Impressões num corpo que não sabe se sabe dançar: alguns passos a partir de I Who Cannot Sing, de Patrícia Lino
Patrícia Lino, autora do álbum 'I Who Cannot Sing' (Foto: Reproduçaõ)
Cena 1: tarde de julho, enquanto realizo uma tarefa doméstica qualquer, me pego repetindo não só os versos iniciais do poema de Luca Argel (“oi eu estou com o seu casaco frio / oi eu estou dentro do seu casaco frio”), mas também as notas do piano que acompanham a sequência de oito “ois” que se enfileiram depois desses versos no mix de Patrícia Lino. Minha mente decorou o poema e o riff, que eu inconscientemente tento reproduzir por meio de alguns sons desconjuntados. Sorrio ao perceber que talvez eu esteja cantando um poema.
Cena 2: uma manhã de agosto, estou no intervalo entre duas reuniões, diante do computador, como estou agora, quando repito em algum lugar do meu inconsciente, na voz de Camila Assad: “criamos um quarto imaginário / que carregaremos conosco”. E os versos chegam acompanhados do sintetizador que, no mix de Patrícia Lino, entra, intempestivamente, encontrando a voz da poeta em uma mesma cadência e desembocando no verso seguinte: “pode ser grande se você quiser”. Sorrio ao pensar que talvez eu esteja recitando uma música.
Cena 3: começo a escrever este texto, exatamente essa passagem que agora leio, escutando a terceira faixa de I Who Cannot Sing. É, portanto, a modulação que acompanha “Lady Lazarus”, do mix e da voz de Sylvia Plath, que me impele a digitar essas palavras. Quanto menor o intervalo rítmico, quanto maior a variação de entoação ou intensidade, mais rápido minhas mãos deslizam pelo teclado, nem sempre acompanhadas pelo raciocínio, e repito, sem pensar, alguns versos que ecoam, conjugando essa repetição ao impulso incontrolável de marcar a leitura com os pés, com os dedos, com as mãos… de sublinhar ritmos ou acompanhar cadências, quase (mas não exatamente) como quem escuta uma canção. Dessa vez eu não sorrio. Meu corpo está ocupado demais reagindo fisicamente a alguma outra coisa: à música, sim, mas não só a música, ao poema, sim, mas não só o poema; uma combinação entre os dois, entre os três. Entre nós três.
Este texto, claro, poderia se construir a partir de uma espécie de busca teórica, perseguindo explicações e passando por definições como poesia sonora, tradução intersemiótica, transposição criativa, transcriação, transcodificação. Enfim, com uma apresentação afiada e argumentos que de fato os fizessem brilhar, é possível que todos esses conceitos pudessem ser acessados para definir o álbum de poesia mixada, bastando a quem fosse usá-los a escolha de qual aspecto, entre vários, deveria ser destacado ou qual nuance, entre tantas, seria privilegiada.
Também seria possível falar sobre os vários desdobramentos históricos que, desde a antiguidade clássica, elucidam essa ligação original entre poesia e música, que vêm de um mesmíssimo tronco, constituindo-se quase como uma mesma necessidade de expressão que se estende em possibilidades diversas e complementares de criação. A relação entre a lira, o instrumento, e o que há séculos chamamos de lirismo; as intituladas cantigas, praticamente indissociáveis das sequências melódicas que acompanhavam as palavras, a própria ideia de trovar, etimologicamente: “imprimir um tom”. E, ainda, em uma perspectiva contemporânea, logo aqui ao lado e ao mesmo tempo tão longe, o povo Mbyá Guarani, por exemplo, que persiste e resiste entoando seus cantos, uma poesia que não diferencia música, ritmo, dança e palavra.
Mas quanto mais escuto o álbum, mais acredito que não precisamos tanto de conceitos para explicar este fenômeno, e sim aprender a permitir que ele incida sobre nós, sem maiores definições ou historiografias que se esforçariam apenas para compreender algo que percebo cada vez mais descolado de um entendimento propriamente dito.
E isso porque um dos maiores acertos de I Who Cannot Sing é ter atingido em suas peças de poesia mixada uma organicidade que confere a elas uma existência muito própria. Se originam sim, claro, do poema e do mix, respectivamente, mas essa dupla natureza cria uma terceira, que não obedece às mesmas leis. Insistir num olhar classificador e metodológico talvez seria, então, mais ou menos como ir para outro planeta e querer se comportar da mesma forma ao se deparar com outra atmosfera, outra gravidade.
No ano passado, estive em Inhotim com meus alunos do então 8º ano, que tinham na época mais ou menos 13 ou 14 anos de idade, numa excursão que possibilitou a eles passarem o dia no museu, entre galerias e obras. Em um trabalho escolar posterior a essa visita, no qual era pedido que os alunos relatassem por escrito o que viram, pensaram e sentiram a partir das experiências que tiveram por lá, uma aluna, depois de descrever sua visita à Galeria Cosmococa, de Hélio Oiticica, concluiu: “Lá é um lugar que você pode aproveitar com o corpo”.
Poucos meses depois, estive numa casa na Serra da Moeda, interior de Minas Gerais. Um local isolado, sem telefone, sem internet, no meio de um vale, de onde não se viam outras casas, apenas a estrada de terra, a mata, e, ao cair da noite, luzes distantes aqui e ali. No início da noite, começamos a escutar sons e sentir a pulsação de uma música diferente de tudo que já tínhamos escutado e que se estendeu madrugada adentro. Não era apenas a música, havia também os cantos, os passos, vozes, o som de pés que marcavam e acompanhavam o ritmo. Tudo aquilo – que, depois descobri, era um ritual xamânico que acontecia em uma propriedade relativamente próxima – parecia ser algo pertencente a outro universo. Quando voltei à cidade, passei dias procurando vídeos de rituais parecidos, buscando YouTube afora as músicas que ouvi naquela noite, e embora algumas até lembrassem as notas, as melodias, palavras difusas, repetições, nenhuma sequer se aproximava da sensação que experimentei naquela madrugada. Nada era misterioso o suficiente, longínquo o suficiente, orgânico o suficiente, real o suficiente. Entendi então que a questão não era a música, e sim sua existência naquela situação, o ritmo que se fundia ao lugar, a ambientação. Além da música, havia a mata, o eco, a noite, a casa… havia, portanto, a música, as palavras, os sons e, completando essa equação, o lugar onde meu corpo estava em relação a eles.
Conto aqui essas duas experiências porque depois delas, principalmente, pelo menos de forma consciente, tenho tentado pensar mais na perspectiva de uma escrita (que é o que faço, em termos de criação) e, talvez de forma geral, de um pensamento mais próximo do corpo, dos corpos. Mas no que diz respeito à recepção, ainda não tinha me deparado com nada, no campo mais específico da poesia, que vibrasse na intensidade do que tenho encontrado nas minhas inúmeras audições deste álbum de Patrícia Lino.
Lembro então de um verso de Edimilson de Almeida Pereira: “Dançar o nome com o braço na palavra”. Será que logo eu – que não sei, nunca soube, nunca quis e mal tentei dançar – estou, de alguma forma, dançando esses poemas? E independente do nome, da definição dessa obra, dessas obras, o que tenho feito é colocar o corpo na palavra, de escuta aberta e olhos fechados? Acho que isso é o mais próximo que consigo chegar de uma descrição, mas talvez ela, por si só, não diga quase nada.
Talvez repetir o poema, senti-lo vibrar na minha garganta, os versos que repito enquanto os dedos percutem, sentir esses sons reverberando de modos tão distintos na minha mente: essas são maneiras de experimentar o poema que extrapolam a linguagem na qual temos o costume de falar sobre poesia. E até mesmo de entender o que é, de fato, a poesia.
Se a impressão é algo que fica marcado, esse texto é uma tentativa de descrever uma marca no corpo, e talvez, por isso, falhe, como texto, como fala. A descrição só vai até um ponto, depois disso é necessário deixar-se levar pelo que nos afeta. Lembro então da lição da minha aluna: aproveitar com o corpo. Lembro da mensagem que restou do canto perdido na serra: pensar nas palavras e o lugar onde meu corpo estava em relação a elas. No lugar desse texto, eu poderia, quem sabe, propor uma espécie de rave em outra esfera, nem que seja nos castelos e aldeias escondidos sob nossas peles. A trilha sonora já sabemos qual é. E estão todos convidados.
Laura Assis nasceu em Juiz de Fora em 1985 e é doutora em Literatura pela PUC-Rio. É poeta e editora, tendo publicado o livro “Depois de rasgar os mapas” e três plaquetes de poesia, além de textos literários e críticos que figuram em revistas, antologias e veículos diversos no Brasil, Portugal, México, Dinamarca e EUA. Participa do coletivo editorial Capiranhas do Parahybuna e atua como professora de Língua Portuguesa e Literatura no Colégio de Aplicação João XXIII/UFJF.