Privado: Passagem para o passado – Resenha de Eduardo Guerreiro Losso sobre ERA MEU ESSE ROSTO

Privado: Passagem para o passado – Resenha de Eduardo Guerreiro Losso sobre ERA MEU ESSE ROSTO

Eis a resenha que Eduardo Guerreiro Losso – Professor de Teoria da Literatura na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – publicou na Revista Cult desse mês sobre meu romance ERA MEU ESSE ROSTO.

Se, já faz algum tempo, a literatura está em crise e perdeu a capacidade de despertar interesse por si mesma, será que estamos presenciando a perda de sua autonomia, que fora tão arduamente conquistada frente às pressões de ideologias religiosas ou políticas e, desde o crescimento da indústria cultural, vê-se ameaçada pelos imperativos do mercado? O desejo de muitos autores de escrever um livro pensando na hipótese de se tornar um filme, isto é, procurando já ser um roteiro, antes de ser um bom livro, é um sintoma do problema.

Leyla-Perrone Moisés escreveu recentemente que, na contramão desta tendência, há uma “literatura exigente” que é herdeira das vanguardas, recusa linearidade narrativa e se mistura com ensaio, diário e poesia, desafiando demarcações de gênero. Esse é, sem dúvida, o caso de Marcia Tiburi. Embora Moisés não tenha citado a ficcionista, que já está no seu quarto romance, não falta nela surpreendente qualidade e ousadia, motivo pelo qual eu não hesito em declarar que ela é uma das maiores prosadoras da literatura brasileira atual, junto com nomes como Evando Nascimento, que tem sido merecidamente bem recebido, e Carlos Emílio Lima, André Rangel Rios, Renato Rezende, que ainda não foram descobertos.

Era meu esse rosto é um romance feito menos de ação do que do enquadramento descritivo de situações, trabalhadas com uma linguagem carregada de sensorialidade poética, que não cessa de refletir sobre o tempo, a morte, a vida e o medo. Não considero que o narrador seja o escritor. Há um autor implícito que transforma a narração fotográfica do protagonista em texto: “Procurei fotografias, encontrei imagens fossilizadas de um passado que ficou sem narrativa”.

Os capítulos são divididos em duas séries: uma é numerada e se passa na cidade natal do protagonista narrador, no interior do sul do Brasil, que no andamento do romance toma uma direção predominantemente retrospectiva, começando do retorno do narrador adulto à cidade até à infância do avô, embora por vezes os tempos se confundam e o cenário de infância do narrador se repita. A segunda série é prospectiva, de quantidade textual menor, e alterna sempre com a primeira na progressão do livro, dando a entender que assume uma posição intervalar. Ela conta a saída do narrador do Brasil para uma viagem a uma cidade na Itália em busca de informações sobre as origens do avô. Este imigrou da Itália com um pai adotivo, que é chamado, misteriosamente, de Gattopardo, em referência ao romance italiano do escritor Giuseppe Lampedusa publicado em 1958 (virando o filme do mesmo nome de Visconti, em 1963) cuja narrativa também tematiza a história de uma família centrada num patriarca.

Devido à estrutura peculiar do livro e da abordagem enviesada, que pretende menos explicar do que nos deliciar com experimentos textuais, não é fácil reconstituir o enredo. Durante toda a sua vida o avô sonhava ser filho de uma condessa rica e indagava, sem resposta, o pai, que assumiu funções políticas no Brasil. O avô chegou a fugir e formar sua própria família, sem se ver livre, contudo, das fantasmáticas questões de sua origem, motivo pelo qual o romance repete sua frase em itálico: não podemos enterrar os mortos. Depois de enviar solicitações de explicação para o orfanato que o acolheu na Itália, recebeu a carta de uma freira afirmando que sua mãe era rica, relacionou-se com um casanova que logo a abandonou, motivando desfazer-se do filho, entregar a pais adotivos e assumir a vida religiosa.

À medida que a primeira série de capítulos avança, acompanhamos uma variedade de nascimentos e mortes da família e, no meio do livro, encontramos o nascimento do narrador, que foi filho do filho do avô mas não da mesma mãe que os outros irmãos e com quem o pai era casado. Logo, o narrador é um filho ilegítimo como o avô, motivo pelo qual era protegido por ele. Foi por isso que, depois de sua morte, o narrador toma para si angústia do avô, procura resolver o enigma da família e viajar à cidade italiana chamada simplesmente com a consoante V., assim como a cidade natal do sul também é chamada de V. Essa é uma das várias armadilhas do romance, que é capaz de produzir frases plenas de sentido, mas que podem passar desapercebidas a um leitor distraído: “É a carta, osso e fratura, que me faz comprar uma passagem para V. sem saber se poderei sair de V. Se poderei voltar a V.” O avô e o narrador estão em busca de uma verdade trágica desconhecida, a situação do leitor no labirinto da narrativa não é diferente. A variedade de duplos está representada naquilo que o prefácio de Regina Zilberman demonstrou: a estrutura alternante dos capítulos e o seu encontro nas últimas páginas está genialmente simbolizada pela consoante V.

Essa estrutura bipartida efetua uma sensação de estarmos recolhendo pequenas informações, indícios, e prorrogando a verdade indefinidamente. Zilberman entrevê na dupla origem ilegítima a regência do mito de Édipo. Eu diria que, assim como em Freud Hamlet figura melhor o complexo psíquico do que o próprio mito grego, o romance está de fato mais marcado pelo adiamento hamletiano, motivo pelo qual o narrador prorroga atividades turísticas que considera artificiais na cidade italiana e deseja fugir do compromisso mesmo que se impôs: “E nada melhor para fugir do que buscar, assim como não há jeito melhor para buscar do que conhecer a própria fuga”.

No final, quando a verdade se permite ser desvelada, será possível ao leitor encarar o seu rosto e pronunciar o não dito do romance?

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