Para além do gueto

Para além do gueto

Leia a seguir entrevista com o escritor João Silvério Trevisan, autor do romance Ana em Veneza, do volume de contos Troços e destroços, dos ensaios reunidos em Pedaço de mim e do livro Devassos no paraíso, considerado o mais importante tratado sobre a cultura homossexual no Brasil.

CULT – Em Devassos no paraíso, você questiona as noções de homossexualidade e de identidade sexual – preferindo dizer que existem “relações homossexuais” e “relações heterossexuais”. Você concorda com a expressão “literatura homoerótica”?

J.S.T. – Eu prefiro falar em “homossexualidades”, no plural, e – se for o caso de adjetivar – prefiro a expressão “literaturas homossexuais” (e não “literatura homossexual”). Mas, mesmo assim, faço ressalvas. O que me incomoda inicialmente é o porquê dessa adjetivação. Você já ouviu falar em literatura negra, feminina e homossexual – mas nunca ouviu falar em literatura heterossexual, literatura masculina e literatura branca.

CULT – Mas fala-se em “literatura ocidental”.
J.S.T. –
Sim, mas nesse caso é uma adjetivação tão ampla que tende a se diluir. Não se pode comparar, por exemplo, Dom Quixote com A divina comédia. O termo não abrange facilmente as várias manifestações que essa idéia oferece. No caso das literaturas mais específicas, fala-se em “literatura” e em “literatura brasileira”. A tendência dos europeus é fazer isso: quando eles falam em “literatura”, estão se referindo às literaturas inglesa, francesa, italiana etc., distintas das outras literaturas. Quando morei na Alemanha, estranharam que eu apresentasse uma peça radiofônica que falava da questão dos mísseis nucleares – como se, como brasileiro, eu devesse escrever apenas sobre futebol, favela e Amazônia. Por que, estando no Terceiro Mundo, não podemos falar de um problema que nos envolve, ainda que possamos não ser seus agentes? Por que nossa literatura tem de ser fixada num determinado contexto? O mesmo raciocínio vale para a literatura homoerótica. Muitas vezes eu sou classificado de escritor homossexual, mas eu nunca ouvi ninguém chamar Jorge Amado ou Henry Miller de escritor heterossexual. Muitas vezes essa adjetivação é dada com a melhor das intenções, procurando dar visibilidade e valorizar o trabalho, mas é uma faca de dois gumes. Eu quero ser um escritor – e, se a minha temática é preferencialmente homoerótica, isso é secundário diante da produção poética, que é o que interessa. Essa temática é a minha maneira de ver e analisar o mundo. Qual a diferença entre a temática da incomunicabilidade, em Bergman, a temática da lembrança, em Fellini, e a temática homossexual em qualquer outro diretor?

CULT – Falando de diretores, Pasolini é um caso de cineasta gay que não pode ser reduzido à temática homoerótica.
J.S.T. –
E há o caso de Pedro Almodóvar, que nem sempre faz filmes de temática explicitamente homossexual, mas cuja abordagem é sempre homoerótica. Portanto, há uma diferença entre temática e abordagem homoeróticas, entre literatura homoerótica (com isso supondo a existência de um estilo) e abordagem homoerótica (reveladora de um clima, mas menos comprometedora do que a idéia de uma “literatura”). Não acredito na existência da primeira, mas a segunda é fundamental para compreender os meandros de muitos autores cuja homossexualidade funcionou como elemento  deflagrador de certas cores, sabores e texturas no texto. Assim como existem muitas maneiras heterossexuais de escrever – Henry Miller e o cubano Pedro Juan Gutiérrez são exemplos de literaturas muito diferentes dentro de uma abordagem obviamente heterossexual –,  há uma diferença brutal entre Proust, Genet e Manuel Puig do ponto de vista estilístico. Não se pode generalizar e dizer que se trata de literatura homoerótica. O desejo vai criar um tipo de estilo, de escola? A vivência homossexual – por ser uma vivência não manifesta e, na maioria das vezes, invisível – cria um terreno propício para manifestações subculturais: um jeito de falar, uma linguagem específica do gueto, modos de olhar o mundo. Isso pode influenciar, mas não até o ponto de criar uma escritura ou escrituras típicas. É muito importante que ecloda uma literatura em que a vivência homossexual esteja presente, mas isso não significa que eu tenha de escrever como Puig ou Genet pelo fato de ser homossexual. Eu procuro a minha expressão literária incluindo a minha homossexualidade – mas esta, em si mesma, não cumpre esse objetivo de expressão. A homossexualidade é um componente – um componente muito importante, mas eu ousaria dizer que é perigoso fazer uma classificação como esta, porque isso indica um caminho de uma “literatura menor”.

CULT – A abordagem homoerótica faz presente em um escritor gay mesmo quando o conteúdo homossexual é velado?
J.S.T. –
Se você for um escritor, você sempre terá componentes de sua personalidade presentes em sua obra, seja você hetero, homo ou bissexual. Portanto, no caso de um escritor gay, é inevitável que o componente homossexual esteja presente, especialmente pelo fato de ele não ser manifesto, pois aí entra em cena a questão do inconsciente, ou aquilo que Jung chamaria de sombra – e a sombra é muito mais intensa e poderosa do que os elementos presentes na consciência. Freqüentemente uma literatura que não é explicitamente homoerótica conterá elementos resultantes de uma vivência homossexual. Um exemplo é  literatura de Thomas Mann, em que isso pode estar explícito, como em Morte em Veneza, mas também pode estar diluído em toda sua obra na forma de personagens que vagam numa espécie de limbo. Se você coloca isso sobre o pano de fundo da homossexualidade de Thomas Mann, todas as peças se encaixam, pois essa era a problemática dele, que se casou, teve filhos e continuou tendo fantasias homossexuais – inclusive quando via seu filho Klaus nu, tomando banho. Ele conta em seu diário a atração que sentia por jardineiros e garçons pelos quais literalmente se apaixonava. Esse pano de fundo é fundamental, por exemplo, para complementar a leitura de um livro como A montanha mágica.

CULT – Esse tipo de interpretação encontra muita resistência na crítica literária?
J.S.T. –
Cheguei a ter uma polêmica com uma professora universitária porque, em entrevista ao jornal O Globo sobre o outing [revelação pública da homossexualidade de personalidades], manifestei minha idéia de que seria fundamental relevar o aspecto homossexual de certos autores – daí por que, em Devassos no paraíso, abordei a homossexualidade de Mário de Andrade e Guimarães Rosa. Nessa  entrevista, eu argumentava que, se é consenso que a amante secreta de Beethoven foi importante na gênese de alguma de suas obras, por que a homossexualidade de um escritor como Thomas Mann também não o seria? Em resposta, a professora, revoltada, disse que isso era a mesma coisa que mencionar a gagueira e a morenidade de Machado de Assis para falar de sua obra. Fico escandalizado com essa ingenuidade, com essa pudicícia da universidade: se Machado de Assis não fosse mulato e gago, com certeza seria um José de Alencar! O fato de ser “torto” é que levou Machado a ter aquela ironia tão pessoal; foi isso que permitiu que tivéssemos um gênio – um gênio torto – na literatura brasileira.

CULT – O próprio Roberto Schwarz – que de ingênuo ou pudico não tem nada – mostra que a representação aguda que Machado faz do Brasil vem diretamente dessa percepção de mundo do excluído, do pária, do agregado – percepção que está ligada à história pessoal do escritor.
J.S.T. –
Exatamente. E a mesma coisa ocorre com a questão da homossexualidade, que produz uma literatura que tem o ponto de vista da margem. Esse é o ponto principal: ao se referir à homossexualidade, você está sempre se referindo a uma vivência profundamente marginal; só um homossexual pode ter idéia do que significa viver num contexto que não o supõe e ao qual tem de dar respostas. A vivência homossexual implica uma vivência contra a cultura – uma cultura patriarcal secularmente organizada contra qualquer possibilidade de manifestação amorosa fora da relação homem-mulher. Durante 24 horas por dia você tem de dar uma resposta que não está prevista, uma resposta que você deve tirar do nada – e por isso a vivência homossexual é extraordinariamente inventiva. Mas, muito freqüentemente, são respostas que não conseguem superar os efeitos colaterais. A incidência de neuroses no meio homossexual é brutal, porque o massacre é brutal.

CULT – A criação de espaços de manifestação como a Parada do Orgulho Gay e as coleções de literatura homoerótica não acabam confinando os homossexuais num gueto?
J.S.T. –
Eu fui um dos fundadores do movimento homossexual no Brasil, com o grupo “Somos” e com o jornal Lampião. A existência de uma parada que coloca nas ruas entre 500 e 700 mil pessoas em São Paulo é muito alentadora. Quanto às coleções, é algo parecido com as ações afirmativas. Eu freqüento o gueto, tenho receio de que leve a uma demarcação de territórios – mas sei que ele é necessário. Se eu for com meu namorado ao gueto, posso beijá-lo; mas se eu fizer isso em uma boate hetero ou em um restaurante, o segurança vai me botar para fora ou eu vou ser repreendido pelo garçom – tanto que as pessoas estão forçando a barra para expressar seus afetos em público, apoiando-se nas leis anti-homofóbicas que existem. Fora do gueto, você corre riscos, pois o campo da sexualidade é muito propício para a eclosão de demônios e existe uma enorme quantidade de pessoas doentes por homofobia. A existência do gueto, portanto, é um mal menor. A idéia é que o gueto se amplie a tal ponto que as suas fronteiras desapareçam.

(1) Comentário

Deixe o seu comentário

TV Cult