O texto que fica

O texto que fica

Francis era único. Seus escritos, fortes e urgentes, em 40 anos de carreira, sejam frases curtas sejam ensaios densos, são a melhor forma de lembrá-lo

Daniel Piza

Dez anos depois de sua morte, Paulo Francis tem sobrevivido tanto a seus detratores quanto a seus imitadores. Os detratores, que em geral são os que discordaram de suas opiniões políticas do último decênio de vida, estavam certos de que Francis seria esquecido. Os imitadores, que não deixam de ser uma prova de que ele continua a ser lembrado, não conseguem ser tão surpreendentes e intensos quanto Francis era. Para o bem e não para o mal, Francis era único. Até suas contradições mais flagrantes faziam interessante a leitura de seus textos.

A melhor forma de lembrá-lo, portanto, seria reler o que fez de melhor. Todo texto de Francis tinha força, era característico e transmitia um sentido de urgência. E ele produziu muito em 40 anos de carreira, 20 dos quais na condição de autor de uma grande e variada coluna bissemanal, o “Diário da Corte”. Naturalmente, porém, é possível selecionar o que escreveu com mais propriedade e originalidade, em dimensões que vão da frase curta e aguda até o ensaio mais culto e denso. Seus romances Cabeça de papel e Cabeça de negro, apesar de passagens nas quais consegue combinar a argumentação intelectual com a angústia existencial, não estão entre esses textos. Foi mesmo no jornalismo, sempre condenado à brevidade, que ele atingiu seu auge.

E foi assim desde o começo. Embora seja lembrado como um crítico de teatro tão agressivo que cometeu o desatino da ofensa pessoal mais de uma vez – e se arrependeria sinceramente do ataque grosseiro a Tônia Carreiro, que fez Adolfo Celi e Paulo Autran partirem para cima dele –, mostrou percepção rara já nos primeiros textos. Ajudou a abrir espaço para a dramaturgia de Jorge Andrade, Gianfrancesco Guarnieri e Millôr Fernandes, dentre outros, e escreveu com precisão sobre atrizes como Fernanda Montenegro e Cacilda Becker. Os críticos dos jornais paulistas, como Décio de Almeida Prado e Sábato Magaldi, fizeram trabalho modernizador mais sério; Francis, porém, foi um dos responsáveis por tirar naftalina da crítica teatral da época, que tratava atores por “Sr.” e “Sra.” e produzia desculpas para os erros de cada montagem.

Política como alvo

Boa parte dessa obra, no entanto, Francis diria mais tarde que gostaria de rasgar ou queimar. A partir de 1960, seu furor trotskista se desviaria para outro foco, de alcance muito mais amplo que o teatro: a política. “Como não reagir a Jânio Quadros?” foi o mote que justificou seu engajamento na crônica política. Esquerdista que, como raros esquerdistas, tinha lido a fundo as obras de Marx, Engels e seus seguidores russos, franceses e americanos, Francis não apoiava nem mesmo João Goulart, cuja “república sindicalista” estava sob vigilância das Forças Armadas. Apostava mesmo era no cunhado de Jango, Leonel Brizola, que seria o único capaz de “galvanizar as massas” em direção ao socialismo tropical. Esse raciocínio pode ser visto na primeira e menor parte, “Política”, de seu primeiro livro, Opinião pessoal, de 1966.

A segunda parte do livro, “Cultura”, é que ainda vale a pena. Ali estão alguns dos melhores artigos de Francis. Há neles um tom ensaístico, mas nada professoral – ainda que longe da descontração que soltaria com o Pasquim alguns anos mais tarde –, que ao mesmo tempo torna acessíveis assuntos como Shakespeare e Brecht e acrescenta pontos de vista atraentes para os especialistas mais empedernidos. O início do texto sobre o teatro de Tchecov, por exemplo, é famoso: “Tchecov não é o pai de Greta Garbo”. Depois Francis envereda agilmente pelos meandros de A Gaivota e mostra como se dá em Tchecov a arte da irresolução consciente, da ambigüidade que sentimos em seus personagens ao mesmo tempo patéticos e empáticos.

Na coletânea seguinte, Certezas da dúvida, de 1970, o jornalista reage mais diretamente ao seu tempo e, claro, a política dá o tom. Dois terços do livro tratam de assuntos como a Guerra do Vietnã. Francis, apesar de não ter ainda 40 anos, não se sentia à vontade com a chamada “nova esquerda”, mais pacifista e comportamental, contracultural, do que aquela que ele lia na juventude dos anos 1940 e 1950 em revistas como Partisan Review. Como elitista, odiava música pop, TV, esportes; vários textos se queixam dessa “juvenilia” que ia para as ruas protestar contra De Gaulle, Lyndon Johnson etc. Nesse livro, contudo, seu estilo já está mais coloquial (nada de palavras como “pluridimensionalismo”) e alguns textos sobre arte e comportamento, como “Hemingway e Fitzgerald” e “Palavras, Palavras, Palavras”, merecem nova antologia.

No auto-exílio

Os efeitos do golpe de 1964, porém, eram cada vez mais destrutivos. Para Francis, não tinha sido apenas uma frustração de suas idéias trotskistas; cada vez mais soava como o fracasso de um Brasil que sonhara, nem sempre conscientemente, no cotidiano de um Rio de Janeiro promissor e inovador como aquele em que amadurecera, ao lado de amigos como Glauber Rocha, Ivan Lessa ou Ênio Silveira, e em que editara marcos do jornalismo como a revista Senhor e o “Quarto Caderno” do Correio da Manhã. Por isso falaria tanto no futuro sobre sua geração, claro que em detrimento das mais novas. Com o AI-5 no final de 1968 e as quatro prisões que se seguiriam nos dois anos seguintes, o trauma estaria completo.

O auto-exílio em Nova York começaria com muitas dificuldades, mas ao mesmo tempo Francis passou a misturar à sua visão cáustica um senso de humor e uma nostalgia que deram colorido à sua escrita. Em Paulo Francis nu e cru, de 1976, e Paulo Francis – Uma coletânea, de 1978, vemos essa transformação. Descrever a vida americana lhe permite um tom de crônica, mas ainda enriquecido com a perspectiva ensaística. Reflexões sobre o cinema de Max Ophuls ou a filosofia de Bertrand Russell convivem com divertidas confissões pessoais (“L’affaire de mon cou” é o título de um texto sobre a cirurgia que lhe foi feita no pescoço) ou temas picantes (como o casamento de Marilyn Monroe com Arthur Miller). Ele se leva menos a sério do que nos tempos de crítico teatral e militante político; o leitor é que sai ganhando.

É nesse período, no final dos anos 1970, que Francis, superando a depressão dos primeiros anos nova-iorquinos, decide investir muito na ficção. Sua expectativa é de sucesso tanto de público como de crítica – algo como seus ídolos Aldous Huxley, Arthur Koestler e Graham Greene haviam conseguido. O sucesso de público vem, mas não na dimensão esperada. O de crítica, com exceção de elogios de Alceu Amoroso Lima e José Onofre, é menor. Francis levaria 15 anos para tentar de novo a ficção, mas a morte deixou inacabadas suas duas tentativas. Ele ainda faria revisão de Jogando cantos felizes (título extraído de poema de Vinicius de Moraes), romance que Sonia Nolasco, sua mulher e dona de uma editora, pretende lançar neste ano. Francis deixou também o início de uma novela em inglês, The man who invented Brazil, sobre Getúlio Vargas. Estava em busca de um thriller político.

Mais uma vez, da decepção veio a renovação. Nas suas memórias, O afeto que se encerra, de 1980, muito divertidas ainda que breves (ele dizia que ainda escreveria sua autobiografia “contando tudo”), e num livreto, O Brasil no mundo, de 1985, pretensa “análise política do autoritarismo desde as suas origens”, já se vê que Francis abandona a esquerda socialista e também o teor apocalíptico da década anterior e passa a defender o capitalismo moderno para o Brasil. Ao contrário da maioria de sua geração, teve a coragem de mudar de opinião. Não foi um gesto leviano, como se diz aqui e ali; foi a conseqüência de anos de estudo, vivência e observação. Mais tarde, em 1989, com a queda do muro de Berlim, alguns lhe dariam razão.

Desdém pelo atraso

Em seu “Diário da Corte”, Francis passou a defender veementemente essa opinião. Veementemente, claro, porque ele era assim – não muito diferente de outros ex-trotskistas, como o inglês Christopher Hitchens (para citar alguém em destaque no momento), que passam para “o outro lado” com a mesma exasperação no semblante. Francis, de início, agradou a leitores mais jovens, cansados da retórica do “socialismo democrático” dos professores da USP e alarmados com os desatinos de José Sarney no comando da “república”. Depois, Francis também cansou alguns deles com defesas de Paulo Maluf e exibições de preconceito racial e social. De qualquer modo, seu desdém pelo atraso brasileiro era também fruto de seu desejo de ver o país melhor – não apenas pose, soberba, vontade monotemática de ser “do contra”.

Em meio disso, o intérprete cultural continuava vivíssimo. “Perdi tempo demais com política”, desabafou no início dos anos 1990. Queria ter viajado mais, aprendido mais sobre pintura e música, lido os autores que menosprezara por má influência de algum crítico (repetia, por exemplo, Edmund Wilson sobre Joseph Conrad, “seu inglês parece traduzido do polonês”). Animava o leitor ao escrever sobre livros, filmes, exposições, óperas e balés, mesmo quando mais leigo no tema, porque escrevia com sensibilidade, guiado pelo senso de prazer, e não escondia seu conhecimento atrás de teorizações e citações. Tinha grandes sacadas, cultura sólida, texto fluente – o que mais pedir?

Reduzir Paulo Francis a comentarista cultural, no entanto, também não é justo. Sua maior herança, numa cultura dada ao conformismo e à formação de patrulhas, foi a de que a opinião tem de ser franca e direta, sem eufemismos. Essa é a qualidade que transcende seus defeitos. Além disso, é raro encontrar um jornalista brasileiro com a mesma mistura de verve, conhecimento e gosto. Seus textos estarão sempre aí para prová-lo.

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