“Historicamente, a diplomacia servia aos interesses das elites. Cabe a nós, diplomatas, desconstruir essa noção”

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“Historicamente, a diplomacia servia aos interesses das elites. Cabe a nós, diplomatas, desconstruir essa noção”
Irene Vida Gala Encontra O Presidente De Ruanda, Paul Kagame, Em Setembro (Presidency Of Rwanda)

 

Foi durante o auge da Guerra Civil Angolana, em 1994, que Irene Vida Gala passou a se atentar para a importância da participação feminina na política externa. Enquanto a guerra fratricida vitimava angolanos e angolanas, as mulheres, excluídas das negociações de paz, tinham como palavras de ordem: “Nenhuma mãe mandará seus filhos e seu marido para a guerra”.

Na época, Irene servia como conselheira comissionada na embaixada brasileira em Luanda. A experiência marcou o início de uma militância de mais de três décadas pela participação das mulheres nas relações internacionais – que se integra a uma carreira de 40 anos dedicados às relações diplomáticas Brasil-África. E Vida Gala acaba de ser nomeada para o cargo de embaixadora em Ruanda.

Sua avaliação é de que, tanto nas guerras quanto nas periferias brasileiras, “os homens morrem, mas somos nós, mulheres, que sofremos os efeitos do conflito, para não falar no estupro como arma de guerra”. Fundadora da Associação das Mulheres Diplomatas Brasileiras (AMDB), organização que visa à criação de um Itamaraty mais igualitário, Irene afirma ter aprendido em Angola que as mulheres têm um “componente pacificador” do qual a diplomacia não pode prescindir.

Isso é o que caracteriza, segundo a diplomata, uma política externa feminista: aquela que incorpora a perspectiva, as soluções e as alternativas da mulher para a resolução de conflitos; “uma questão de princípio”, como ela define, separa os que defendem daqueles que rechaçam a ideia de uma sensibilidade feminina capaz de ser benéfica a uma política plenamente democrática. “Se 50% da população é composta de mulheres, como ainda somos deixadas de fora das decisões de problemas que são nossos? Hoje, temos basicamente homens decidindo sobre problemas de mulheres. Não dá certo.”

No caso específico do Itamaraty, o principal entrave, contudo, segue sendo o lobby masculino – impedindo o acesso de mulheres a posições de liderança na instituição e promovendo um ambiente em que, para ocupar os poucos espaços acessíveis, “a mulher deve repetir o padrão masculino”.

Vida Gala conta que a nomeação, no começo de 2023, do ministro Mauro Vieira para chefiar o Ministério das Relações Exteriores – contrariando a expectativa de que Lula indicasse uma mulher para assumir o cargo pela primeira vez – foi o adiamento de um sonho. Com isso, o Brasil permanece sendo um dos dois únicos países do continente americano, ao lado do Uruguai, que nunca tiveram uma mulher à frente da sua diplomacia. “Embora o presidente entenda a importância desse gesto – estou convencida disso porque falei com ele sobre o tema pessoalmente –, Lula tem um entorno masculino que o leva a crer que as mulheres não são de confiança. O poder masculino que o cerca reproduz forças políticas masculinas. Soma-se a isso o fato de que Lula é fruto de sua geração e não incorpora naturalmente a perspectiva de gênero.”

Graças ao trabalho de colegas e da AMDB, no entanto, o cenário tem mudado lentamente, por exemplo, com a nomeação da embaixadora Maria Laura da Rocha para o posto de secretária-geral das Relações Exteriores – segundo cargo mais alto no Itamaraty, ocupado pela primeira vez por uma mulher: “Um pequeníssimo movimento, mas que nos últimos dois anos já produziu certo aumento no número de mulheres ingressantes na carreira diplomática”.

Para a diplomata, as conquistas das mulheres no Itamaraty chegam agora a um momento positivo – mas há dificuldades para que a luta feminina seja abraçada por setores progressistas, pois o autointitulado discurso “anti-woke” vem crescendo e “homens progressistas ficam confortáveis na contenção exigida pela extrema direita”. “Quando se fala em ação afirmativa, os progressistas dizem que perderemos votos. Eles se escondem atrás disso e mantêm o seu poder de machos na política.”

Diante desse cenário, Vida Gala defende ações afirmativas embasadas em mudanças legais: para que suas continuidades sejam garantidas e as mulheres se sintam cada vez mais à vontade dentro do rígido sistema do funcionalismo público. “A estrutura hierárquica do Itamaraty pune a rebeldia. Quando somos poucas, a mulher que não mimetiza o poder masculino se coloca em risco. No entanto, nossa luta é milenar.” Vida Gala recorda a entrada da primeira mulher no Itamaraty, em 1918: a diplomata Maria José de Castro Rebello Mendes, que, apesar de ter sido aprovada em primeiro lugar no Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata, teve seu pedido de admissão negado pela instituição. Decisão que só foi revogada posteriormente com o auxílio do jurista Ruy Barbosa. “O Itamaraty reflete exatamente a sociedade brasileira”, analisa.

No que diz respeito às idiossincrasias da sociedade brasileira em nossas relações com outros países, Irene também investiga, em sua atuação como pesquisadora, o impacto do racismo na diplomacia – e o papel positivo que o movimento negro brasileiro desempenhou na construção de relações mais próximas com a África durante o primeiro governo Lula. Esse é o tema sobre o qual Vida Gala se debruça no livro Política externa como ação afirmativa: Projeto e ação do governo Lula na África, 2003-2006 (EdUFABC, 2012). Para ela, “o racismo – um elemento estrutural e estruturante da sociedade brasileira – naturalmente impacta a política externa”: o discurso historicamente construído, ao longo do período de tráfico escravagista no Brasil, foi o de que a África não tinha nada a nos dar, a não ser trabalhadores desqualificados, vendidos pelos próprios africanos como escravos. Tudo o que vinha da África era, portanto, desqualificado no Brasil, ao passo que os europeus “tinham consciência de que o capital extraído das terras africanas foi o que viabilizou a implantação do capitalismo nos séculos 18 e 19”.

Esse contexto é ilustrado por Vida Gala com a seguinte imagem: “Um empresário que, no Brasil, não tem interlocutores negros e não qualifica o diálogo com esse grupo como algo valoroso pega um avião para fazer negócios na África. Ele vê seus parceiros do lado africano como iguais?”.

Pragmática, ela assinala a necessidade da desconstrução dessa barreira para o benefício do intercâmbio comercial, tecnológico e cultural de ambos os lados: “Se a China, a Turquia e a Coreia estão lá, continuaremos aqui fazendo o quê?”, questiona. “Temos de superar nossa barreira de 350 anos de história e ter a consciência de que a África pode ser uma terra de oportunidades.”

É com essa bagagem e experiência em mais de 30 países africanos que a diplomata assume neste ano o cargo de embaixadora no recém-inaugurado posto diplomático brasileiro em Ruanda. Da cidade de Kigali, em meio a compromissos e reuniões com uma delegação e outra, ela conta ter desembarcado em um país “quase desconhecido para nós, brasileiros”. Além de ter uma pequena comunidade de cerca de 30 brasileiros, a capital ruandesa chamou sua atenção pela própria paisagem urbana: “A África é muito grande – há várias Áfricas –, mas há estruturas que se repetem. Kigali é muito urbanizada para qualquer padrão. E para os padrões africanos, ela é um ponto fora da curva”, diz.

“Quase desconhecido”, o país vive hoje um enorme crescimento econômico e é apontado como o que tem o maior número de mulheres no Parlamento (63,8%), mas continua a ser lembrado pela comunidade internacional pelos eventos trágicos ocorridos há 31 anos, no contexto do genocídio que vitimou parte da população identificada como tutsi pelos documentos de identificação étnica, implantados pelos belgas no período da colonização.

A tentativa de eliminação dos tutsis pelos hutus não começou em 1994, mas atingiu seu ponto mais dramático em 6 de abril daquele ano, quando um avião que transportava o presidente ruandês Juvénal Habyarimana e o seu homólogo do Burundi, Cyprien Ntaryamira, foi abatido por dois mísseis lançados do solo, matando todos a bordo e dando início a 100 dias de expurgos, que assassinaram cerca de 1 milhão de pessoas e forçaram outras tantas ao exílio.

“Mas, ao chegar aqui, você se pergunta: onde estão os tutsis e onde estão os hutus? A resposta é: eles não estão – porque hoje em dia a sociedade nega essa divisão. Eles optaram pela unidade”, explica a nova embaixadora do Brasil em Ruanda, lembrando o papel da colonização na criação das noções étnicas na sociedade ruandesa: “Os belgas os dividiram e tentaram puxar os tutsis para a sua área de influência, forjando uma história de que os tutsis eram de outra região. Quando o país se tornou independente, os hutus, que eram a maioria, entenderam que o outro grupo esteve historicamente associado aos exploradores belgas. Não é uma divisão étnica. Após o genocídio, o esforço de Ruanda tem sido o de retornar ao que era antes”.

A nova embaixada brasileira vem após um período de dois anos de negociações entre os países, iniciadas em 2023, com a visita do chanceler ruandês ao Brasil, e reflete a intenção atual do governo de aprofundar relações com a África, assim como foi a proposta para a diplomacia brasileira sob os primeiros governos Lula. O que muda desta vez é o foco: “Muito privatista”, diz Irene. “A aproximação de Ruanda com o Brasil visa fortemente a negócios e investimentos.” As áreas de saúde, educação e tecnologia devem ser os principais pontos de contato a serem privilegiados pela chancelaria brasileira – a pedido do governo ruandês –, o que deve beneficiar empresas privadas brasileiras e contar com o apoio de outras instituições, como o Senai e a Fiocruz, com aporte financeiro do governo local.

“Temos interesse em compartilhar conhecimento e expandir o acesso à saúde nos países do Sul global. Se o país que nos acolhe tem condições de aportar recursos, fica muito mais fácil”, explica Vida Gala. Um dos projetos brasileiros que devem ser exportados para Ruanda é o Programa Nacional de Alimentação Escolar, que determina que ao menos 30% dos recursos destinados à merenda escolar sejam alocados para a compra direta de alimentos da agricultura familiar.

Para além dos acordos e possibilidades de cooperação, viabilizados pelo interesse em comum no multilateralismo internacional, Vida Gala ainda vê como principal desafio para a diplomacia brasileira o distanciamento entre a sociedade e a chancelaria: “Historicamente, a diplomacia servia aos interesses das elites. Desconstruir essa imagem cabe a nós – e ao Estado –, mas, sobretudo, à própria instituição”.

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