Olga Savary: poeta, não poetisa

Olga Savary: poeta, não poetisa

 


“No Brasil, poeta morre de fome.

Mas sou apaixonada por este malandro chamado literatura
e não viveria sem ele.”
Olga Savary (1933 – 2020)

 

Olga completaria 87 anos hoje, 21 de maio de 2020.  A poeta, lamentavelmente, nos deixou na última sexta-feira, 15 de maio. Nascida em Belém do Pará em 1933, vivia no Rio de Janeiro. Filha de pai russo e mãe paraense, se orgulhava de ter uma bisavó materna de origem indígena.

Olga Savary foi poeta, tradutora, contista, romancista. Traduziu mais de 40 obras de literatura hispano-americana, incluindo autores como Jorge Luis Borges, Julio Cortázar, Octavio Paz, Pablo Neruda, Laura Esquivel, Federico García Lorca, Carlos Fuentes, Mario Vargas Llosa e outros.  Em 1994 Olga Savary venceu o Prêmio Jabuti de Tradução, por Como água para chocolate, da escritora mexicana Laura Esquivel.

Pioneira, avançada, culta e belíssima, Olga também ficou conhecida por ter sido a primeira mulher brasileira a lançar um livro de poemas eróticos.  No Brasil, foi a segunda a publicar haikais, o primeiro foi um homem – segundo me contou, orgulhosa, ela foi “a primeira mulher a divulgar a arte do haikai no Brasil”.  Olga era poeta, e não “poetisa”, termo que ela e eu detestamos.

Carlos Drummond de Andrade foi apaixonado por ela.  Apesar de sua imensa admiração pela poesia de Drummond, Olga não correspondia à paixão do escritor mineiro.  “Drummond era meu primo, ele que descobriu isso e me escreveu para contar. Ele era apaixonado por mim, eu não.  Se bem que uma vez encontrei com ele na rua, e tive que encostar na parede, para não cair. Fiquei com as pernas bambas, não de paixão, mas de ternura”.

Antes de mergulhar na poesia intensa, selvagem e única de Olga Savary, que terei a alegria de apresentar logo abaixo, preciso compartilhar o contexto do meu último encontro com Olga no Rio de Janeiro, há poucos dias.

Nas últimas semanas estive convidando pessoalmente as personalidades escolhidas para o Conselho do projeto p-o-e-s-i-a.org, que vai ajudar poetas brasileiros em dificuldade.  Já estão no conselho Chico Buarque, Conceição Evaristo, Armando Freitas Filho, Francisco Alvim, Heloísa Buarque de Hollanda, José Carlos Capinan, Josely Vianna Baptista, Leonardo Fróes, Eliane Potiguara, Ricardo Aleixo, Eliane Robert Moraes, Claudio Willer, entre outros.

Enviamos e-mails para quase todas e todos os conselheiros.  Alguns não tem e-mail, então passamos a telefonar.  Num desses telefonemas, um susto. Do lado de lá da ligação, mais gemidos e tosses do que voz. Ao tentar introduzir a ideia do projeto, e a homenagem ao Conselho de poetas, as respostas eram entrecortadas por silêncios, tossidas, lapsos de memória, gemidos de dor.

– “Estou com muito frio, estou muito fraca, só comi bananas a semana inteira…”.

– Do lado de cá: “Nossa.. Você está com febre? Tem alguém aí com você? Quer que te leve ao hospital”?

– “Não, estou sozinha, não tem ninguém aqui, estou muito fraca para qualquer coisa…”.

– “Agora está muito tarde, mas se a senhora permitir, amanhã vamos fazer umas compras no supermercado, podemos levar alimentos frescos para você se alimentar melhor… Vamos de máscara, e deixamos os alimentos na sua porta…”.

-“A minha memória está péssima, Beatriz, seu nome me diz alguma coisa, mas não estou lembrando de onde….”

– “Não se preocupe, nós não nos conhecemos pessoalmente, sua memória está boa! Li a sua poesia e suas traduções, liguei para fazer o convite e a homenagem do projeto poesia.org…”.

E assim a própria missão do projeto, de ajudar poetas em dificuldade, se impôs de maneira urgente.

No dia seguinte fomos à sua casa, Laura e eu; ela estava tossindo, sozinha, rodeada de livros. Olhou discretamente as caixas de alimentos que levamos. Perguntou quanto teria que pagar pelas compras. “Nada, fique tranquila”. Ela abriu um pequeno sorriso.

Se alguém ainda tem dúvida o que quer dizer “poeta em vulnerabilidade social” espero que esta realidade, tão brasileira e cruel, vivida pelos artistas abandonados pelo Estado, seja uma resposta eloquente o suficiente.

Já de noite, no corredor escuro do edifício, antes de entrar no elevador, vi um sorriso doce no rosto da senhora de 86 anos que dedicou sua vida à poesia.  Mostrei o livro dela que eu carregava na bolsa.  Olga fez questão de autografar e datar o período de tempo que se passou entre a publicação em 1986, no século passado, e o momento presente, em 2020.

Eu admirava muito Olga Savary, mas até então não a conhecia pessoalmente.  Do ponto inicial de um telefonema em uma noite a ela nos autorizar a levar as compras de supermercado ao seu apartamento no dia seguinte, tudo foi muito rápido.

Ao chegar no edifício com as caixas de alimentos, imediatamente alertamos o porteiro para o fato de ela estar sozinha no apartamento, e ter reclamado de não estar comendo bem…  Ao conversar com ela e tentar insistir em uma visita ao médico ou ida ao hospital, ela nos dissuadiu, dizendo com firmeza que tinha essa tosse há anos. Em seguida, nos certificamos de que a família estava ciente da fragilidade da saúde da escritora: “sim, meu genro me telefonou, ele e minha filha estão sabendo”.

Mesmo assim, avisei o grupo de poetas envolvidos com o projeto na esperança de que outras pessoas do Rio de Janeiro, que talvez tivessem intimidade com Olga, pudessem intervir.  Recebi algumas mensagens e amigos dela foram rapidamente avisados sobre a situação.  Uma semana se passou, e então chegou a notícia do seu falecimento em Teresópolis, onde sua filha reside. Mais uma grande artista brasileira se foi.

Neste único encontro presencial, Olga, mesmo fragilizada, mostrou toda a força de sua personalidade. Quando perguntei se aceitaria integrar o Conselho de poetas, ela olhou bem nos meus olhos e inesperadamente, com a voz forte e firme, disse: “aceito, com orgulho!”.  Mostrando-se independente e altiva, pediu para não ser tratada de maneira diferente ou “especial”. Perguntou o que precisaria fazer. Respondi que precisávamos de uma foto dela, e mostrei a página do projeto onde já haviam imagens dos primeiros Conselheiros.

Olga elogiou a beleza do projeto, e disse: “não quero uma foto minha feia, faço questão de ser lembrada jovem e bonita!”, reclamando que hoje em dia pegam qualquer imagem na internet e publicam.  Então imediatamente abri o celular e procurei fotos de Olga, vi uma dezena delas, e escolhi a que me pareceu mais forte.  Bem humorada, me olhou e disse: “esta é a minha foto preferida, você foi certeira! Confio em você, Beatriz, você conhece a beleza, e isso é fundamental para a poesia. É com essa imagem que quero ser lembrada”.  E arrematou: “toda artista tem sua persona pública, você não acha que eu tenho o direito de ser representada pela imagem que melhor me traduz?”.

Essa é Olga Savary, a bela mulher eternizada nesta foto, a poeta gigante que escreveu os magníficos poemas a seguir. Muito triste ainda, com aquela dor que não para de doer, respiro fundo e pergunto ao mar, que ela tanto amava: por que quis o destino que fosse eu a ouvir o último pedido da poeta? Olga, querida, nunca te esqueceremos.

***

Acomodação do desejo III

Deito-me com quem é livre à beira dos abismos
e estou perto do meu desejo.

Depois do silêncio úmido dos lugares de pedra,
dos lugares de água, dos regatos perdidos,
lá onde morremos de um vago êxtase,
de uma requintada barbárie estávamos morrendo,
lá onde meus pés estavam na água
e meu coração sob meus pés,

se seguisses minhas pegadas e ao êxtase me seguisses
até morrermos, uma tal morte seria digna de ser morrida.

Então morramos dessa breve morte lenta,
cadenciada, rude, dessa morte lúdica.

***

Além de mim

Quero apenas
Além de mim, quero apenas
essa tranqüilidade de campos de flores
e este gesto impreciso
recompondo a infância.

Além de mim
– e entre mim e meu deserto –
quero apenas silêncio,
cúmplice absoluto de meu verso,
tecendo a teia do vestígio
com cuidado de aranha.

***

Amanhã

Se devoras teus sonhos
quando se ensaiam apenas
e secamente represas
essa linguagem de flores
e teu desejo de asas
que restam subterrâneas,
quem serás tu, depois
do grande sono, amanhã?

Não te abandones um só momento
sou inconstante como a nuvem
sou mutável como o vento.
Não te dês inteiro um só momento
porque um dia te quererás de volta
e levarás somente um fragmento.

***

Auto despedida

Há algo nas manhãs que não entendo agora
e a um grito de minhas pernas não atendo.
Ainda depois da noite, noite me espia
e sonho dúvidas enormes e imóveis
como a imobilidade das aranhas.
Tão pouco tempo – e tenho de deixar-me
e queria nunca ter de repartir-me.
Começa a raiva da saudade
que inventei vou ter de mim

***

Sextilha Camoniana

Daqui dou o viver já por vivido.
Quero estar quieta, sozinha agora,
igual a uma cobra de cabeça chata,
ficar sentada sobre os meus joelhos
como alguém coagulado em outra margem.
Daqui dou o viver já por vivido

***

Comunhão

Por que escrevo?
Porque sou pouca e
mínima embora
vária, porque não
me basto, escrevo
para compensar a
falta, porque não
quero ser só raiz e
haste e preciso do
outro para dar
sombra e fruto.
David

Não sendo bicho nem deus
nem da raiz tendo a força
ou a eternidade da pedra,
o poeta nas palavras
põe essa força de nada:
sua funda é o poema.

***

Cerne

Nada a ver com a fonte
mas com a sede

Nada a ver com o repasto
mas com a fome

Nada a ver com o plantio
mas com a semente

 ***

Pitúna-Ára

Exilada das manhãs,
de noite é que me visto.

Caminho só pela casa
e o viajar na casa escura
faz soar meus passos mudos
como em floresta dormida.

Me vêem, eu que não me vejo,
as coisas — de corpo inteiro.

O real está me sonhando,
o real por todo lado.
Não sou eu que vivo o medo;
em seu tapete de sombras,
por ele é que sou vivida.

Aonde me levam estes passos
que não soam e que não vão:
às armadilhas do vôo
como a paisagem no espelho
espatifado no chão?

O escuro é tanque de limo
para minha sombra escolhida
pela memória do dia.
Deixo o mel e ordenho o cacto:
cresço a favor da manhã.

***

Iraruca

Destino é o nome que damos
à nossa comodidade,
à covardia do não-risco,
do não-pegar-as-coisas-com-os-dentes.

Quanto a mim,
pátria é o que eu chamo poesia
e todas as sensualidades: vida.

Amor é o que eu chamo mar,
é o que eu chamo água.

***

Mapa de esperança

Vinha pisando sobre toda a praia,
o sangue quieto — ou quase quieto —,
os pensamentos leves como espumas
e os cabelos soltos como nuvens.

Trágica como princesa de elegia,
meu estandarte é o desespero,
minha bandeira, indecisão.

Ainda assim, alegria, te festejo.

Beatriz Azevedo é poeta, compositora, multiartista. Doutora em Artes, estudou música no Mannes College of Music Nova York e dramaturgia na Sala Beckett em Barcelona. Autora de Antropofagia palimpsesto selvagem (Cosac Naify), Abracadabra (Selo Demônio Negro) e outros.


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