A ousadia de pensar o aborto: Uma questão bioético-política

A ousadia de pensar o aborto: Uma questão bioético-política
(Arte Revista CULT)

 

Segundo a Pesquisa Nacional do Aborto (PNA) realizada em 2016 e publicada em 2017, uma mulher por minuto pratica aborto no Brasil. Isso significa dizer que uma a cada cinco mulheres alfabetizadas entre 18 e 39 anos já fez um aborto. Ou seja: 4,7 milhões de mulheres já abortaram. Diante desses números, nos perguntamos: por qual razão pensar o aborto ainda gera tanto incômodo em uma parcela da população? E quais aspectos bioéticos e políticos precisamos destacar neste debate?

Antes de tudo, é preciso desmitificar a retórica acerca do estatuto moral do embrião que normalmente acompanha a disputa conceitual sobre a origem da vida. Tal retórica comumente revela uma suposta cisão entre aquelas que seriam (1) contrárias ao aborto e, consequentemente, a favor da vida, e (2) favoráveis ao aborto e, consequentemente, contrárias à vida. Quando apresentado nesses termos, o debate sobre o aborto torna-se uma falácia, pois encobre o debate público sobre sua descriminalização e todos os elementos que compõem o cenário de violência e precarização a qual essas mulheres são submetidas.

Ou seja, trata-se de um debate bioético iminentemente político, dado que visa a garantir o direito à liberdade de cada mulher endossar crenças e valores específicos sem que seja punida por isso. Sendo assim, a apresentação falaciosa do debate sobre o aborto impede justamente o ato de pensar o aborto e, consequentemente, perpetua o controle biopolítico que marca e tortura o corpo das mulheres historicamente.

PEC 181 e o aborto no Brasil

Pensar o aborto no Brasil parece ter se tornado um ato especialmente ousado nos últimos dias. A ameaçadora PEC 181/2015 (antiga PEC 181/2011), votada na última quarta (8), tem relevante potencial retrógrado de criminalização total das mulheres que abortam no Brasil. A Proposta de Emenda Constitucional foi criada por uma comissão especial, cuja formação revela um aspecto importante de toda a questão: são 28 deputados – 24 deles publicamente contrários à descriminalização do aborto – e apenas três mulheres.

Em 29 de novembro de 2016 a Primeira Turma do STF afastou a prisão preventiva de dois profissionais denunciados pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro pela suposta realização de aborto com o consentimento da mulher e formação de quadrilha (artigos 126 e 288 do Código Penal). O voto do ministro Luis Roberto Barroso, acompanhado pela maioria, incluiu a interpretação de que a criminalização do aborto, constante no Código Penal, deveria excluir aqueles praticados no primeiro trimestre da gestação.

O ministro acrescentou no voto que a criminalização viola direitos fundamentais das mulheres, como os direitos sexuais e reprodutivos, a autonomia, a integridade física e psíquica, e a igualdade em relação aos homens (cisgêneros), que não engravidam. A decisão, que se referia ao julgamento de um Habeas Corpus, rapidamente ganhou notoriedade midiática, o que fez com que os grupos organizados em torno da pauta pela criminalização total do aborto no país se manifestassem.

Dentre os vários posicionamentos contrários à decisão e também muitos favoráveis, na mesma data Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara dos Deputados, criou uma comissão especial para incluir na Constituição a definição de que a vida começa na concepção. A comissão foi instalada para discutir a proposta sobre ampliação da licença-maternidade, mas desde o início manifestou centralidade na questão do aborto, especialmente em oposição à decisão pontual do STF.

Nas manifestações de envolvidos, algumas frases ditas à época assinalavam as questões supostamente de fundo: “Sempre que o Supremo legislar, nós vamos deliberar sobre o assunto”, disse Rodrigo Maia, do DEM-RJ. “Revogar o Código Penal, como foi feito, é verdade, num caso concreto, trata-se de um grande atentado ao Estado de direito. O aborto é um crime abominável porque ceifa a vida de um inocente”, disse Evandro Gussi, do PV-SP, e presidente da comissão especial. “Nós, que somos cristãos, nós que defendemos a família, nós que defendemos a vida, nós não concordamos com essa decisão”, disse Edmar Arruda, do PSD-PR.

Manifestação no Dia Internacional da Luta das Mulheres em São Paulo, 2015 (Foto: Roberto Parizotti)
Manifestação no Dia Internacional da Luta das Mulheres em São Paulo, 2015 (Foto: Roberto Parizotti)

Os posicionamentos, semelhantes aos apresentados no relatório do Deputado Jorge Tadeu Mudalen, já referente a PEC 181, tem como questão não só o embate entre os dois poderes, mas uma guerra masculinista sobre a soberania da deliberação sobre a questão do aborto, tendo o corpo e a vida das mulheres como campo de batalha.

A votação da PEC teve 18 votos favoráveis, todos de homens. A única mulher presente, Érika Kokay (PT-DF), representou o voto contrário. Ainda que contendo problemas quanto ao reforço da responsabilidade exclusiva das mulheres com o cuidado, a proposta original tinha como foco a ampliação de um direito trabalhista, a proteção das crianças e das mulheres.

A subversão do teor da proposta de emenda revelou a retirada das mulheres como foco de preocupação moral e a integral (e suposta) preocupação apenas com um núcleo de células embrionárias de um ser humano, forjando um dilema moral e igualando o embrião, desde a concepção, à qualidade de concernido moral equivalente as mulheres. A manobra política, ora evidente, se alinha a um fenômeno já conhecido no cenário brasileiro, de intervenção do campo religioso na política e a eleição de determinadas pautas como centrais, sobretudo as relacionadas aos direitos LGBTTIs e aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.

Em uma sociedade democrática, que respeita os princípios de laicidade e pluralismo moral, tal inserção não implica necessariamente um problema, entretanto resta compreender a eleição de tais agendas políticas como modo não só de apresentar um projeto de sociedade, mas de capitalizar, em uma espécie de economia da moral, discussões abstratas, que recusam a gravidade dos impactos concretos na vida de sujeitas e sujeitos interseccionalmente afetadas(os) por tais disputas.

Desde pelo menos os anos 1990, a pauta do aborto tem sido utilizada como moeda de troca política no Brasil, definindo alianças e mesmo resultados de eleições, como a presidencial de 2010, conforme evidencia a pesquisa “Religião e Política no Brasil – um estudo sobre a atuação de lideranças evangélicas no cenário político nacional”, da Fundação Heinrich Boll e ISER (Instituto de Estudos da Religião). A eleição do aborto como agenda central, hegemonicamente representada por homens, cisgêneros, brancos, heterossexuais, porta-vozes de elites nacionais e internacionais, surge historicamente como contra-mobilização aos movimentos feministas e como modo capitalizado de visibilidade, acesso e permanência no jogo político.

Questões para continuar pensando o aborto

Este arranjo justifica, ao menos em parte, toda a disputa envolvendo o tema do aborto, bem como sua recorrência no debate público, especialmente por um viés polemista e espetacularizado. Algumas outras questões se apresentam: estariam todos estes homens de fato interessados na defesa do embrião? A questão da inviolabilidade da vida desde a concepção pode ser tida como o centro de um debate notoriamente marcado por uma assimetria entre as partes? Quais mulheres estão tendo seus corpos sistematicamente instrumentalizados, suas demandas caladas, seu direito a autodeterminação violado e suas vidas colocadas em risco? Finalmente, como podemos justificar que o Estado imponha às mulheres uma gestação e uma maternidade indesejadas, em muitos casos, traumáticas, e, simultaneamente, se exima de sua responsabilidade quanto a garantia da qualidade de vida de seus filhos já nascidos e dos que por sua própria determinação virão a existir? Tais questões ousam ecoar.


FABIO A.G. OLIVEIRA é professor de Filosofia da UFF e membro do Núcleo de Ética Aplicada (NEA) da UFRJ

LETÍCIA GONÇALVES é doutoranda em Bioética da UFRJ e membro do Núcleo de Ética Aplicada (NEA) da UFRJ

MARIA CLARA DIAS é professora de Filosofia da UFRJ e membro do Núcleo de Ética Aplicada (NEA) da UFRJ

(1) Comentário

  1. Excelente reflexão! Mas infelizmente em uma sociedade conservadora na qual as questões fundamentais são anuladas do debate, principalmente por aqueles que deveriam suscita-las, é difícil pensar em uma possibilidade de reversão nos números assombrosos sobre o aborto no Brasil… Impressiona a hipocrisia do discurso religioso em defesa da vida enquanto o índice de mortes provocado por abortos clandestinos cresce a cada dia. A sociedade precisa criar outras formas de contraposição aos posicionamentos retrógrados no sentido de manter em evidência a necessidade da discussão. Nesse sentido, o artigo aponta questões fundamentais que precisam ser compartilhadas e ampliadas por aqueles que pensam de maneira racional.

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