Pedro Nava em Delfos

Pedro Nava em Delfos

Em depoimento à CULT, o ator Ruy Affonso – um dos fundadores do TBC e criador dos Jograis de São Paulo – relata seu encontro com Pedro Nava e Dona Antonieta na Grécia, em viagem de 1958.

 

Em 1958, o grupo dos Jograis de São Paulo – criado em 1955 – cumpriu em Portugal uma longa tournée: que foi do Algarve ao Minho, e de Trás-os-Montes ao Alentejo. Vale lembrar que a referida tournée foi feita a convite do general Craveiro Lopes, então presidente de Portugal, quando de sua visita oficial ao Brasil.

Encerrada a tournée, os integrantes dos Jograis tomaram rumos diversos. Os atores Armando Bogus e Maurício Barroso rumaram incon­tinenti para a Espanha. Rubens de Falco e eu embarcamos, mesmo em Lisboa, no luxuoso Vulcânia – navio que servia todo o Mediterrâneo.

Rubens de Falco, ansioso por conhecer a terra de seus antepassados, desembarcou em Nápoles, partindo daí para visitar grande parte da Península Italiana. Eu, ainda a bordo do Vulcânia, visitei Palermo, prestando homenagem a Pirandello; e ainda encontrei tempo para uma curta peregrinação a Monreale, com todo seu bizantinismo. Pouco depois, exultante, desembarco em Patras, ponto inicial de minhas peregrinações pela Grécia.

Só me detive em Patras para visitar o antigo Teatro Romano, aliás, muito bem conservado. De lá, segui por estrada de ferro para Atenas. Apesar da beleza do estreito de Corinto, cheguei exausto. Mas não tão exausto que me furtasse ao prazer de subir, a pé, até o Partenon.

Daí para a frente, foi tudo um deslumbramento. Lembro-me, com ternura, dos planos provisórios então traçados. Era fim de inverno, o que limitava muito as possibilidades turísticas pré-programadas. Contudo, como ponto de partida, optei por uma excursão de quatro dias que centrava seu interesse em três dos mais importantes teatros gregos: o de Dionisos, localizado mesmo em Atenas, o de Epidauros e o de Delfos.

Rumo aos teatros, deixei Atenas numa manhã brumosa e fria. Nosso ônibus era pequeno, mas seus ocupantes – cerca de vinte passageiros – davam uma curiosa amostra de toda humanidade.

Mal havíamos percorrido os quilômetros iniciais, ouço, em meio do vozerio dos passageiros, algumas palavras que me soaram como sendo portuguesas; ou, mais precisamente, como sendo brasileiras. Viro-me e reviro-me, mas não vejo nenhuma cara com jeito de ser patrícia. Só mesmo no primeiro auto-stop foi que consegui encontrar os responsáveis por aquelas palavras familiares.

Quem eram tais brasileiros? Na­ da menos que Pedro Nava e sua esposa, Dona Antonieta! Confraternizamo-nos imediatamente: juntos, seguimos até o fim a excursão recém-iniciada. Quatro dias depois, já em Atenas, logo me mudei para o hotel em que o casal estava hospedado.

Embora eu já tivesse pago meu tributo de admiração ao Partenon, no mesmo dia em que cheguei a Atenas, voltei a ele várias vezes em companhia do Nava e de Dona An­tonieta. Juntos fazíamos a maior parte desse trajeto (de automóvel, naturalmente…).

Das inúmeras visitas realizadas em Delfos, em Epidauros, em Atenas e nos arredores da capital, poderia eu deter-me indefinidamente. Mas isso não acrescentaria muito a tudo o que se sabe sobre o Nava. Uma observação, contudo, parece-me indispensável: refiro-me a imensa emoção com que Pedro Nava pal­milhou toda a zona de Delfos: sobretudo o teatro e as ruínas do que deveriam ter sido as Termas.

Maior admiração ainda – talvez mesmo a emoção mais forte que Nava sentiu por toda a Grécia – foi, no museu de Delfos, o encontro do famoso Auriga, que, como se sabe, é considerada a estátua de bronze mais perfeita deixada pela Antiguidade clássica.

Outra impressão forte que o Nava, apesar da sua imensa discrição, não conseguiu disfarçar, foi a causada pelo teatro de Epidauros. Às vezes acompanhando nosso guia, às vezes só e desgarrado do grupo, Nava percorreu em todas as direções as arquibancadas do Teatro – que comportavam cinco mil espectadores, número impressionante para a época em que ocorreu tal construção.

Outro momento de transe do nosso amigo foi quando o cicerone, sozinho no centro da arena, rasgou um pedaço de jornal, produzindo um ruído audível em qualquer lugar das arquibancadas. Aliás, na altura de tais acontecimentos, Nava lembrou-se de repente de que eu também sou ator. E, por essa razão, me pediu que fosse ao centro da arena declamar alguns versos – se possível – de algum trágico grego.

Respondi, brincando, que eu falava muito mal o grego. Nava, porém, apoiado em sua prodigiosa memória, lembrou-se de que eu havia participado, no Teatro Brasileiro de Comédia, da representação da tragédia Antígona, de Sófocles. E, como por acaso, eu ainda sabia de cor alguns versos dessa tragédia, resolvi atender ao pedido do amigo. E, para espanto do cicerone e de outros turistas do nosso grupo, dirigi-me para o centro da arena; pigarreei; e comecei:

“Muitos milagres há, mas o mais portentoso é o homem!

Ele que singra os mares, sorrindo ao tempestuoso Noto…”

E assim continuei até o fim desse coral, que é o primeiro da tragédia.

Naturalmente, seguiram-se al­guns aplausos e uns poucos apertos de mão.

Nava, num ímpeto de generosidade, muito sua, declarou que nunca mais esqueceria de Epidauros. O que me permitiu relembrar que Epi­ dauros já o havia marcado: para isso bastaria lembrar que o primeiro livro dele – uma série de estudos de problemas médicos – intitulara-se precisamente Território de Epidauro.

Depois dos quatro dias de excursões pelos locais já mencionados, resolvemos, de comum acordo, traçar um plano para nossas próximas visitas. Estávamos, então, no alto do cabo Sounion, com uma vista deslumbrante do mar Egeu. A tarde era perturbadora. Não foi fácil concentrar-mo-nos e traçar planos.

De qualquer forma, resolvemos cancelar, pelo menos temporariamente, alguns passeios que re­ queriam mais tempo. Assim, abri­mos mão de Míkonos, de De­los, de Samos e outros tantos pontos quase obrigatórios.

E, como a tardezinha vinha caindo, decidimos procurar um restaurante que nos haviam recomendado. Tal restaurante ficava na área denominada Plaka, conhecido bairro boêmio de Atenas.

Nava, líder nato do nosso mini-grupo, chamou um táxi e deu instruções ao motorista – parte em francês, parte em inglês, parte em italiano e (por que não confessar?) com alguns salpicos do nosso bom português. O importante é que o motorista compreendeu, e daí a alguns minutos o táxi nos deixava em frente ao famoso restaurante Eureka.

Acomodados numa simpática mesa, num dos terraços do restaurante, Dona Antonieta, Nava e eu prelibávamos o que seria o nosso iminente jantar.

Com sua costumeira autoridade, o Nava apanhou o cardápio – redigido, por sorte, em vários idiomas – e escolheu o menu. Iríamos experimentar o prato célebre da casa: cordeiro à moda das Cíclades. Pedro Nava, discretamente, nos informou que era uma especialidade do restaurante. Tratava-se de um cordeiro que deveria ter sido sacrificado numa determinada idade, segundo um antigo ritual preestabelecido.

Essa carne, necessariamente, tinha de ser cozida em panela de pedra. Entre muitos outros condimentos, não poderia faltar a presença de olivas naturais – nunca em conserva, como as azeitonas de todo dia. Essas olivas eram responsáveis pelo travo agreste da iguaria assim preparada.

Depois dos aperitivos e de umas fatias de um pão divino, chegou o tal cordeiro, trazido com as necessárias honras pelo próprio chefe de cozinha. Para encurtar o relato, diremos apenas que o tal cordeiro à moda das Cíclades era mesmo divino. Ou, se preferirem, olímpico.

Pedro Nava, secundado por Dona Antonieta e por mim, deixou transparecer toda a sua admiração gastronômica pela iguaria. E, aproveitando a presença do chefe de cozinha, pediu-lhe uma série infinita de explicações, as quais nosso amigo ia anotando num pequeno caderno que nunca o abandonava. Muitas anotações, imensas anotações.

Curiosamente, cerca de três semanas após a refinada refeição acima descrita, por pura coincidência, nos reunimos nesse mesmo Eureka para nos despedirmos. Um dia depois, Pedro Nava e Dona Antonieta tomariam o avião para Paris. Eu – antes de partir para Paris onde encontraria os Nava – ainda curtiria mais um bocado da Grécia: seguindo para os conventos do Monte Athos, visitando Kavala e ainda percorrendo uma pequena parte da Tessalônica.

Quase trinta anos mais tarde, eu relembraria esse Pedro Nava gastrônomo, ao ler, gulosamente, certas passagens do terceiro volume de suas memórias, Chão de ferro. No tópico das feijoadas do tio Heitor Modesto de Almeida, não me contive: adicionei, sem que­­rer, à feijoada descrita, algumas lágrimas bastante salgadas e bastante sentidas.

Deus permitiu que essas lágrimas, por sorte, não comprometessem a deliciosa feijoada do Tio Modesto.

Ruy Affonso
ator, diretor e autor de teatro, foi um dos fundadores do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) em 1948 e criador dos Jograis de São Paulo; é autor de vários livros de poemas reunidos em Cancioneiro de um Jogral de São Paulo (Massao Ohno)

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