Privado: Paradoxo da burrice
O burro é o outro
Marcia Tiburi
Ao ser escrita, a palavra burrice soa mal. Por isso, um artigo como este precisa ser justificado. Para começar garantindo a validade epistemológica da palavra, proponho sua definição para além do jargão e do xingamento que a reduzem a um mero mal intelectual. O habitual é que quem a pronuncia acredite sempre falar da alheia. A burrice é do outro. Nem isso nem o contrário é o que espero escrever aqui. Antes é preciso falar da burrice tout court, a burrice nossa de cada dia. Talvez fosse bom escrever sua história, afinal conhecê-la é avaliar o “ser humano”.
Já que ninguém se imagina o portador da burrice, nem a autora nem os leitores, devemos primeiro tomá-la como objeto, devemos verificar se o uso da expressão é adequado ou se antes deveríamos considerar algo como a “experiência da burrice” como aquilo a que devemos prestar atenção. Digamos que prestando atenção já estamos na contramão da burrice. Digamos também que toda análise deve se abrir ao objeto e deixar-se influenciar por ele. Mas, nesse caso, quem, falando da burrice, quereria aprender algo com seu objeto, deixar-se tanger, e não escapar dele?
Gostaria de promover uma análise, portanto, dessa coisa que, na verdade, nos assusta, motivo pelo qual evitamos pensar nela. Por isso começamos por não perceber que a natureza dupla da palavra burrice nos prende a um paradoxo do qual devemos tentar escapar. A estrutura do paradoxo é a seguinte: já que não queremos pensar nela, não pensamos; ao não pensar, acabamos por realizá-la. Mas o paradoxo não cessa aí. Ele se renova quando, pelo xingamento, chamamos os outros de burros. Ou de idiotas e/ou imbecis, o que dá no mesmo. Quem designamos como burro é sempre um outro; mesmo quando dizemos a nós mesmos “que burrice eu fiz”, “que burro que eu sou”, é como se nos referíssemos a algo estranho em nós, um acidente, um excesso, algo que não faz parte do que somos.
Embora muitos pratiquem o xingamento gratuitamente, digamos que essa não seja uma atitude sábia em si mesma. Chamar o outro de burro/idiota/imbecil parece o gozo discursivo de quem não usa a capacidade para entender o que o outro carrega em palavras e atos que fazem com que o chamemos de burro/idiota/imbecil. Com exceção da primeira, as demais já foram palavras técnicas da psiquiatria. Mas, se não desconfiamos da burrice que imputamos aos outros, creio que o paradoxo está novamente realizado. Chamar o outro de burro apenas porque ele fala ou age diferente é atitude burra porque não surge de um pensamento.
Não quero dizer com isso que os “burros não existem” ou que são sempre uma heterodeterminação. Nem quero jogar fora o prazer da declaração sobre a burrice alheia, embora não seja nada nobre. Mas é preciso entender o uso da palavra relativamente a algo que, julgando pertencer ao outro, retorna para mim pelo seu mero uso. Chamar o outro de burro demonstra apenas que não pensei nele e, se não pensei, sou burro antes de parecer inteligente pela rapidez com que o heterodetermino. Estamos diante da falta de autocrítica. De toda a burrice possível, esta seria a mais elementar. A burrice primordial.
Melhor calar, pois a burrice não é de hoje
Um pensador como Kant, cujo senso de humor poucos percebem, escreveu em seu Ensaio sobre as Doenças Mentais que a burrice é uma doença. Ao burro, diferente do ingênuo ou do louco, falta entendimento. Aquela capacidade de pensamento que nos permite conversar com os outros e entender o que dizem e até mesmo o que lhes dizemos. Quantos falam sem pensar? Nietzsche, por sua vez, falou da estupidez de um jeito mais simples: uso de viseiras, ou “estreitamento da perspectiva”. Mas somente com Bouvard e Pecuchét, de Flaubert (publicado no Brasil pela editora Estação Liberdade), é que a crítica à burrice atinge seu ápice ao tocar no caso sempre notável da burrice dos inteligentes e da inteligência dos burros. Ou dos que, querendo ser inteligentes, são sempre os mais abestalhados. O erro dos dois amigos trapalhões criados por Flaubert era a crença de que a informação e a experimentação seriam suficientes para o sucesso da ciência. Ao final de Bouverd e Pécuchet, o famoso Dicionário das Ideias Prontas, um fichário de preconceitos de pensamento, é a prova linguística e histórica da acomodação mental que se expressa em palavras e da incapacidade de compreender que está em sua base.
Também Robert Musil, em uma conferência de 1937, percebeu que a burrice muitas vezes se confunde com aquilo que os antigos chamavam de “espírito”. Espírito, a propósito, é aquilo que hoje em dia ainda aparece na “sacada” ou no “tá ligado?” dos mais jovens. Quando alguém pergunta “tá ligado?”, pesquisa a inteligência do outro. Musil referia-se a uma estupidez estética e afetiva que fazia com que povos fossem incapazes de amar a arte, por exemplo. Mas essa estupidez não oferecia nenhuma certeza, pois se tratava de uma questão de gosto. E o que poderíamos fazer com algo como gosto? Musil mostra que a burrice é um pântano onde chafurdam os que se metem a falar nela.
Mesmo mantendo a dúvida que salva qualquer um da estupidez, Musil sugeriu em seu texto que aquele que deseja falar da burrice comece sustentando a própria inteligência contra tudo e contra todos, em vez de atuar no politicamente correto, humildemente dizendo que é um burro falando de bestas. Pois para ele pode ser estúpido parecer inteligente, mas nem sempre é inteligente passar por estúpido. O medo de parecer estúpido também fará com que alguns se sintam inteligentes evitando dizê-lo. Pior ainda se seu desejo de parecer burro for associado à vaidade: o estúpido é sempre vaidoso porque não tem inteligência para ocultar.
A burrice como categoria moral
Na história a burrice aparece como uma categoria do pensamento marcada justamente pela ausência de raciocínio. Theodor Adorno percebeu que ela é uma categoria moral. Adorno compara a burrice a uma paralisia. Se o corpo é paralisado por um ferimento físico, o espírito o é pelo medo. A burrice, diz ele, é uma cicatriz que surge de uma inibição e que se transforma em repetição. É uma deformação relativa à capacidade de pensar, de criar – quem repete pode nunca inventar nada –, mas também de agir daquele que teve experiências tão negativas a ponto de se tornar burro. Não é burro apenas quem pensa errado, mas quem pensa com inibição. Quem age de modo inibitório também. O medo seria o seu moto inevitável.
A ideia de que a burrice é uma categoria moral parece estar em vigência no Brasil de modo explícito. A ausência de debate, de espírito crítico, o culto da ignorância ou a política do xingamento, a aceitação de qualquer ideia como “politicamente correta” ou “incorreta” – para muitos o correto hoje é ser incorreto, mas raramente alguém se pergunta sobre isso –, sem a verificação da pertinência de cada ideia em si mesma e em sua conexão com o que está ao redor, são traços visíveis da cultura no cotidiano e nos meios de comunicação. Bem como no debate acadêmico de cunho fundamentalista, aquele que se aferra a ideias prontas ou simplesmente crê na exegese dos textos ou na mera aplicação dos métodos, como encontro da verdade.
Nesse sentido, seria bom rever a história do conhecimento em relação às ideias prontas que também são falhas, mas seria melhor ainda começar por refazer a história pensando em como não repeti-la.