Período de formação

Período de formação

Na época da Depressão e do Jazz, o sonho do “grande romance americano” dividiu-se entre o enraizamento nas comunidades e a evasão delas

Luiz Angélico da Costa

 De que maneira podemos dar unidade a obras tão díspares e marcantes como as que fazem parte do cânone da ficção deste período nos Estados Unidos? Sabemos que foram escritas por autores tão diferentes em sua história pessoal e cultural, como William Faulkner (1897-1962), Francis Scott Fitzgerald (1896-1940) e Ernest Hemingway (1899-1961), estrelas de primeira grandeza.

Mas também por outros que (pela finalidade deste texto) serão praticamente apenas citados aqui. A intenção não é tirar o mérito desses autores e obras, mas de assinalar um fenômeno recorrente na produção e na recepção de alguns marcos da história literária de qualquer país, nação, povo, ou, mais precisamente, de qualquer comunidade. Entre estes, portanto, seria imperdoável esquecer Ralph Elisson (1909-1994) e seu O homem invisível (The Invisible Man), Sherwood Anderson (1876-1941) e as muitas sementes lançadas pelo seu primoroso Winesburg, Ohio – uma espécie de bildungs roman [romance de formação] – que viria a produzir admiráveis frutos no futuro, como o de sua influência na prosa de ficção curta de Raymond Carver (1938-1988), além de haver, de algum modo, influenciado em seu tempo a obra de Hemingway e Faulkner.

Outro nome também inesquecível é o de Carson McCullers (1917-1967), vítima de uma saúde precária e uma inquietação psicológica. A literatura dos Estados Unidos deste período deve a ele três belos momentos da ficção: O caçador e um coração solitário (The Heart is a Lonely Hunter), Reflections in a Golden Eye e The Member of the Wedding.

J. D. Salinger (1919-) e seu rumoroso O apanhador no campo de centeio (The Catcher in the Rye) são um caso à parte, ainda aberto talvez a uma revisão crítica.

Origem nas questões sociopolíticas

O que se pode afirmar com razoável certeza é que a prosa de ficção do período originou-se fundamentalmente em questões sociais, culturais e políticas através do viés ultraindividualizado de artistas enraizados em suas comunidades ou que procuravam erradicar-se delas. Faulkner seria o ícone no primeiro caso. Hemingway, no segundo. Fitzgerald, pelas próprias implicações de sua vida trágica, situou-se entre os dois extremos.

Faulkner, em seu afã visceral de permanência em sua comunidade, chega a criar um território mítico (Yoknapatawpha), que é, antes de mais nada, o cerne espaço-temporal de toda sua obra. Hemingway traz de berço os impulsos do itinerante, do aventureiro, do man on the go – tão bem ilustrados em sua própria obra. Fitzgerald é a corporificação da impaciência, do querer ter e ser concomitantemente, do querer ir e ficar de modo indiscriminado, sendo esta a marca mais significativa de sua obra como um todo.

Estes e outros artistas pertencentes a essa época de fortes pendências e grandes aspirações da sociedade americana – particularmente entre as duas grandes guerras, após o longo período de despojamento dos escombros da “casa dividida” – refletem os anseios e conflitos de uma nação em busca de uma nova era. É o alvorecer do Modernismo na literatura e nas artes.

É dessa época – da Depressão, do Jazz, da Beat generation – o sonho do “grande romance americano”, o qual individualmente é provável que jamais seja escrito, permanecendo como um dos elementos do ultrapassado “sonho americano”. Será como um incompleto O último magnata (The last tycoon: An unfinished novel) do sempre controverso Francis Scott Fitzgerald. Dessa divisão homem/artista (que paradoxalmente pode constituir-se na construção de uma obra de ficção), Fitzgerald não parece ter plena consciência, mas, em 1925, ano da publicação de O grande Gatsby (The great Gatsby), ele admite, em carta a John Peale Bishop, ser Gatsby um romance
“blurred and patchy”
(turvo e fragmentário). Na verdade, era só mais uma explosão dos entrechoques na mente do autor, sem os quais, é quase certo, não teria escrito sua novela exemplar.

Mais contundente em sua prosa de ficção curta do que em seus romances, como se tivesse sempre mais pressa em viver do que em escrever, é Ernest Hemingway. É o Hemingway da narrativa curta – da noveleta-poema dramática em prosa de O velho e o mar (The old man and the sea) e de antológicos contos (como “The snows of kilimanjaro”, “The killers” ou “A clean well-lighted place”)que melhor contribui para a ficção do período, a despeito do Hemingway dos romances – em grande parte relatos jornalísticos-ficcionais, interativos com suas múltiplas vidas.

William Faulkner, todavia, é o romancista por excelência – sem desprezarmos a inventiva e a alta qualidade artesanal de vários de seus contos como “That Evening Sun”, “A Rose for Emily”, ou “Wash”, do qual originou o romance Absalom! Absalom! (Absalão! Absalão!). Foi o criador da instigante personagem Lucas Beauchmp, que mais contribuiu para uma nova geração “coming-of-age” da literatura americana, quer através de um experimentalismo desafiador, porém não desencorajador no uso do fluxo de consciência, em Enquanto agonizo (As I Lay Dyng) e em O som e a fúria (The Sound and the Fury), quer na retomada de tradicionais formas narrativas, com em Luz em agosto (Light in August) – apesar dos alentados flashbacks deste romance.

A obra de Faulkner como um todo depura e mitiga velhas mágoas e inquietudes de uma nação então recém-chegada à maturidade. Mais ainda, Faulkner é o primeiro ficcionista branco, depois de Mark Twain (1835-1910), a retratar com seriedade a vida marginal de personagens afro-americanos. Seu mérito é apresentá-los como seres humanos, não como fantoches.

Por fim, registre-se o tratamento que ele dá ao problema da violência em sua ficção. Não é a violência que explode como nas narrativas banais. É, por assim dizer, uma violência por implosão – como recurso de construção dramática contida, como um último recurso à reconsideração dos motivos dos que se enfrentam em situação de discórdia. Neste sentido, exemplar é o final da estória “That Evening Sun”, em que os temores profundamente desesperados de Nancy (ameaçada de morte pelo ex-marido Jesus, a quem traiu) são contrastados com as rusgas e os temores infantis das crianças brancas:

“– Eu não sou negro – disse Jason, no alto e a salvo acima da cabeça do pai.

– Você é pior – disse Caddy, – Você é mexeriqueiro. Se alguma coisa saltasse do escuro, você ia ficar mais apavorado do que um negrinho.

– Não ia, não – disse Jason.

– Você ia chorar – disse Caddy.

– Caddy – disse o pai.

– Não ia! – disse Jason.

– Gato medroso – disse Caddy.

– Candace! – disse o pai.”

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