Hegel como pensador do colonialismo?

Hegel como pensador do colonialismo?
Friedrich Hegel: para biógrafo, filósofo era 'tudo menos um colonialista eurocêntrico' (Foto: Reprodução)

 

O absurdo da acusação de que Hegel seja um pensador colonialista começa pelo fato de que são usados, contra ele, princípios e padrões que ele mesmo defendia, dentre eles o universalismo, direitos humanos, liberdade e igualdade. Passa muitas vezes despercebido que a rejeição hegeliana a toda injustiça não é de maneira alguma condicionada cultural, ética ou geograficamente. A desumanidade, direcionada contra a razão e a liberdade, é atacada e deslegitimada independentemente do seu “lugar” de ocorrência – a escravidão na Grécia antiga e África pré-colonial, estruturas de clã na Europa bem como o sistema de castas indiano, a subjugação de outros povos e comunidades na África antiga ou Europa moderna.

Tendo em vista o discurso hegeliano de que o “Pré ou Extra-histórico” representam déficits históricos, que existem em determinadas épocas, então estes são estágios do desenvolvimento a serem superados rumo à liberdade e ao direito, em qualquer continente e também qualquer cultura. Hegel se refere a estruturas políticas e estatais ainda não desenvolvidas e à sua relevância para o progresso da história mundial. Assim, na modernidade, devido à internacionalização e globalização, todos os povos, sociedades e culturas devem ser entendidos como atores da história mundial, essenciais à conquista da liberdade para todos.

Que Hegel era tudo menos um colonialista eurocêntrico pode ser demonstrado, em termos bastante concretos, a partir de um dos mais famosos ensinamentos de sua filosofia: a temática do “senhor e do escravo”, unida à justificativa para superar essa relação através da “luta por reconhecimento”. Uma forma dessa estrutura de senhorio-escravidão reside no colonialismo moderno, discursivamente ligado à relação entre “metrópole e colônia”, entre “Estado-senhor e Estado-escravo”. O Estado-senhor possui uma estrutura política subordinada fora do seu próprio território nacional.

 

De maneira alguma Hegel
defende a legitimação dessa
estrutura de submissão, e
sim provê o oposto dessa
justificação: porque essa
estrutura não tem acordo
com a razão, ela deve ser
destruída.

 

 

Tanto “escravo”, e o “Estado-escravo”, quanto o “senhor”, e o “Estado-senhor”, não são livres, mas estão ambos na mesma relação de não-liberdade, por meio de quê um não é mais livre do que seu diferente, o outro. A escravidão pode então ser considerada positiva em épocas históricas determinadas, e constituir um direito por lei, mas nunca um direito por razão. A estrutura do senhor-e-escravo representa uma extensiva perda de direitos que viola fundamentalmente e é contrária ao conceito do homem como um ser livre.

Do mesmo modo, reside na estrutura do senhor-e-escravo ou na existência de Estados-escravos uma violação do conceito do Estado livre. Nenhuma dessas organizações políticas – o Estado-senhor e o Estado-escravo – possui legitimação ou soberania suficientes. Assim, pela perspectiva de Hegel, o colonialismo moderno não pode ser considerado racional. Ele é, como a antiga escravidão ou o posterior sistema de servidão, apenas direito positivo, que inclui a extensa perda de direitos humanos e opressão inumana de muitos atores.

Nas palavras de Hegel: sob a cruz dos espanhóis, muitas gerações e povos da América foram assassinados; os ingleses cantaram músicas de agradecimento em ocasião da devastação da Índia; todos “crimes pavorosos”. A escravidão é “algo histórico – i.e., enquadra-se, pertence a um momento anterior à razão”. Em seu status de escravo, o homem não é reconhecido “em seus ‘valores infinitos’ e seus ‘direitos infinitos’”. Ele tem, por isso, o direito de, a qualquer momento, quebrar suas correntes.

A fundamentação teórica dessa argumentação hegeliana reside em pensar o reconhecimento dos Estados especiais no âmbito do direito internacional – na terminologia de Hegel: direito constitucional externo, de que trata nos Princípios da Filosofia do Direito §§331-339. Seria decisivo aqui, particularmente, o §547 da Enciclopédia de Hegel e o discurso do “mútuo reconhecimento dos povos livres”, bem como a referência, localizada em um parêntese no §430 da Enciclopédia (e nos subsequentes §§432-437), do “princípio de mútuo reconhecimento”. Isso inclui o tratamento da questão da colonização (§248 da Filosofia do Direito): a sociedade burguesa tem, em si mesma, a dinâmica do lucro, e é incapaz de resolver internamente os seus problemas substanciais, especialmente o crescente vão entre riqueza e pobreza, sendo por isso “impulsionada para fora de si”. Uma forma disso se dar é a colonização operada “sistematicamente” pelos Estados, em decorrência de quê as colônias, enquanto Estados-escravos, não possuem os mesmos direitos que o Estado-senhor.

É isto que Hegel vê como o fundamento para as guerras de libertação e emancipação serem entendidas como formas de “luta por reconhecimento”. O processo de reconhecimento é decisivo: “A libertação das colônias se comprova como sendo da maior vantagem para a metrópole, assim como a libertação dos escravos é da maior vantagem para o senhor”. Assim, a acusação de que Hegel seria colonialista demonstra-se sem fundamento. tradução Nina Auras

Klaus Vieweg é professor da Universidade de Jena e autor de Pensamento da liberdade: linhas fundamentais da Filosofia do Direito (EDUSP)


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