‘Poesia é um gênero livre, e por isso nos identificamos com ela’, diz poeta trans
Patrícia Borges durante o lançamento da 'Antologia Trans', no Largo do Arouche, em São Paulo (Foto: Bernardo Enoch Mota)
Patrícia Borges é uma das autoras da Antologia Trans, coletânea de poemas escritos por alunos trans e não-binários do Cursinho Transformação, de São Paulo
“Olha quem é ela/ homem ou mulher/ todos veem/ mas não sabem identificar/ por causa do corpo/ e a meio a meio a mistura/ homem e mulher/ o que ela quiser/ foda-se quem não acredita”. Os versos, intitulados Quem é ela, são alguns dos mais leves da poeta Patrícia Borges. Transgênera, quase universitária, corajosa nos versos e com vontade de gritar ao mundo a poesia que traz dentro de si, Patrícia é uma das autoras que compõem a recém-lançada Antologia Trans, uma coletânea de poemas de autores transgênero e não-binários (pessoas que não se identificam nem como homens, nem como mulheres).
Todos os poetas e os dois ilustradores da publicação são alunos do Cursinho Popular Transformação, um iniciativa gratuita que já existe desde 2015 na Ação Educativa. O objetivo é ajudar pessoas trans, travestis e não-binárias a entrarem na faculdade, sem fins lucrativos. Ao todo, são 62 poemas com temas que variam entre a experiência do corpo transgênero, sexo, beleza, amor e desconstrução.
A poesia ganhou importância para esses jovens: é algo a que eles podem se dedicar sem o julgamento a que estão constantemente sujeitos. Patrícia, que além de autora de quatro poemas da Antologia (“Quem é ela”, “Do cu”, “O que você chama de amor” e “Vaso”) também é aluna do cursinho, explica à CULT essa relação: “Poesia é um gênero livre, e por isso nos identificamos com ela. Na poesia, você pode fazer o que quiser: rimar, não rimar; usar várias palavras, usar apenas uma palavra; escrever textos longos ou curtos. É isso que nós, transgêneros, queremos na vida também”.
A Antologia Trans – nome mais votado entre sugeridos pelos poetas que compuseram o livro – surgiu em uma oficina de poesia realizada dentro do cursinho, coordenada pelos professores Carmen Garcia, Carolina Munis, Élida Lima, João Pedro Innecco e Raísa Martins, como uma forma de ir além do simples ensino de literatura voltada para o vestibular.
Entre aulas sobre o gênero e atividades de poesia, os alunos eram provocados a refletir sobre questões como corpo, preconceito, gênero e desconstrução, como lembra Patrícia: “Começamos aos poucos desconstruindo o que é poesia, mostrando que nossos versos não precisavam ser formais, nem rimar. Aos poucos, fomos reparando que a poesia é mais ou menos como a gente, enquanto transgênero”.
Depois de um ano de oficina, os organizadores perceberam que os alunos haviam criado um material que não podia ser jogado fora. Então, com incentivo do programa de Valorização de Iniciativas Culturais (VAI), da Prefeitura de São Paulo, alunos e organizadores reuniram algumas dezenas de poemas em uma antologia, que foi publicada no mês passado pela Editora Invisíveis Produções.
Na produção do livro, segundo Patrícia, a única dificuldade foi selecionar os textos, que eram muitos: alguns dos autores tinham até 20 poemas. “Eu mesma tive quatro poemas publicados. A gente não achava que o livro ficaria tão grande”, conta. Mas ficou. Tão grande, aliás, que o grupo pretende lançar um segundo volume da antologia, embora ainda não saibam quando nem que nome dar para a nova publicação: “Leva tempo porque tudo é decidido em grupo”, diz Patrícia.
Além dos poemas, o livro conta com prefácio de Amora Moira, doutoranda na Unicamp, travesti e autora de E se eu fosse puta, e com um texto de orelha escrito por Linn da Quebrada, cantora, performer e artista multimídia. “É uma publicação importante, porque nós, transgênero, nunca temos nossas histórias contadas. Mais difícil ainda é ter nossas vivências narradas por nós mesmos”, diz Linn, em entrevista à CULT.
Junto com o livro, o Cursinho realizou cinco saraus de poesia, os TRANSaraus, em lugares como a praça Roosevelt, a Casa das Rosas e o Sesc Belenzinho. Ali, os autores podiam compartilhar seus textos, falar de resistência transgênero e trocar experiências. Para muitos dos autores, o espaço de acolhimento foi perfeito para desabrochar: “Foi o primeiro lugar em que eu cantei em público”, disse Linn, no VII TRANSarau.
A Antologia vai além de um simples livro de poesia: é uma tentativa de humanizar as pessoas não cisgêneras, fazendo com que o leitor se sensibilize com as violências sofridas dia-a-dia por essa população. Patrícia, por exemplo, foi expulsa de casa aos 13 anos por causa de sua identidade de gênero, mas jamais parou de lutar para ser reconhecida como mulher. Para ela, transmitir as próprias vivências na forma de versos pode ser uma forma de torná-las mais próximas do leitor cisgênero: “Muitas pessoas veem os trans como um fetiche ou com estranheza. Queremos apenas ser vistos com normalidade”.
Em tempos de retorno ao conservadorismo, essa luta é importante. Para Linn, porém, a militância não deve ser restrita ao ataque às figuras conservadoras, já que “os tempos são sempre opressivos e conservadores para nós”. A ideia da poesia é que ela fica, eterna, em circulação. Patrícia concorda: “Eu estou desempregada não por ser incapacitada, mas porque a sociedade me incapacita, somos muito mais do que querem que a gente seja e do que nos obrigam a ser. Nesse sentido, fazer poesia é quebrar paradigmas.”