Ódio ao Semelhante – Sobre a Militância de Tribunal
Marcia Tiburi e Rubens Casara
“Os mais perigosos inimigos não são aqueles que te odiaram desde sempre. Quem mais deves temer são os que, durante um tempo, estiveram próximos e por ti se sentiram fascinados”.
Mia Couto
Ninguém pode negar o conflito como parte fundamental do fenômeno político. Só existe política porque existem diferenças, discordâncias, visões de mundo que se distanciam, ideologias, lutas por direitos, por hegemonia. Isso quer dizer que no cerne do fenômeno político está a democracia como um desejo de participação que implica as tensões próprias à diferença que busca um lugar no contexto social.
A demonização da política é, em grande medida, a demonização das próprias diferenças. E da possibilidade de buscar soluções para conviver com as diferenças. Do mesmo modo, a crítica é uma necessidade. Sem a crítica – e a autocrítica -, perde-se o movimento dialético capaz de superar as tensões, reconhecer erros e transformar a sociedade. Deve-se, pois, abandonar a perspectiva ingênua de perceber a existência de conflitos como algo ruim ou de negar à crítica sua função transformadora.
Esse texto não tem por finalidade tratar da importância do conflito ou da crítica, mas analisar um fenômeno que surgiu, e se potencializou, na era das redes sociais: a “militância de tribunal”. Essa prática é apresentada como manifestação de ativismo político, mas se reduz ao ato de proferir julgamentos, todos de natureza condenatória, contra seus adversários e, muitas vezes, em desfavor dos próprios parceiros de projeto político. São típicos julgamentos de exceção, nos quais a figura do acusador e do julgador se confundem, não existe uma acusação bem delimitada, nem a oportunidade do acusado se defender. Nesses julgamentos, que muito revela do “militante de tribunal”, os eventuais erros do “acusado”, por um lado, são potencializados, sem qualquer compromisso com a facticidade; por outro, perdem importância para a hipótese previamente formulada pelo acusador-julgador, a partir de preconceitos, perversões, ressentimentos, inveja e, sobretudo, ódio.
Ódio direcionado ao inimigo, aquele com o qual o “acusador-julgador” não se identifica e, por essa razão, nega a possibilidade de dialogar e, o que tem se tornado cada vez mais frequente, o ódio relacionado ao próximo, aquele que é, ou deveria ser, um aliado nas trincheiras políticas. Ódio que nasce daquilo que Freud chamou de “narcisismo das pequenas diferenças”. Ódio ao semelhante, aquele que admiramos, do qual somos “parceiros”, ao qual, contudo, dedicamos nosso ódio sempre que ele não faz exatamente aquilo que deveria – ou o que nós acreditamos que deveria – fazer.
Exemplos não faltam. Pense-se na militante feminista que gasta mais tempo a “condenar” outras mulheres, a julgar outros “feminismos”, do que no enfrentamento concreto à dominação masculina. A Internet está cheia de exemplos de especialistas em julgamento e condenação. A caça por sucesso naquilo que imaginam ser o “clubinho das feministas” (por muitas que se dizem feministas enquanto realizam o feminismo como uma mera moral) tem algo da antiga caça às bruxas que regozija até hoje o machismo estrutural. Nunca se verá a “militante de tribunal feminista” em atitude isenta elogiando a postura correta, mas sempre espetacularizando a postura “errada” daquela que deseja condenar. Muitas constroem seus nomes virtuais, seu capital político, aquilo que imaginam ser um verdadeiro protagonismo feminista, no meio dessas pequenas guerras e linchamentos virtuais nas quais se consideram vencedoras pela gritaria. Há, infelizmente, feministas que se perdem, esvaziam o feminismo e servem de espetáculo àqueles que adoram odiar o feminismo. Quem ganha com isso? O inimigo forte que essas feministas não têm coragem de enfrentar, o patriarcado e todas as suas manifestações, pois a feminista que adota a postura de “militante de tribunal” se contenta em extrair prazer da condenação do inimigo que considera fraco, campo composto por outras mulheres, e exerce sua “força” sobre alguém que julga moralmente inferior a elas\si mesma, com isso reduzindo o feminismo a um joguinho virtual entre inquisidoras e vítimas, pautado por uma moral rasteira e confusões conceituais. Apoio mesmo, concreto, às grandes lutas do feminismo, isso não, pois não é tão fácil nem deve dar tanto prazer quanto a condenação no tribunal virtual montado em sua própria casa.
O recente episódio envolvendo a visita do deputado Jean Wyllys ao Estado de Israel é também muito significativo. Para além da crítica necessária ao evento e à política de Israel, muitos militantes de “direitos humanos” passaram a condená-lo de forma agressiva e desproporcional, isso em desconsideração ao histórico do parlamentar na defesa dos direitos humanos. Algumas manifestações contra o deputado fazem pensar nos aspectos subterrâneos da crítica. Oportunismo político? Não só. Ao lado da perversão inquisitorial, dos juízos condenatórios apressados, de uma espécie de clamor por uma pureza impossível no mundo-da-vida, o “militante de tribunal”, não raro, busca se capitalizar politicamente, reafirmar sua pureza frente ao herege, mas ao condenar quem se notabilizou por expor a face em diversas lutas políticas, algumas em franca oposição aos senso comum idiotizante, o militante de tribunal busca a absolvição de suas omissões, de seus silêncios, de sua covardia.
Quem nunca se manifestou publicamente pela racionalização do tratamento conferido ao aborto e às drogas ilícitas, pela humanização do parto, pela regulamentação de profissões historicamente estigmatizadas, pelo respeito às diferenças, pelos direitos das mulheres, gays e lésbicas, preocupou-se agora em atacar o Jean. Quem ganha com isso? O inimigo forte que essas mesmas pessoas não têm disposição, nem coragem, de atacar. Tão gritante quanto a virulência dos juízos condenatórios proferidos a partir da poltrona da casa do “militante de tribunal” é o silêncio desses mesmos militantes em relação às práticas de diversos outros parlamentares brasileiros.
Volta-se ao início: por evidente, as criticas são fundamentais à correção de rumo, às transformações tanto coletivas quanto individuais. Não é disso que se trata nesse texto. O “militante de tribunal” não quer a transformação, quer apenas a punição do inimigo ou do semelhante, punição estéril, espetacular, punição para que tudo continue do mesmo jeito, para manter o seu próprio poder, para justificar o tribunal que montou no sofá de sua casa diante de um computador.