Paul Ricoeur leitor de Hegel

Paul Ricoeur leitor de Hegel
A maior proximidade entre Hegel e Ricœur encontra-se talvez quando se pensa na necessidade, alegada por Ricœur, de não se queimarem etapas

 

O que significa o dito comum segundo o qual o Espírito Absoluto, do qual Hegel fez uma apresentação histórico-biográfica, pressupondo, pois, sua existência de fato, tenha se quebrado e se dissipado depois da morte do filósofo? Para responder a essa questão difícil, acompanhemos, por um desvio, a leitura feita por Paul Ricoeur (1913-2005) da fenomenologia hegeliana. A Fenomenologia do espírito traçou o movimento pelo qual a consciência de si encontra-se consigo na efetivação da história e pelo qual, ainda, esta última se define como consumação da consciência de si; traçou esse movimento chamando esta mútua imbricação de “Espírito” (Geist) – absoluto.

O Espírito hegeliano seria a totalidade inquebrantável, subjacente às mediações entre o particular e o universal, entre a teoria e a práxis, entre consciência e história, indivíduo e comunidade, totalidade posta a garantir a identidade já não somente das diferenças, mas da relação mesma entre diferença e identidade, segundo o que seria chamado por Hegel de “proposição especulativa”. Ricœur, apesar de acreditar, à maneira da fenomenologia hegeliana, na possibilidade de certa relação também entre consciência e história, e isto no interior de uma identidade (a por ele chamada identidade narrativa), essa identidade ricœuriana, ao contrário da hegeliana, não se deixa encerrar, por uma questão de época, num sistema fechado de pensamento.

À maneira da fenomenologia hegeliana, dissemos, Ricœur acredita na possibilidade de pensar, ainda hoje, uma identidade entre consciência e história no limiar de uma experiência possível. Mas objetar-se-á que a identidade, em Hegel – e de um modo feliz –, é encontrada na efetividade do Espírito absoluto, história cristalizada no pensamento e, entrementes, para o próprio Ricœur, o Espírito hegeliano não pode mais ser pensado hoje como um recurso válido à filosofia, já que esta, como diria outro Adorno, perdera “seu momento de realização”. Objeção procedente, sem dúvida; mas, então, que significa à maneira de Hegel?

À maneira de Hegel

Não, evidentemente, que ele pense essa identidade da mesma forma dialética (autoconfiante) de Hegel, e sim que, tal como um dia Hegel, Ricœur hoje também deseja pensar a identidade, porque salvo engano pensá-la é a única maneira de ainda fazer-se filosofia. Essa identidade não se dá, para Ricœur, como algo já assente, ela é simplesmente possível, não historicamente efetiva; não partimos dela, nos encaminhamos para ela, pensando, imaginando, agindo. Pode-se sem dúvida dizer, a favor de Hegel, que também ele não acreditava que já tivéssemos encontrado a realização da filosofia na Alemanha dominada pelo Estado prussiano, visto que esta afirmação é o resultado de uma leitura malfeita de sua filosofia do direito, mas há um compromisso muito mais sério, em Hegel, que é inclusive o que possibilitou, ao menos uma vez, essa má interpretação, a saber: o compromisso ontológico segundo o qual ser e pensar são o mesmo.

A efetividade do ser é o pensamento, o Espírito, e não adianta constatar que o mundo lá fora destoa do Espírito, porque isso é abstração do entendimento. Se o mundo, que é história, que é Espírito, não se reconhece no Espírito, isto é um problema do mundo, não do Espírito. Mas que nos importa se o Espírito encontra-se conciliado, se ele é a própria conciliação, quando o mundo, que nos interessa mais de perto, continua mergulhado no caos da irracionalidade? Nisto que reside a grandeza de Hegel (sua coerência interna que o faz manter-se firmemente no âmbito cerrado do Espírito, que é Razão, logos), habita também o seu fiasco, pois é exatamente esse descompasso, que é o problema do mundo, o que se trata de, uma vez mais, pensar. Este, com efeito, foi o ponto de fuga a partir do qual surgiram todas as filosofias da diferença, desde Feuerbach e Karl Marx. O que acontece quando o ser, que deve ser o mesmo que pensar, é justamente o seu contrário, a sua diferença? O que acontece, em outros termos, quando o mundo se subtrai ao Espírito, e lhe permanece órfão?  Esta – vale lembrar – já era desde muito a questão fundamental de Hegel, quando “a cisão é a fonte do estado de necessidade da filosofia” (Cf. Diferença entre os sistemas de Fichte e de Schelling).

Se no pensamento hegeliano é o Espírito absoluto o que subjaz às mediações entre a história e a consciência, como o segredo desvelado no final para que afinal descubramos que a história sempre fora a história da consciência e a consciência sempre fora consciência da história, em Ricœur o pensamento se move na convicção de que essas mediações são necessariamente quebradas, inconclusas, abertas, uma aposta sem segurança de ganho, e sempre prestes a ser reformulada no jogo indeciso da política da experiência, e da experiência da política. A identidade ricœuriana seria o que se busca no interior do confesso descompasso entre história e consciência, indivíduo e comunidade histórica; aliás, é esse próprio descompasso a fonte da demanda por interpretação que exige, por sua vez, uma experiência hermenêutica.

Desse modo, a identidade não é postulada para dizer que a temos de antemão, no Espírito, mas porque precisamos dela para breve, na ação, no mundo da ação, cujo tecido simbólico, temporal e de valores perfazem um campo de frágeis experiências.

Gostaríamos, no entanto, de insinuar que isso decorre da própria identificação de história e consciência com a temporalidade e com a imaginação. Pois se história e consciência fossem já totalizáveis – isto é, se fossem passíveis de participar (com igualdade de condições) de um mesmo sistema de correlações em que a liberdade do indivíduo não se colidisse com a justiça social nem a justiça como lugar da sociabilidade sufocasse as pretensões dos indivíduos livres, se a consciência reconhecesse a história como coisa sua e a história se efetivasse como a realização da consciência –, não se veria como a ação do tempo afetaria o curso do mundo e dos homens no mundo, nem como se poderia imaginar algo diferente do que o já existente; nada poderia ser feito “contra a potência cega do efetivo”, segundo a expressão sempre feliz de um Nietzsche.

Isso atestaria não só que existe um único tempo, ou seja, que se pode postular a unicidade do tempo como identidade sempre presente de consciência e história, como ainda que o mundo, nessa reciprocidade perfeita, encontrar-se-ia em tal ordem que, pela conformidade de consciência e história, indivíduo e comunidade, tudo estaria bem tal como está, sem mais possibilidade (nem sequer necessidade) de mudanças ou transformações. Implicaria o fim da história como também da filosofia, já que anularia as contradições presentes do mundo dos seres humanos quando – ao que tudo indica – o motor da filosofia, como o da história, seria aquela contradição entre liberdade e justiça… Justamente aquela contradição escondida no não recobrimento efetivo de história como realização do espírito e consciência como realização da liberdade, de práxis e teoria, ou, nos termos de Ricœur, de mundo da ação e mundo do texto, que ele reconhece sem, contudo, aceitar como projeto de uma experiência por vir, ainda que seja muito reticente quanto a como seria essa possível experiência.

 

 

Isso é assim porque, em Ricœur,
a questão da unicidade do tempo
ou da temporalidade originária
se transforma na questão de uma
identidade que, para atestar sua
fragilidade, Ricœur a chamou de
narrativa”.

 

 

Em todo o caso, a resposta a como esta última se forma – pela leitura – constitui-se em preparação da abordagem do problema da totalização. Mas, com a posição da imaginação produtora como expressão e, sobretudo, como passagem do tempo narrado pelo escritor (de história como de ficção) ao tempo vivido pelo leitor, teríamos a justificativa da proclamada “renúncia a Hegel”, intentada por Ricœur no final do terceiro tomo de seu Tempsetrécit. Todavia, ninguém renuncia ao que jamais tomou posse; se Ricœur “desiste” de Hegel é porque sem dúvida já o assumiu alhures.

Com efeito, se essa renúncia implica a substituição do Espírito absoluto pela imaginação produtora, e isso nos tenta a situar Ricœur antes ao lado de Fichte ou de Schelling que ao de Hegel, o fato é que, feitas todas as contas, é na esteira de Hegel que Ricœur permanece. Pode-se dizer que sua solução tem algo de schellinguiano, algo de fichteano, mas seu problema permanece um problema hegeliano. Schelling tentou pensar a identidade do subjetivo e do objetivo justamente como imaginação (Eins-bildungskraft), a “força-de-formação-em-um”, de acordo com certa rigorosa tradução, o poder de captar em uma “unidade plural”, segundo a ousada expressão ricœuriana, a multiplicidade implicada na dissociação do universal e do particular, bem como quanto Fichte desce os porões da filosofia kantiana para encontrar a imaginação como doutrina-da-ciência, isto é, como fundação de todo saber por meio da produção autoconsciente do Eu, que é também força-de-formação-em-um, imaginação.

Inscrito no tempo da ação

Nessas perspectivas (como força de captar em uma unidade o múltiplo disperso), a imaginação recolheria justamente, para Ricœur, o tempo, o tempo da consciência na ficção e o tempo do mundo na historiografia, mas também o tempo fundamental inscrito no mundo da ação, o mundo do leitor.

Esse tempo fundamental, todavia, não seria o tempo natural, mas um tempo filtrado pela experiência da leitura e, por isso mesmo, seria um tempo revisitado, examinado, acolhido num ponto explicitado como o presente de uma iniciativa, a iniciativa que se toma no sentido de explodir o que simplesmente é, a fim de que o que simplesmente seja não fique tal como está, segundo uma aspiração pedagógica similar, não a Schelling, não a Fichte, mas justamente àquela implicada no conceito de “negação determinada”, da Fenomenologia do espírito, de Hegel, segundo a qual a verdade de uma figura do espírito não se encontra antes, mas depois de sua consumação em outra figura, num mesmo “desenvolvimento”, do mesmo Espírito.

A diferença, talvez mínima, está aqui. O que, em Hegel, é saber absoluto, “a luz conceitual no seio da qual todo conhecimento mundano, toda expressão cultural e finalmente toda representação religiosa vem a pensar a si mesma”, em Ricœur é imaginação como força de abertura para a ação transfiguradora desse mesmo “mundo” que conhecemos, dessa mesma “cultura” a que pertencemos, dessa mesma “representação”, que reconhecemos como nossa; mundo, cultura e representação abordados não mais para receberem sua mais cristalina apreensão na vida do pensamento, o que caracterizaria o chamado idealismo de Hegel, porém para serem implodidos em direção a uma sua nova experiência, uma experiência de transcendência, de elevação. O que em Hegel é pensamento especulativo, em Ricœur é imaginação como potência do agir.

A maior proximidade entre Hegel e Ricœur, por sua vez, encontra-se talvez quando se pensa na constante necessidade, alegada por Ricœur, de não se queimarem etapas, de fazer-se um longo caminho, de pensar mediada e laboriosamente, de não determinar de uma vez por todas o que é preciso fazer, ainda que fazer algo seja urgente e preciso. Desse modo, se é Hegel quem, na Fenomenologia, escreve esta frase: “a impaciência pretende o impossível, isto é, a obtenção da meta sem os meios”, é Ricœur quem, por sua vez, não acredita que para transformar o mundo seja necessário destruir o mundo; para transformar as instituições, danificá-las; para inovar as tradições, ignorá-las. Sem dúvida, isso seria tentar atingir a meta desdenhando os meios, pois para nosso filósofo é no interior do mundo, das instituições e das tradições que se pode refazer o mundo, as instituições e as tradições. Para uma humanidade que deixa o século 20 decepcionada com certas experiências revolucionárias, e para a qual, ao que parece, não se coloca mais a alternativa entre reforma e revolução, sem dúvida existe nesse pensamento uma forte lição para a construção inteligente do próximo século.


Abrahão Costa Andrade é professor de Filosofia da UFPB

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