Passadistas e futuristas

Passadistas e futuristas

Reunindo textos de partidários da vanguarda modernista, como Sérgio Buarque de Holanda, Mário de Andrade e Oswald de Andrade, e de seus adversários, como Lima Barreto, Oliveira Castro e Plínio Salgado, publicados em jornais e revistas da época, o livro 22 por 22 – A semana de Arte Moderna vista pelos seus contemporâneos, organizando por Maria Eugenia Boaventura, ilustra a polêmica travada por meia da imprensa em torno do evento que alterou o rumo das artes no Brasil

Djalma Cavalcante

O livro 22 por 22 – A semana de Arte Moderna vista pelos seus contemporâneos, recentemente publicado pela Edusp e organizado por Maria Eugenia Boaventura, apresenta duas qualidades essenciais: nos fornece um conjunto de importantes fontes primárias sobre o evento e, na sua “Introdução”, propõe uma série de temas, cuja discussão está absolutamente em aberto. Esperamos que pesquisadores aproveitem a sugestão e mergulhem neles, nos presenteando com um conhecimento sempre mais aprofundado do caráter abrangente desse momento fundamental de nossa história literária.

Logo no primeiro parágrafo da “Introdução”, a organizadora do livro deixa claro seu propósito:

Este livro reúne as polêmicas divulgadas na imprensa no decorrer do ano de 1922, quando um pequeno grupo de artistas, liderados por Oswald de Andrade e Mário de Andrade, difamava as nossas glórias artísticas ditas de “praça pública”, em razão da imitação servil, ou, como era alardeada, da “cópia sem coragem e sem talento”. Contra “esses falsos mitos” e sobretudo na busca da emancipação cultural levantava-se o então chamado futurismo paulista, a quem a respeitabilidade de Graça Aranha dera “a mão forte”. Aos gritos de “Independência! Originalidade! Personalidade!” começou-se a mudar o panorama das nossas artes.

Infelizmente, no Brasil, a publicação de transcrições ou fac-símiles de fontes primárias de pesquisa (documentos, artigos de jornais ou revistas da época) é rara, direi mesmo raríssima. Sendo um livro que reúne transcrições das “polêmicas divulgadas na imprensa no decorrer do ano de 1922…”, o 22 por 22 já assume a estatura de uma obra de grande importância. Não bastasse isso, os artigos transcritos foram organizados por Maria Eugenia de foram bastante competente e didática. Eles foram sistematizados em quatro grupos: dois no corpo principal do livro e dois no “Apêndice”.

Na primeira parte, denominada “Bárbaros e futuristas”, foram reunidos textos dos partidários da Semana: Sérgio Buarque de Holanda, Mário de Andrade, Hélios (pseudônimo usado por Menotti del Picchia), Oswald de Andrade, Antonio Piccarolo, Francisco Lagreca, Monna Lisa, Henri Mugnier e Serge Milliet (como, na época, assinava Sérgio Milliet), além de três artigos anônimos.

Na segunda, batizada “A consagração da vaia”, temos os adversários da Semana: Cândido (pseudônimo de Galeão Coutinho), F. (não identificado), G. Muniz, Mário Pinto Serva, A.F. (não identificado), O 3º Andrade (não identificado), Clodomiro Santarém, Oliveiro Castro, Plínio Salgado, Pauci Vero Electi, Oscar Guanabarino, Júlio Freire, Orpheus (não identificado), Ataka Perô (não identificado), P.B.C (não identificado), Lima Barreto, João Garoa (não identificado), além de diversos artigos anônimos.

Em cada uma dessas duas partes, os artigos estão dispostos cronologicamente, mencionando-se o local e data em que aconteceu a publicação original. Temos ainda um grande número de “Notas” bastante esclarecedoras, embora tenham sido deixados de lado alguns assuntos que mereceriam receber maiores esclarecimentos através de anotações que não foram realizadas.

O “Apêndice” também tem duas partes: “A semana na boca do novo”, onde encontramos uma coletânea de notas jornalísticas breves, geralmente de caráter anedótico, que retratam que tipo de receptividade popular teve a Semana no calor da hora; e “A semana em notícia”, onde temos reunidos um conjunto de artigos puramente noticiosos que foram publicados nos dias imediatamente anteriores à realização do evento, durante a própria Semana, e dois artigos posteriores a 18 de fevereiro, mas sempre no ano de 1922.

Não bastasse a importância desses documentos aos quais temos acesso de forma organizada, há ainda a “Introdução” escrita por Maria Eugenia, cujo título – Chuva de Batatas ­– lhe foi inspirado, como ela mesma menciona, por uma notícia referida à Semana, publicada em A Careta (Rio de Janeiro, 4 de maio de 1922).

Nessa “Introdução”, a organizadora, além de nos apresentar o livro, propõe algumas questões ainda não devidamente pesquisadas em relação à Semana de Arte Moderna. A preposição dessas questões é de suma importância, pois nos alerta para alguns conceitos e idéias prematuramente sacralizados acerca do evento.

Dado o caráter aparatoso e estrepitoso da Semana, o fato é que, à primeira vista, ela é entendida como o marco inaugural e mais importante do Modernismo na década de 20. Na verdade, as coisas não são bem assim e Maria Eugenia nos sugere a pesquisa acerca de quanto de folclore existe em relação a esse evento. Sugere ainda  retomada das questões propostas por Mario da Silva Brito (em História do Modernismo brasileiro – Antecedentes da Semana de Arte Moderna de 1922) sobre a gênese do Modernismo, situando-a muito antes da Semana de 22.

O aprofundamento de pesquisas e estudos a respeito desse assunto poderá nos conduzir a uma avaliação mais bem acabada sobre a real dimensão dessa rebelião estética. Por exemplo poderemos entender com mais profundidade a existência de preconceitos recíprocos entre os “passadistas” e os “futuristas”.

Outra sugestão implícita no texto da organizadora é que a ponderação efetiva acerca do sentido em que a palavra “futurismo” era empregada por ambos os lados da polêmica poderá abrir caminhos para um entendimento mais real dos verdadeiros vínculos existentes entre as propostas dos jovens brasileiros, particularmente paulistas, e as diverdas correntes de renovação estética que grassavam na Europa.

Ainda uma outra questão, mencionada pela professora da Unicamp, é a de se realizar uma avaliação do verdadeiro papel de Graça Aranha não só na Semana, mas no próprio Modernismo brasileiro (aliás, em relação a isso momento é extremamente oportuno, pois, em 2002, estaremos comemorando o centenário da publicação de Canaã, a obra-prima de Graça Aranha). Como nos é sugerido na “Introdução”, através do estudo do papel do escritor carioca poderemos compreender com mais exatidão o envolvimento de setores da elite paulistana na Semana.

A leitura atenta da “Introdução” nos propõe ainda uma série de outras interrogações e indícios para a realização de novas pesquisas. O mesmo acontece com a leitura do corpo principal do livro.

Sugerir caminhos é a contribuição fundamental que a organizadora desse trabalho tão importante nos dá.

Aos apaixonados pela pesquisa que fornece novas luzes a um tema tão polêmico como o é o da Semana de Arte Moderna, 22 por 22 é leitura obrigatória.

 Djalma Cavalcante é antropólogo

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