é populismo retórico (o líder diz que ama o seu povo, sofre com ele, padece as suas dores e dá a sua vida pela pátria), é puro sectarismo.

Ele governa para os seus, os outros precisam ser convertidos, mas, por enquanto, resistem e devem sofrer por isso. “A Bahia não é antibolsonarista? Pois então que se vire”. No sectarismo, quem não está conosco, está contra nós.

Já conhecemos na nossa história muitos governos autoritários populistas (Vargas) e autoritários elitistas (Figueiredo), assim como já conhecemos muitos populistas de base (Jânio). Mas não tenho certeza de que já tenhamos tido um governo autoritário de corte sectário como o de Bolsonaro.

 

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP). Twitter: @willgomes


> Assine a Cult. A mais longeva revista de cultura do Brasil precisa de você. 

Deixe o seu comentário

TV Cult