Claudio Willer, o memorioso

Claudio Willer, o memorioso
O poeta e ensaísta Claudio Willer (Foto: Reprodução)

 

Em que idade um escritor deve escrever suas memórias? O dramaturgo e escritor Nelson Rodrigues iniciou as suas precocemente, em 1967, aos 54 anos de idade, nas páginas do Diário da Manhã. Depois recolheu-as em livro, sob o título A menina sem estrela. Eladio Linacero, personagem literário do uruguaio Juan Carlos Onetti do romance El Pozo (1939), achava que o momento era antes: “Isto que escrevo são minhas memórias. Porque um homem tem que escrever a história de sua vida ao chegar aos quarenta anos, ainda mais se lhe aconteceram coisas interessantes. Li isso não sei onde.” O argentino Ricardo Piglia queria para suas memórias um eterno presente, de modo que optou prematuramente por escrever um diário de escritor: iniciou-o aos 17 anos e adiou a publicação até os 75 anos, quando rearticulou-o transformando seu eu pessoal em um de seus personagens; assim nasceram os três volumes de Os diários de Emilio Renzi.

O poeta e ensaísta brasileiro Claudio Willer, aos 78 anos acaba de publicar suas memórias, que seguem uma quarta via: velar o caráter memorialístico da obra – Dias ácidos, noites lisérgicas (Córrego) – com um despretensioso subtítulo: crônicas. Tampouco são suas primeiras memórias: também precocemente, há duas décadas, escreveu Volta (Iluminuras, 1996), livro que além de ser um ensaio sobre surrealismo, contava muito de suas experiências pessoais nos anos 60 e 70 e era ainda a história singular da circulação de um livro de nome circular, e da memória de um poeta – Augusto Peixoto – sobre a Terra. Dias ácidos, no entanto, é sobretudo memorialístico. São quinze textos, alguns recentes, outros recolhidos de cadernos antigos e há ainda os reaproveitados de entrevistas ou pesquisas não publicadas, agora reescritos, como o longo texto que descreve suas experiências lisérgicas e que dá título ao volume.

É um livro relativamente curto, mas não por isso menos intenso. O poeta passa como um raio sobre vários acontecimentos pessoais, sem se preocupar em torná-los grandiosos. Assim, de passagem, na página 134, ficamos sabendo que foi o livro de estreia de Willer, Anotações para um apocalipse (Massao Ohno, 1964), que inspirou o romancista Roberto Freire a criar o personagem “Claudio, poeta surrealista” de seu romance de estreia, Cleo e Daniel (Brasiliense, 1965). Na página 127 sabemos também que o poeta, ainda aluno de psicologia na USP, fora aluno de Durval Marcondes, um dos importantes difusores da psicanálise freudiana em São Paulo, trazida à universidade pelas mãos de Franco da Rocha, seu professor. Mas esses são dados laterais, o livro é outra coisa.

Dias ácidos, noites lisérgicas se constrói em uma curiosa contraposição entre a leveza da crônica e a força de tempos e cenários idos – sobretudo de São Paulo – que os textos evocam. Claudio Willer não busca o ordenamento cronológico: quase todos os textos têm data, e são de diferentes épocas, entre os anos 60 e a atualidade. O poeta busca não um monumento para si mesmo, mas um mosaico distorcido, uma imagem fugidia, tal qual o espelho do antigo bar Persona, no Bixiga, criado pelo artista plástico Roberto Campadello. Nele, há “no porão, espelhos reversíveis e lanternas, conforme se iluminava, você se enxergava, via quem estivesse do outro lado ou fundia as imagens, podia ser um ou outro.” Não é um livro sobre Claudio, é um livro sobre ele e seus leitores.

O texto de abertura, “A voz” se constrói a partir leitmotiv “Baudelaire”, dito pela boca de um gringo magricela, no Maranhão, em 1964, um lugar anterior ao culto à cor local, onde comia-se filé à parmegiana e não frutos do mar, lugar “não existente. O exótico para além do exótico: desconhecia-se”. O que fazia Claudio lá? Não sabemos. Mas vemos uma outra São Luís pelos olhos do jovem poeta. Sabemos de suas incursões, dos lugares por ele frequentados, mas tal qual nos espelhos do Persona, falta uma parte, uma imagem coesa de fundo, falta o poeta afirmando: “eu sou isso”. O principal, no entanto, não falta: suas leituras de Baudelaire e dos baudelaireanos Rimbaud, Desnos, Bataille, Lautréamont.

Complete a história quem quiser, parece dizer o autor, que passa adiante, retrocedendo a 1959, com “A festa e o homofóbico”, uma saborosa crônica sobre a repressão à sexualidade, com a lembrança de um rapaz da Associação Cristã de Moços, Milton, um homofóbico contumaz que de repente se libera numa festinha na casa do poeta, no bairro do Brooklin, em São Paulo, fazendo em público um ménage com dois outros rapazes. Os nomes? Não sabemos e não importa.

Páginas adiante, lemos “Muradas”, texto resgatado de um caderno, com data de março de 1967: nele, Claudio aclimata Proust, ao evocar uma mítica banana split do bar Muradas – da rua Martins Fontes, no centro de São Paulo – consumido depois de sessões de maconha, música e álcool com os amigos. Já então o jovem de 27 anos queixava-se do desaparecimento da iguaria, do advento anódino dos sorvetes de máquina da rua Augusta. Para os leitores de 2019, um mundo desaparecido comentando outro mundo desaparecido, mas também uma experiência familiar de perda na paisagem sempre movente da cidade, a cidade que não cessa de se transformar.

O texto seguinte “Dias ácidos, noites lisérgicas” é a narração de memórias a partir de paraísos artificiais, desde os anos sessenta até a atualidade, texto poderoso que termina em tom menor ao evocar as quebradas da zona sul de São Paulo, nas fronteiras da cidade em expansão rumo à periferia.
Ao fim do livro, o leitor vacila: não sabe se leu um livro de memórias de um poeta, ou se leu um livro das memórias de uma cidade, ou ainda, se leu memórias inventadas suas ou memórias da literatura de outros. Pois Dias ácidos, noite lisérgicas é tudo isso ao mesmo, e ainda mais: é o relato de experiências lisérgicas, sexuais, afetivas de um homem cujas memórias se inscrevem no corpo da cidade, sua cidade – um ente vivo que se metamorfoseia enquanto ele a rememora.

Wilson Alves-Bezerra é crítico, tradutor e escritor. Escreveu Vapor barato (Iluminuras, 2018), O pau do Brasil (Urutau, 2016), entre outros

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