A persistência das imagens de Glauber
(Foto: Arquivo Nacional)
Quarenta anos depois de sua morte em Sintra, Portugal, em 22 de agosto de 1981, quando tinha 42 anos, Glauber Rocha continua sendo, quase consensualmente, o mais importante e genial dos cineastas brasileiros, seja pela estética barroca inigualável, seja por ter sido, no século 20, um dos mais importantes pensadores sobre o Brasil.
Glauber foi a figura central do Cinema Novo, movimento que criou o cinema moderno brasileiro, dando continuidade à ruptura neorrealista provocada por Nelson Pereira dos Santos com Rio, 40 graus (1955) e Rio, Zona Norte (1957). É de Glauber a frase-síntese da modernidade audiovisual brasileira: “Uma ideia na cabeça e uma câmera na mão”. Entre seus filmes estão obras-primas como Deus e o Diabo na terra do Sol (1964), Terra em transe (1967), Cabeças cortadas (1970), Di-Glauber (1977) e A Idade da Terra (1980). Em homenagem ao cineasta, o site do Instituto Moreira Salles abriu o streaming gratuito de sete de seus filmes. O curta Di-Glauber, antes embargado pela família do pintor Di Cavalcanti, será exibido na sessão de abertura do Festival Internacional de Curtas Metragens de São Paulo por 24 horas, a partir das 19 horas do dia 22 de agosto, no site www.kinoforum.org.
Foram companheiros de Glauber na estética, afeto e ação política: Cacá Diegues, Paulo César Saraceni, Joaquim Pedro de Andrade, Ruy Guerra, Leon Hirszman, Luiz Carlos Barreto, Walter Lima Jr., Zelito Viana e Arnaldo Jabor. Premiado no exterior e perseguido no Brasil, Glauber acumulou controvérsias no fim da vida, ao encontrar sinais de redenção política tanto no ideólogo dos estertores do regime militar, Golbery do Couto e Silva, como nas incendiárias intervenções em vídeo no programa televisivo Abertura, da TV Tupi, cujo título se referia ao período final da ditadura.
A convite da Cult, cineastas responderam à questão: “Que imagem você tem ou guarda de Glauber Rocha?”. Valeu recorrer a qualquer imagem sugerida pela vida ou pela obra do mestre, e as respostas vão em seguida.
Cacá Diegues, diretor de Bye Bye Brasil (1980)
Glauber Rocha não foi apenas o mais original e talentoso cineasta na história de nosso cinema, como também um raro pensador do Brasil e do mundo contemporâneo. Era como se o que ele dizia ter acontecido, sempre verdade, fosse uma previsão infalível do que logo aconteceria. Glauber era um amigo generoso e sempre muito atencioso. Um irmão protetor para todos os momentos de nossa vida, públicos ou privados. Um cara que faz falta a todo mundo.
Edgard Navarro, diretor de Superoutro (1989)
Eu tinha 14 anos quando vi Deus e o Diabo na terra do Sol. Foi uma experiência radical, embora eu não tivesse a menor ideia de sua extensão na época. Até hoje sou um sequelado do cinema de Glauber.
Zelito Viana, diretor de Avaeté: semente da vingança (1985) e produtor de Terra em transe, O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969) e Cabeças cortadas, de glauber rocha
A imagem mais marcante de Glauber Rocha que vem à minha cabeça é o plano inicial de Cabeças cortadas: a aproximação lenta de um plano geral até o close do [ator] Paco [Francisco] Rabal, cujo personagem representa um ditador latino-americano que fala ao telefone, no princípio cantando uma mulher. Em seguida, no outro ouvido, arma uma tremenda negociata para roubar o dinheiro público de seu país, engrena com uma discussão sobre intervenção das Forças Armadas e vai misturando tudo, resultando numa síntese do drama que vivemos na nossa América Latina: escrota, ditatorial, corrupta, alienada, sem esgoto e que ri da própria tragédia.
Viva nosso imenso Glauber de Andrade Rocha! Saravá!
Luís Abramo, codiretor (com Paloma Rocha) do documentário Antena da raça (2021), motivado pelas intervenções em vídeo de Glauber Rocha no programa de televisão Abertura
Tenho visto muito as imagens de Deus e o Diabo na terra do Sol no processo de restauração do filme, que está em fase de finalização, e sempre me surpreendo com a composição dos planos, com a intenção e a inteligência das decisões da câmera, em diálogo com a dramaturgia buscada por Glauber para o filme. Essa oportunidade de ver os planos de forma calma e estudada com uma imagem restaurada em 4k, que devolve ao filme todas as nuances do negativo original, está sendo um privilégio. O filme é de uma beleza e de uma radicalidade emocionantes.
Anna Muylaert, codiretora (com Lô Politi) de Alvorada (2021)
A primeira vez que eu vi um filme do Glauber foi no cine Belas Artes, numa sessão vespertina de A Idade da Terra. Começa com aquele pôr do sol de cinco minutos e eu, adolescente e cinéfila, mas não entendendo nada, fiquei muito revoltada, não entendia aqueles planos longos, aquela falta de narrativa. Fiquei muito incomodada, tive vontade até de sair do cinema, mas continuei até o final. Depois o filme foi pegando na minha cabeça, acabei comprando uma fita VHS e passei a rever várias cenas de que eu gostava muito, como a do Tarcísio Meira com os punhos em riste no meio de uma escola de samba. Eu entrei no Glauber pelo final. E depois vi os primeiros filmes. Se eu fosse falar de uma cena apenas, seria aquela, arrepiante, em que o Manuel, de Deus e o Diabo na terra do Sol, depois de passar por tanto sofrimento, se une ao bando do cangaceiro Corisco. É rebatizado de Satanás e o chapéu é colocado em sua cabeça. Aquela cena é muito forte porque retrata a tentativa de se superar, de mudar na base do decreto, embora na verdade ele continue sendo a pessoa inocente que era antes.
Marcelo Caetano, diretor de Corpo elétrico (2017)
As imagens que eu guardo do trabalho do Glauber são de A Idade da Terra: as cenas em que os atores interagem com as pessoas na rua. Essa forma provocativa de filmar “o povo brasileiro” tem um despudor que raramente se vê no cinema atual. Onde hoje há a figuração e o controle, em Glauber havia o acaso e a loucura. É Tarcísio Meira andando por uma escola de samba, a procissão de freiras encabeçada por Norma Bengell, Jece Valadão dando um passe no meio da rua. É uma catarse!
Lírio Ferreira, diretor de Árido movie (2005)
Apesar de ser do mar dos arrecifes, desde cedo embrenhava com meu pai pelos interiores do Nordeste, me deparando com aquela imensidão de vazios que preenchiam a minha existência. Pois bem, numa dessas viagens pelos sertões da Bahia, passávamos por Monte Santo [locação de Deus e o Diabo na terra do Sol] quando esbarrei com aquelas pequenas igrejas enfileiradas e dispostas ali, nos montes santos que circundavam a cidade. Foi como uma epifania. Aquele quadro quase barroco despertou em minha alma de criança um Brasil até então recôndito, interdito e misterioso. Anos depois, ao assistir, no Recife, a uma mostra com filmes de Glauber Rocha, deparei-me com Deus e o Diabo na terra do Sol e aquele alumbramento infantil me assombrou novamente. Só que agora justaposto a uma força indescritível e bem mais terrífica. Naqueles instantes na sala escura, a cena do Beato Sebastião pregando a transitoriedade do mundo e o fim das agruras para aquela comunidade messiânica me fez entender que a liberdade é o que move o pensamento crítico e que sem ela não iremos a lugar algum. O zunido daquela ventania também me fez ver que, de todas as mentiras em que acredito no mundo, o cinema ainda é a que melhor narra a verdade.
Tata Amaral, diretora de Hoje (2011)
Assisti a Terra em transe tardiamente, no final dos anos 1970, acho que em 1978 ou 79. Foi a experiência mais vertiginosa da qual me recordo: as câmeras aéreas, as personagens dispostas nas paisagens, palácios, locações. Mesmo sem compreender boa parte do filme, aprendi o que é enquadramento e força dramática. De Glauber, a imagem que mais guardo é ele olhando através de uma lente imaginária feita com os dedos das duas mãos em L. Homenageio esse gesto no logotipo da série As protagonistas.
Tizuka Yamasaki, diretora de Gaijin: os caminhos da liberdade (1980), foi produtora e assistente de direção em A Idade da Terra
Não foi fácil ser assistente de Glauber no longa A Idade da Terra, pois ele era um vulcão humano em erupção o tempo todo. Não conseguia terminar as cenas do roteiro que havia escrito. Interferia na filmagem com instruções para os atores sem se importar que sua voz estivesse sendo captada pelo microfone. De última hora alterava o plano de filmagem, ou sem aviso sumia por alguns dias. Assim que cheguei a Salvador para a preparação de A Idade da Terra, lhe mostrei o cronograma de filmagem que eu fizera num grande painel de papel. Glauber olhou, olhou, depois pediu um pincel atômico e sem nenhum constrangimento rabiscou o seu plano de filmagem sobre o cronograma! Sofrendo essa humilhação, aprendi que teria que mudar minha atuação profissional para me adequar ao seu modo de agir. O cinema que ele estava fazendo não dependia de planos e organogramas. Nascia de uma improvisação constante e tínhamos que ficar a postos para aceitar e dar prosseguimento às transformações de sua criatividade. Aliás, suas melhores cenas eram aquelas que nasciam dessa forma. Ninguém reclamava, pois o resultado era tão deslumbrante que, no meu caso, esquecia da angústia vivida um pouco antes. Todos tentavam acompanhar as novas ideias de Glauber, que brotavam ininterruptamente.
Só a morte conseguiu calar a voz desse cineasta que nunca deixava de bradar em defesa da cultura brasileira. Glauber morreu muito cedo porque seu corpo era pequeno demais para suportar uma mente tão inteligente e perturbadora, tão singularmente criativa, tão gigantesca para os seus pares da época.
Joel Pizzini, diretor de Anabazys (2007) e curador da restauração da obra de Glauber Rocha
A cada erupção do vulcão Glauber temos a sensação de que ele está entre nós.
Há uma sucessão inesgotável de estudos e novas descobertas mundo afora a seu respeito, que dá a ilusão de que ele segue desarrumando o arrumado muito além dos 42 anos que viveu quando deixou nossa terra em transe.
Especulações místicas à parte, é impressionante ver o impacto que sua arte ainda provoca, seja nas polêmicas intervenções políticas, na inovadora linguagem do programa Abertura, mas, sobretudo, na proa visionária do Cinema Novo.
Sua vida-arte se pautava pela transigência política para atingir a intransigência estética. Após a premiação de O dragão da maldade contra o santo guerreiro no festival de Cannes, Glauber esnobou os holofotes da fama e partiu para a África, onde realizou O leão de 7 cabeças (1970), um retorno, segundo ele, aos mitos originários de Barravento (1962).
César Meneghetti, diretor de Glauber, claro (2021)
Há uma imagem que é símbolo do nosso filme Glauber, claro. Glauber enquadra com os dedos os closes que o diretor de fotografia Mario Gianni deveria captar no meio de uma baracopoli [favela] romana. Glauber, em exílio, quis entrar no meio do set pasoliniano de Accatone (1961) e Mamma Roma (1962) na periferia romana, talvez procurando uma espécie de Brasil no “centro mitológico do capitalismo ocidental”. Quando decidi filmar nesse cenário, gostaria de ter encontrado aquelas pessoas, mas aquela baracopoli não existia mais. No lugar há uma praça e seus habitantes foram transferidos para apartamentos em prédios de quatro ou cinco andares nos arredores do mesmo bairro, o Prenestino. As pessoas, adultas e crianças, retratadas nas imagens tinham educação e saúde gratuitos, seus direitos de trabalhadores só seriam retirados no fim dos anos 1990 e os preços de alimentos de primeira necessidade eram proibidos de subir. Como dizia um conhecido que se refugiou da Albânia numa lancha abarrotada de clandestinos: “O comunismo na Itália é bom pois é um comunismo capitalista!”.
Ana Maria Magalhães, diretora da série O Brasil de Darcy Ribeiro (2014) e atriz em A Idade da Terra
Guardo de Glauber a imagem de sua alegria selvagem, o riso aberto, a contar casos e imitar personagens na noite do nascimento do seu filho Pedro Paulo e do furacão que, na estreia de A Idade da Terra no festival de Veneza, enfrentou a guerra sem perder jamais a ternura que envolvia a nossa silenciosa cumplicidade sertaneja. Ao escrever essas linhas, percebo que a imagem mais forte de Glauber para mim é a própria saudade.