Perfil – Davi Arrigucci Jr.

Perfil – Davi Arrigucci Jr.

Leitor minucioso, Davi Arrigucci Jr. é capaz de conviver longos anos com um texto literário em busca da análise precisa

Wilker Sousa

Rua Dona Veridiana, São Paulo. Nas prateleiras espalhadas pelos cômodos do apartamento, repousam muitos dos livros que ajudaram a construir a trajetória intelectual de Davi Arrigucci Jr. Dos cânones da crítica literária brasileira, como Álvaro Lins, Otto Maria Carpeaux, Mário de Andrade e Antonio Candido, passando pelos expoentes da estilística espanhola até os ícones da literatura nacional e estrangeira, a diversidade de suas leituras contribuiu para a formação de “um crítico de amplo e altíssimo repertório, que conhece muito, tem paixão pela literatura e dispõe da inteligência e da sensibilidade que caracterizam um grande leitor”, segundo palavras de José Miguel Wisnik.

O encanto pela leitura foi despertado ainda na infância em São João da Boa Vista, interior de São Paulo. No sobrado em que vivia, próximo ao centro da cidade, na Rua Saldanha Marinho, havia livros tanto nas estantes da mãe quanto no consultório do pai, médico pediatra. A primeira biblioteca que o fascinou, porém, foi aquela pertencente ao amigo da família e também médico Joaquim José de Oliveira Neto. Em armários envidraçados e estantes de madeira dispostos em duas salas, estava um vasto acervo de literatura brasileira e francesa, além de obras raras, como uma edição de Os Lusíadas do século 16. A biblioteca foi importante para muitos da região e dela também se serviu o amigo Antonio Candido.

Erudição e envolvimento

De 1961, quando ingressou no curso de letras da mítica Faculdade de Filosofia da Rua Maria Antônia, ao ofício de professor universitário, passaram-se apenas dois anos. Mesmo antes de concluir a graduação, Davi assumiu uma turma do curso de literatura espanhola. A partir de então, foram 33 anos dedicados à Universidade de São Paulo.

O envolvimento com as aulas e o modo como adentrava os textos trabalhados em sala são lembrados por seus alunos: “Tinha a impressão de que ele começava de forma lenta e até despretensiosa, rodeando o texto em questão, e então ia apresentando sua tessitura, seus nós, focalizando sob todos os ângulos, quando, tendo amarrado os seus vários lados, começava a decolar. Quando percebíamos, já estávamos no alto, olhando o texto todo aberto, como um exercício longo e paciente de complexas dobraduras que se abrisse num objeto surpreendente”, comenta Viviana Bosi, professora de teoria literária da USP. O método desenvolvido por ele nas aulas também é recordado por José Miguel Wisnik: “A mera paráfrase do poema feita por ele já soava como revelação. Depois de comentado e contextualizado o texto, começavam a análise e a interpretação propriamente ditas, visando ao ‘círculo hermenêutico’ em que o particular e o geral encontravam um ponto de síntese, e graças ao qual o poema reverberava em um detalhe sem deixar de ser compreendido como um todo”. Para Murilo Marcondes de Moura, professor de literatura brasileira da USP, “a grandeza [das aulas de Davi] é mais ou menos fácil de definir: é um professor que sabe muito, um homem realmente culto ao lado de uma paixão forte pelo assunto”.

Em busca da análise precisa

Com a indústria dos papers, acompanhada de mestrados e doutorados relâmpagos vigentes no universo acadêmico, debruçar-se por vários anos sobre a obra de um determinado escritor parece algo impraticável. Contudo, o longo convívio com o objeto de estudo, com vistas a polir a análise, é algo inerente ao trabalho de Davi Arrigucci. Quando decidiu estudar a obra do argentino Julio Cortázar, ainda nos anos 1960, Davi deparou-se com um vasto contexto histórico-literário a ser descortinado, o que demandou sete anos de estudo até concluir sua tese de doutorado, sob orientação de Antonio Candido. “No caso do Cortázar, eu tinha de ler quem o formou. (…) Não tinha condição de fazer aquilo em menos tempo. Eu precisava conhecer o contexto inteiro. Lia feito louco, noite e dia”, afirma. Em 1973, um ano depois de concluída, a tese resultou no livro O Escorpião Encalacrado, que se tornou referência nos estudos cortazianos, conforme explica o crítico e escritor Silviano Santiago: “Nos modernos estudos universitários, Davi Arrigucci Jr. destaca-se como pioneiro no interesse pelas relações entre a literatura brasileira e a moderna literatura hispano-americana, de que é prova sua análise inovadora da obra de Julio Cortázar”.

Se o estudo sobre Cortázar soube situar na tradição literária moderna um autor até então pouco conhecido, o trabalho dedicado a Manuel Bandeira contribuiu para trazer novos caminhos à fortuna crítica do já consagrado poeta pernambucano. Os anos de convívio com a poesia de Bandeira resultaram no trabalho de livre-docência intitulado Humildade, Paixão e Morte, o qual deu origem ao livro homônimo, publicado em 1990. “Manuel Bandeira era avaliado de uma forma totalmente equivocada. Eu tenho a impressão de que ajudei a mudar a direção da sua fortuna crítica. Ele era considerado um poeta sentimentalista, subjetivista. Ninguém tinha ideia da importância que ele teve para os outros, como havia, também, uma espécie de nicho de um estilo humilde que se propagou também no Rubem Braga e que repercute no Pedro Nava”, explica. Sobre esse trabalho, comenta o poeta Heitor Ferraz: “Para minha geração, a importância de Davi está justamente em revelar os pormenores da rigorosa e complexa poética de Bandeira, tido, naquela altura, por certa corrente literária, como um poeta menor e pouco complexo”. Segundo José Miguel Wisnik, “Humildade, Paixão e Morte são entradas que permitem, por meio da análise intensiva de nove poemas, desenvolver uma interpretação original do poeta, dessas que se tornam uma referência crítica incontornável”. Ainda sobre a importância de Davi para os estudos da lírica modernista, Silviano Santiago acredita que “é na leitura da poesia modernista brasileira (Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade) que Davi se distancia dos companheiros de geração e se afirma como notável crítico. [Ele] soube conciliar a análise do texto literário com a vocação da literatura para o confronto com as artes”.

Respostas à produção contemporânea

Além dos trabalhos de maior fôlego produzidos na academia, uma das principais contribuições da crítica é oferecer uma resposta imediata à produção literária contemporânea. No auge de suas carreiras, autores hoje tidos como cânones da literatura brasileira tinham suas obras acompanhadas de perto pela crítica. Grande Sertão: Veredas, por exemplo, foi acolhido com o belo ensaio de Antonio Candido intitulado “O Homem dos Avessos”, publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo.

Pertencente a uma geração posterior à de Antonio Candido, Arrigucci também contribuiu com seus ensaios para avaliar a literatura produzida no calor da hora. “Davi participa da crítica literária em jornais, que pede presteza. Nessa modalidade, escreveu artigos de altíssimo nível, em que se articulam de forma certeira questões amplas e foco intenso. São únicos, pela incisiva penetração, os textos que publicou sobre Murilo Rubião e Sebastião Uchoa Leite”, exemplifica Viviana Bosi. Afora esses dois, Davi também escreveu sobre a obra de Rubem Braga, Orides Fontela, Antonio Callado, Roberto Piva, Pedro Nava, Ferreira Gullar, entre outros nomes de nossa literatura, incluindo os contemporâneos Milton Hatoum e Ronaldo Correia de Brito. “[Em 1988], ele escreveu a orelha do Relato de um Certo Oriente. Onze anos depois, ele leu e comentou o manuscrito de Dois Irmãos. Lembro que ele fez várias observações importantes sobre esse romance. Tudo isso me marcou e deu muita força ao meu trabalho”, recorda o escritor Milton Hatoum.

O quadro atual, porém, é outro. Cada vez mais fechada em seus próprios muros, a universidade distancia-se da produção literária contemporânea. Como consequência, segundo Davi, “ficamos diante de uma resenha ligeira, que dá notícias da publicação, é opinativa, mas não tem um juízo consistente de valor”. Entre os fatores que propiciam tal afastamento, está o aumento da burocratização na universidade, fator que limita o trabalho dos professores: “Não é fácil para os jovens professores se debruçar sobre o que está acontecendo quando eles têm as obrigações de carreira e de aula. Isso é sempre um empecilho, porque cresceu muito a burocratização universitária”, analisa.

Distante dos muitos compromissos que cercam a carreira universitária, Davi dispõe do tempo necessário para desenvolver novos projetos. Atualmente, trabalha em dois livros de ensaios: Sertão, Oeste, Pampa – reunião de estudos comparados entre Guimarães Rosa, Jorge Luis Borges e o cineasta John Ford – e O Guardador de Segredos – conjunto de ensaios sobre narrativa, poesia e crítica, que deve ser publicado ainda neste ano. Somados a esses dois trabalhos, está a tradução de História Universal da Infâmia, de Borges. Terminados os ensaios, pretende ainda escrever uma nova novela, a terceira de sua carreira como ficcionista, na qual figuram O Ugolino e a Perdiz (2003) e O Rocambole (2005). Embora atarefado, não deixa escapar a busca pela síntese e pela dicção adequadas para cada trabalho, ainda que para isso seja necessário estender-se. Cercado de livros em sua biblioteca particular, Davi faz da paciência uma qualidade intrínseca ao grande leitor, uma valiosa ferramenta a serviço da análise depurada e não um entrave à produtividade desmedida.

(4) Comentários

  1. Entrar na docência universitária hoje, no campo da literatura, é praticamente abrir mão do tempo para o estudo e a reflexão. 50 alunos por turma, 500 páginas de trabalho para corrigir, preparar as aulas e ainda se envolver com extensão… isso torna o tempo para pesquisa muito exíguo.

  2. Tive a honra e o prazer de ser seu aluno no Curso de Teoria Literária na USP em 1977. O curso foi sobre a obra de Manuel Bandeira, que faz aniversário hoje( 19/04). A paixão que ele se dedicava ao curso e à obra de Bandeira contagiava toda a sala de aula.

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