Os anos de Annie Ernaux: o lugar da mulher em texto e filme

Os anos de Annie Ernaux: o lugar da mulher em texto e filme
(Foto: Bettina Pittaluga/ The New Yorker)

“A primeira imagem do filme mostra uma porta de entrada se entreabrindo – é de noite -, torna a se fechar e depois abre outra vez. Um menininho aparece, depois para, indeciso, com um casaco laranja, um boné com abas cobrindo as orelhas, pisca os olhos. Depois surge outro menino ainda menor, todo encasacado, usando uma jaqueta azul de forro branco com capuz. O maior está inquieto, o outro fica parado, os olhos fixos, parece que o filme parou. Uma mulher entra com um sobretudo marrom e longo, colado ao corpo, o capuz escondendo a cabeça.”

A mulher de sobretudo é Annie Ernaux, a mais recente ganhadora do prêmio Nobel de Literatura. Estamos no começo dos anos 1970. Ela “carrega no braço duas caixas de papelão uma sobre a outra, cheias de produtos alimentares”. Ela é a dona de casa, quem cuida dos mantimentos para ela, o marido e seus dois filhos. Provavelmente vai deixar as caixas na cozinha, pois “desaparece do campo de visão, reaparece sem as caixas, tirando o sobretudo, que pendura em um cabideiro, se vira para a câmera e lança um sorriso rápido, depois abaixa os olhos, ofuscada pela luz forte da lâmpada de magnésio”.

A cena descrita acima está no livro Os anos, de Annie Ernaux (ed. Fósforo), e é também a cena de abertura do documentário Os anos do super-8, codirigido por Annie e seu filho David Ernaux-Briot. As imagens são as primeiras que Philippe Ernaux, marido de Annie por 17 anos e pai de David, registrou da vida familiar ao comprar uma filmadora super-8, em 1972. As bobinas ficaram guardadas por décadas e saíram do armário recentemente, quando o neto de Annie e filho de David quis ver imagens do avô que ele não chegou a conhecer.

A família se reuniu em torno do projetor e assistiu aos registros que hoje fazem parte do filme, ouvindo os comentários da avó. Diante das imagens, Annie e David perceberam que não se tratava apenas de um arquivo familiar, mas também de um testemunho sobre a vida de uma classe social francesa no período seguinte a maio de 68. Decidiram integrar as imagens em uma narrativa que cruzasse o íntimo, o social e a história, e o resultado é o documentário (ainda sem previsão de lançamento no Brasil). “David cuidou das imagens e eu me ocupei do texto”, disse a escritora em Paraty, em novembro deste ano, durante a 20ª FLIP.

O documentário evidencia um procedimento recorrente na obra de Ernaux: a construção do relato a partir de imagens. No livro Os anos, homônimo do filme não por acaso, a narrativa traça um panorama da vida da autora a partir de uma série de fotos, apresentadas em ordem cronológica. As imagens escandem o relato que dá conta ao mesmo tempo – e no mesmo movimento – da vida de Annie e do cenário cultural e político francês.

Diferentemente de outras de suas obras, como O lugar e O acontecimento, por exemplo, Os anos é narrado em terceira pessoa, o que o torna um de seus livros menos “íntimos”. Mas as fotos que estruturam o relato são da própria Annie, desde quando era bebê até seus 64 anos de idade – o que claramente a coloca em cena. No filme, o procedimento é parecido, a narração parte de imagens, mas no caso são os registros que seu marido Phillipe Ernaux fez da vida familiar, com sua câmera Super-8, entre 1972 e 1981, desde que adquiriu a filmadora até o divórcio do casal.

Um aspecto que chama muito a atenção no filme é o lugar de Annie no seio de sua família nuclear burguesa, composta por ela, seu marido Philippe e seus filhos David e Eric. Advinda de um contexto rural humilde, a escritora deixou seu ambiente de origem ao fazer o curso de letras na universidade e passar em um concurso público. Esse deslocamento afetivo-social e seus desconfortos são abordados em diversos momentos de sua obra, como em O lugar, quando narra a morte de seu pai, que representava para ela esse universo social e cultural de origem, ou em A vergonha, quando comenta o sentimento em relação a essa origem.

No filme, o incômodo parece estar no papel de mulher que aquele contexto e o olhar de seu marido querem lhe impor. De um lado, as imagens de Philippe querem pintar o retrato de uma família feliz. De outro, o sorriso amarelo estampado na tela escancara o incômodo daquela mulher que queria ser escritora e livre, para além de seu papel de mãe e esposa.

No livro Os anos, ela comenta a cena que abre o filme (e este texto), dizendo que aquela mulher que aparece no quadro de sobretudo marrom “tem alguma coisa ascética e triste – ou desiludida – na expressão, o sorriso chega tarde demais para ser espontâneo”. É exatamente esse sorriso de canto de boca que salta aos olhos do espectador.

“Até que ponto Maio de 68 – que ela tem a impressão de ter perdido, pois a vida já estava estabelecida demais – está na origem da pergunta que não a deixa sossegada: ‘Será que eu poderia ser mais feliz se levasse outra vida?’” A pergunta formulada no livro associa o desconforto que as imagens revelam ao grande acontecimento que transformou a vida política e cultural da França e do resto do mundo. Se, por um lado, ela tem a impressão de ter perdido Maio de 68, talvez por estar ocupada com as tarefas domésticas e com o filho recém-nascido, por outro podemos supor que os desdobramentos sociais e políticos que alcançariam seu ápice nos anos 1970 a transformaram, sim, pois a partir dali as mulheres poderiam, elas também, ser livres.

É nesse contexto que ela começa a escrever, ainda que às escondidas. Entre o trabalho doméstico, a educação dos filhos, a vida de esposa e a rotina de professora, Annie se desdobrava para desenvolver a primeira parte de uma obra que seria agraciada com o maior prêmio da literatura quase 50 anos depois. Por trás daquela mulher incomodada, estava sendo gestada sua libertação. Os primeiros livros só poderiam ter sido escritos em segredo, disse ela na FLIP, pois eram livros de ruptura. Aquela mãe e esposa preparava sua emancipação por meio da escrita: a mulher que ganharia o mundo, as prateleiras de livrarias e, anos mais tarde, o prêmio Nobel.

Quando recebeu a carta da editora Gallimard, uma das mais prestigiadas da França, dizendo que seu primeiro livro seria publicado (Les armoires vides, de 1974, ainda sem tradução em português), estremeceu. O processo estava em curso. As imagens do filme não nos revelam isso; ficamos sabendo apenas pela narração, que chega até nós em 2022.

Durante uma sessão seguida de debate com ela e seu filho David, na Quinzena dos realizadores de Cannes em Paris, Annie afirmou que o passado está lá, presente nas imagens, mas que ela as vê com distanciamento, que não geram mais desdobramentos nela, nenhuma sensação ou arrependimento. Com o filme, ela teve a possibilidade de re-ver esse passado, buscando as palavras mais justas para evocá-lo. O que chega ao espectador parece ser, no entanto, um acerto de contas com sua própria história.

Na mesma conversa, em junho deste ano, Annie comentou que quando se divorciou de Philippe, ele deixou com ela os rolos das imagens da família e o projetor, mas levou a câmera. Ele poderia, agora, fabricar uma nova vida e novas imagens. A ela, caberia a memória daqueles dias passados, filmados por ele. A “ficção familiar” que ele criou, nas palavras de Annie.

Mas ela inventou outra vida para si, e com o documentário pôde recontar sua própria história, deslocando-se do lugar em que seu marido quis colocá-la. O filme cobre justamente o período em que ela preparava uma outra vida, se separava lentamente do marido e era “definitivamente invadida pela escrita”. A nova vida consistia em ser livre e escritora, e uma escritora livre.

50 anos depois, a mulher incomodada dos anos 1970 dá o troco e constrói uma contra-narrativa em relação à imagem que o marido traça dela e daquela família. No documentário, ela impõe sobre a imagem, finalmente, a palavra da mulher insatisfeita e deslocada, com texto escrito e narrado em voice-over por ela mesma. Conta, em seu texto tão característico, como aquilo não era bem o que parecia.

Séria, ela aparece nas imagens sempre observando com olhar afiado tudo ao redor, incomodada com a luz da câmera que queima os olhos. Talvez observasse para poder escrever depois, para descrever em detalhes as pequenezas da vida cotidiana no que se tornou a característica mais marcante de sua obra, o relato autobiográfico.

Annie e David são muito hábeis ao construir a narrativa cinematográfica, recorrendo a recursos de montagem, ritmo e sonorização. Há momentos fortes, outros doces; o texto às vezes comenta as imagens, às vezes se descola delas, jogando com a duração dos quadros e da voz off de Annie. Para além de um texto que descreve ou ilustra o que está na tela, os diretores conseguiram trazer novas emoções para as imagens. Sons e ruídos acionam a memória do espectador e a trilha sonora evoca sensações.

Quando Annie e David reuniram novamente a família para mostrar as imagens, desta vez na forma de um filme, uma das netas de Annie lhe perguntou: “Mas vó, será que esse filme [tão íntimo, familiar, particular] vai interessar a alguém?”. Annie comentou essa reação da neta na apresentação do filme em Paris, e na saída da exibição que assistimos na Cinemateca Brasileira, em uma sessão da 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, ouvimos um comentário parecido: “Acho que esse filme é interessante só para a família dela!”, indignou-se um jovem que conversava com seus amigos.

Mas ocorre que a força da obra de Ernaux está justamente no cruzamento das dimensões individuais e coletivas, públicas e privadas, singulares e universais. Ao falar de si e de sua família, ela aborda dramas compartilhados, sempre atravessados pelo seu tempo. É o que atesta também a epígrafe de Os anos: “Temos apenas a nossa história e ela não é nossa”. A frase de Ortega y Gasset resume bem esse aspecto do projeto literário da escritora, que explicita o modo como nossas histórias são sempre coletivas: são a única coisa que temos, mas não são apenas nossas, são compartilhadas e narradas em uma linguagem que nos é comum.

As viagens da família capturadas em super-8 mostram a tia Dominique que se recusa a viver no capitalismo e sonha novos futuros, o Chile socialista de Allende, a Albânia ainda comunista, o Portugal rebelde da Revolução dos Cravos e a Espanha que se liberava de Franco. Elas também atestam: as transformações dos anos 1970 ocorriam simultaneamente nos planos micro e macro políticos. Nas palavras da autora, “história familiar e história coletiva são uma única coisa”. E é isso que sua escrita evoca, assim como o filme que ela lança agora com seu filho caçula.

Para além da história coletiva, Ernaux tem um foco: a história da mulher na história do mundo. Entre os livros publicados no Brasil, isso talvez fique mais evidente em O acontecimento e em O jovem. No primeiro, ela narra a história do aborto clandestino que fez quando era uma estudante de letras – e todas as consequências disso. No segundo, conta como, já bem mais velha, se relacionou com um homem mais novo que seus filhos. E, dessa vez, era ela que o introduzia em outra cultura, como seu marido havia feito com ela anos antes. Ainda que de modo menos explícito, a mesma questão atravessa Os anos e o documentário.

A outra epígrafe do livro, uma citação de Tchecov, afirma que “Sim. Seremos esquecidos. É a vida, nada podemos fazer”. A empreitada literária de Ernaux parece lutar contra esse esquecimento, contra o desaparecimento das imagens que está decretado desde a frase de abertura do livro: “Todas as imagens vão desaparecer”. As fotos, alguns objetos e a memória ajudam-na a não esquecer e a não ser esquecida. No filme, as imagens estão lá, são fragmentos do olhar de um outro sobre ela e sua família. Em certo sentido, “eternizam”, mas a escrita vem se sobrepor, como uma outra camada. Lembrar e narrar são também atos criativos.

Ao ganhar o Nobel, Annie afirmou ter receio de que a mais alta condecoração da literatura pudesse atrapalhar sua velhice. Segundo ela, a “quinta estação da vida” precisa ser vivida, pois não poderá ser lembrada depois. Quando as imagens – e Annie – desaparecerem, caberá a nós, que ficamos com seu texto e filme, lembrá-la como referência da possibilidade de emancipação das mulheres.

Depois de 48 anos da publicação de seu primeiro livro e reconhecida com o maior prêmio da literatura mundial, Annie Ernaux continua se libertando. Ao lançar um filme com sua voz sobre imagens feitas pelo ex-marido, impõe sobre a ficção que ele quis criar, finalmente, seu female gaze.

Em um primeiro momento de ruptura, aquela mulher do filme, que escrevia seu livro escondida, consegue ser publicada e, a partir daí, inicia uma nova vida, se emancipando por meio da escrita de si. Em um segundo momento, rompe, mais uma vez, com o passado – e o presente – que quiseram lhe impor, jogando no mundo um filme sobre si. Mas não só.

Paula Sacchetta é documentarista.
Jonas Tabacof Waks é professor de filosofia.


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