Personagens fantasmáticas, pessoas fictícias
Fotos Bob Sousa
“É o dever da revolução encorajar seus adversários: as obras de arte. Isso porque a obra artística, que é produto da luta do artista em isolamento, tende à contemplação, que, no fim das contas, pode transformar-se na destruição de todos os valores, burgueses ou não, e na substituição desses valores por algo que cada vez mais irá se parecer com o que chamamos de liberdade”.
Jean Genet, Journal of Palestine Studies.
Seis décadas depois de ter sido escrita, O balcão continua constituindo uma peça de teatro fascinante. Seja pelo jogo narrativo espelhado que a sustenta; seja pelo agudo senso de teatralidade de que não abre mão em momento algum. Jean Genet a escreveu entre janeiro e julho de 1955. Em junho do ano seguinte, a peça foi publicada pelas Éditions de L’Arbalète, estampando na capa uma litografia de Alberto Giacometti. Em 22 de abril de 1957, ocorre, então, a estreia mundial da obra no pequeno Arts Theatre Club, de Londres, dirigida pelo jovem diretor Peter Zadek (que já havia encenado, em 1952, As criadas, também na capital inglesa). Vale notar que no dia da estreia londrina Genet foi impedido pela polícia de entrar no teatro, em função do escândalo que havia causado ao acompanhar os ensaios finais, quando exigiu que o espetáculo fosse cancelado por motivos de “assassinato teatral”. Declarou o dramaturgo ao The News Chronicle, de Londres, em 24/4/1957: “As cenas no bordel deveriam ser apresentadas com a solenidade de uma missa na mais bela catedral. Zadek transformou tudo apenas em um bordel comum”.
Pois bem, solene é uma das características que se podem atribuir, sem dúvida, à montagem que o Club Noir está apresentando do texto de Genet, com direção de Roberto Alvim (responsável também pela adaptação do texto, reduzido para cerca de 60 minutos de espetáculo), tendo Juliana Galdino à frente de um elenco ao qual não faltam igualmente talento e ousadia artística. Naturalmente, a solenidade com que se trata, aqui, a fábula de Genet não está ligada à ideia daquele conjunto de formalidades que conferem a determinado ato seu caráter legal; antes, ela diz respeito ao exercício de afetação de uma gravidade majestosa, com cuja tônica se conduz um cerimonial. Ao explorar esse caminho, Roberto Alvim, uma vez mais, se dispôs a dialogar com um texto clássico do repertório dramatúrgico do ocidente, extraindo dele sua matéria imanente, capaz de sobreviver intacta, incólume, ilesa ao processo de adaptação que, embora tenha promovido muitos cortes na obra original, manteve-se sempre vigilante da essencialidade incontornável presente na matriz.
Os dois espaços narrativos por onde a peça transita – a cidade, onde está
ocorrendo uma revolução, e o bordel, onde os cidadãos vêm dar vazão a suas fantasias – não deixam dúvida: a política e a sexualidade são os temas principais da obra. Entretanto, ambos os temas não são tratados em chave realista, uma vez que a forma pela qual tais assuntos vêm à tona priva de um caráter essencialmente teatral – o que confere ao texto um terceiro lócus narrativo, o do mundo do próprio teatro, revestido, então, de uma metateatralidade das mais enigmáticas, porque quase sempre muito próxima da atmosfera da cerimônia e do ritual.
Em junho de 1960, Lucien Goldman publicou no número 171 da revista Temps Modernes o artigo “Uma peça realista: O balcão, de Genet”, no qual o filósofo e sociólogo marxista defendia a ideia de que a obra “tem, no seu conjunto, uma estrutura realista e didática (no sentido brechtiano da palavra)”, disposta a descrever uma transformação histórica fundamental: o fracasso das causas revolucionárias da primeira metade do século XX e a consequente ascensão da tecnocracia, representada pelo chefe de polícia e pela dona do bordel. Embora haja algo de esquemático nesta leitura – que não leva em consideração, por exemplo, o caráter metateatral do texto, conforme já aludido –, é inegável que a envergadura sócio-histórica da peça identificada por Goldmann seja mesmo relevante para o entendimento da obra, talvez hoje ganhando outros matizes que não aqueles dependentes única e exclusivamente da ordenação da fábula.
Genet está tratando de instituições ligadas ao desejo de poder – a Igreja, a Justiça, a Polícia e o Exército –, cujos representantes não só se integram plenamente à esfera pública, atuando como sustentáculos da estrutura macropolítica, mas também alimentam o imaginário privado dos cidadãos, transformando-se em figuras para eles libidinosas. A primeira grande operação que o dramaturgo, então, faz é implodir a categoria da personagem dramática – implosão a partir da qual o aspecto sócio-histórico vem à tona com mais força, como forma propriamente e não como conteúdo. “Não há personagens no sentido convencional em Le balcon, apenas imagens de instintos e desejos básicos”, afirma Martin Esslin em “Genet: a sala dos espelhos”, que integra o seu polêmico, mas muito bem articulado O teatro do absurdo. Destituindo as personagens de sua psicologia convencional, o dramaturgo francês consegue reduzi-las a sua condição básica: a de seres desprotegidos e impotentes que se lançam com muita avidez, por um mecanismo compensatório, à voracidade violenta das fantasias e dos mitos.
Assim, às personagens, destituídas de realidade individual, falta autonomia, liberdade, autodeterminação. No texto de introdução que escreveu para a publicação da peça – “Como representar o balcão” – Genet as chama, inclusive, de “figuras”, “imagens” ou “reflexos” – o que evidencia o caráter alegórico que ele quis imprimir a elas, transigindo da figuração dos papéis à ficcionalização dos indivíduos. Fiquemos aqui com a apurada análise que Bernard Dort faz do texto em “Genet ou o combate com o teatro”, que integra O teatro e sua realidade. “Não nos enganemos: esta redução da personagem ao tipo, esta absorção do indivíduo pela função, não é, como habitualmente, um recurso de sátira. Não se trata de encher o palco de caricaturas. Pelo contrário, Genet faz questão de nos precaver: ‘Ainda outra coisa: não encenar esta peça como se fosse uma sátira disto ou daquilo. Ela é – e será, portanto, encenada como tal – uma glorificação da Imagem e do Reflexo. Seu significado satírico ou não só vai surgir nesse caso’. Que se ponha no palco um Guarda ou um Ladrão, não é para glorificar um e caçoar do outro: Genet exalta a ambos. ‘As cenas de soldados são para exaltar – é exaltar mesmo que eu quero dizer – a virtude máxima do Exército, sua virtude capital: a estupidez’. Nunca ele diminui conscientemente esta ou aquela personagem: se reduz à sua função não é para rebaixá-la, mas, ao contrário, para engrandecê-la através desta função. Seu teatro é, antes de tudo, celebração”.
A montagem de O balcão pelo Club Noir potencializa com muita inventividade toda a celebração do fim do indivíduo. Inicialmente, Roberto Alvim reduz a grandiloquência do painel original à dimensão de uma iluminura sagrada, convertendo o espetáculo em uma espécie de ópera minimalista sacra, que ressoa discreta, mas firmemente um Jean Genet à capela, em cuja miniatura da execução reside a contundência e o poder do que está sendo entoado. Em um mundo em que as palavras vagam por aqui e ali desidratadas de humanidade e destituídas de qualquer ritualização, poder ouvir atores conferindo máxima tensão à performance solene de suas vozes constitui um choque perceptivo dos mais transgressores. Além disso, Roberto Alvim também atenuou o caráter dialógico do texto e fez as personagens alegóricas de Genet mergulharem em suas próprias falas como se estas fossem pequenos solilóquios.
Assim, vemos um desfile de figuras ensimesmadas para as quais a fantasmagoria dos desejos que enunciam corresponde à semi-obscuridade que reiteradamente as circunda. O efeito de tal plasticidade sobre a plateia é imenso. Ao renunciarem ao dialogismo e declararem, inativos, sob focos difusos de luz, suas falas diante dos espectadores, os atores assumem uma postura solene, grave, hierática, levando as figuras que defendem em cena não mais a encarnarem o clima da catedral real que o dramaturgo vislumbrou nas orientações para o diretor inglês, e sim a emularem o aspecto catedralesco que a palavra genetiana acaba por adquirir nos dias atuais – quando toda comunicação está sendo profanada ao limite da selvageria. Os atores do Club Noir estão quase sempre em pé e imóveis, estáticos, remetendo com tal postura à etimologia da forma indo-europeia “st”, presente não só em “estático” propriamente como também, por exemplo, em “estátua” e em “estar” – palavras que ao mesmo apontam para a ideia da estabilidade de um corpo ereto e implicam o traço semântico de “ser”. Em muitas línguas, os verbos “ser” e “estar” equivalem (“É de estarrecer/Estar e ser em inglês/É a mesma coisa”, nos lembra, divertidamente, a poeta Alice Ruiz). Desse modo, as estátuas a que Roberto Alvim dá vida em cena são seres estuados, mas destituídos de afeto, somente tomados por fantasias ligadas às esferas do sexo e do poder. A fantasia, então – como é de se esperar daqueles que vivem do medo do desamparo – desregula-se e se precipita em fantasmagoria.
Tal movimento exige dos atores um trabalho bastante especial de ritualização de voz, gestos e movimentos, que pode até mesmo evocar as supermarionetes de Gordon Craig, como aponta Bernard Dort. Sobre a interpretação, aliás, nunca é demais chamar a atenção para o primoroso trabalho vocal de Juliana Galdino, novamente em atuação irretocável. A intérprete imprime a sua voz uma materialidade impressionante, que marca, como diz Guimarães Rosa a respeito de Joca Ramiro, aquelas vozes que “continuam” quando o corpo que a sustenta já se foi. Além disso, a máscara facial da intérprete de Madame Irma, ou a rainha da casa de ilusões, atinge momentos de intensa dramaticidade e patético lirismo. Trata-se de uma atriz que fricciona como poucas suas habilidades corporais-sinestésicas a serviço da cena e não de si mesma. Performances igualmente contundentes são obtidas pelas atuações de Renato Forner (o juiz), Diego Machado (o chefe de polícia), Taynã Marquezone (a jornalista e uma boneca), Luísa Micheletti (a dominatrix e uma boneca), Vinícius Tardelli (o bispo) e Arthur Rangel (o general). Uma energia selvagem, artaudiana em sua emanação mais genuína, exala de todos eles, mas é mantida sob controle a fim de que o êxtase a que se pretende chegar não ultrapasse os limites dos retábulos aos quais as figuras que encarnam estão veneravelmente presas.
Ao associar o mundo da revolução que está acontecendo lá fora ao mundo das fantasias vividas dentro das paredes do bordel, Genet estilhaça a ideia de que os “sistemas individuais de fantasias e crenças” sejam incompatíveis com o “esclarecimento da natureza dos impasses dos vínculos sociopolíticos” (as definições foram tomadas do mais recente livro de Vladimir Safatle). Tal movimento de apagamento das fronteiras entre o público e o privado parece muito bem resolvido na montagem do Club Noir, que potencializa, por meio dos instantâneos fotográficos de que a encenação parece se constituir, as figuras de corpos sustentados (nova ocorrência da forma “st”) por fantasias fantasmáticas de poder – receosas talvez de que um dia triunfem as “formas radicalmente não identitárias de encarnação”, como lembra Safatle em O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo: “… não podemos negligenciar que a presença de um fundamento religioso do poder não se expressa apenas na enunciação evidente da dogmática teológica como referência para questões biopolíticas concernentes à reprodução, à administração dos corpos, às famílias e à moralidade, entre tantas outras coisas. Tal fundamento se expressará na maneira como investimos libidinalmente figuras de autoridade esperando amparo principalmente contra aquilo que faz da vida social o avesso da pretensa paz celestial, ou seja, a insegurança da divisão, do conflito, da irredutibilidade de antagonismos gerados não por alguma intervenção de elementos vindos do exterior, mas pela dinâmica imanente do político”.
O balcão do Club Noir é um desfile de figuras de poder investidas libidinosamente por nós mesmos, que ousamos adentrar aquela sala de espelhos chamada teatro. Uma “casa de ilusões onde afinal”, para Bernard Dort, “cada um se torna aquilo que todos querem que alguém seja. Um lugar perfeitamente ordenado onde o ser e o parecer, a personagem e o papel, coincidem totalmente”. Afinal, se a plasticidade de nossos corpos convertida no fetiche da mercadoria aponta para a ficcionalização de nossos espíritos, nada mais contemporâneo de nós mesmos do que assistirmos à derrocada da categoria da pessoa sob a forma de uma missa solene, ministrada sob o jogo de verdade e simulação que somente o teatro é capaz de proporcionar.
O balcão – Club Noir
Onde: Club Noir – Rua Augusta, 331 – São Paulo (SP)
Quando: Até 1º de novembro; sextas, às 21h; sábados, às 19h e 21h; domingos, às 20h
Quanto: R$ 20,00 (inteira) e R$ 10,00 (meia-entrada)
Info: (11) 2309-7271.