O tempo espelho da alma

O tempo espelho da alma
Santo Agostinho (1645-1650), de Philippe de Champaigne (Acervo do Museu de Arte do condado de Los Angeles / LACMA)

 

 

A abordagem do tempo na filosofia de Santo Agostinho (354–430) é, ainda hoje, referência necessária a todos os interessados nesse tema. Cabe, porém, observar que não se trata de uma questão com solução tranquila e imediata. Ao contrário, no texto clássico do livro XI das Confissões, o tempo é um enigma cujo estudo se dá por perguntas. Essas perguntas, aos poucos, afastam equívocos.

O que é o tempo? A questão não admite uma resposta direta. A dificuldade reside justamente no envolvimento do homem com o tempo, pois o  homem também é temporal, mutável. Como, então, falar de algo do qual não se tem distância para avaliar? A resposta deve vir “sem se distanciar”, ou seja, a questão do tempo deve ser tratada como uma situação.

Assim, o tempo é próximo e familiar ao homem; contudo, a um simples questionamento sobre o que ele é, constata-se a ausência de resposta. Vive-se no tempo, mas sem saber o que ele é. Eis o entrave:

“O que é afinal o tempo? Quem o explicaria fácil e brevemente? Quem o captaria, ainda que apenas no pensamento, para proferir uma palavra sobre ele? Mas, ao falar, o que mencionamos que é mais familiar e conhecido do que o tempo? De algum modo, entendemos quando falamos do tempo, e também entendemos quando ouvimos outra pessoa falar dele. O que é, portanto, o tempo? Se ninguém me pergunta, sei; se eu quiser explicar a quem pergunta, não sei.” (Confissões XI).

Mas o tempo é algo. E como o homem sente e mede algo sem saber o que é? Por onde começar a investigá-lo? Para lidar com essa dificuldade, Agostinho propõe uma abordagem do tempo a partir da eternidade. O homem busca conhecer a eternidade divina; por isso, a investigação sobre a natureza do tempo é conduzida por contraste e semelhança com a eternidade.

A perspectiva da eternidade
Na primeira parte do livro XI das Confissões, Santo Agostinho procura esclarecimento na Verdade eterna para o que seria a eternidade, e um dos modos de obtê-lo é ler as escrituras sagradas. A eternidade é, então, identificada com o sempre presente Princípio (Gênesis 1,1), o Verbo de Deus, Mediador misericordioso, Verdade, Sabedoria, Criador de tudo e luz que brilha no íntimo do homem, falando-lhe intimamente. Trata-se, portanto, de um atributo divino: o eterno presente no qual Deus produz e sustenta todas as coisas.

Ora, para pensar o tempo, surge a seguinte questão: se o princípio eterno é anterior às criaturas (pois as fez), a eternidade seria anterior ao tempo? Sim e não. Não, se imaginarmos que a eternidade existia cronologicamente antes de o tempo ter sido criado. Essa resposta é descabida, pois reduz a eternidade ao curso do tempo e, temporizada, deixa de ser eternidade. Mas, sim, se aceitarmos que há uma anterioridade causal da eternidade divina, porque ela cria do nada todas as criaturas (inclusive o tempo).

Assim, a existência do tempo (e de todas as criaturas) depende da eternidade. A eternidade, então, oferece um parâmetro inequívoco para pensar o tempo. Ou seja, para Agostinho, a meditação sobre o tempo parte do contato humano com a eternidade. O parâmetro do processo de investigação é a Verdade eterna, que sempre ilumina a interioridade do homem. Ao mesmo tempo, a eternidade é descoberta em contraposição ao tempo; ela é o que o tempo não é.

Tempo e presença interior
Se o homem sente e mede o tempo, este é uma criatura. Diante da dificuldade de definir o tempo, porém, a questão é deslocada para sua sensação e medição, ou seja, para a relação da alma com ele. Com efeito, o homem sente o tempo passando: vem do futuro, atravessa o presente e torna-se passado. No entanto, ele é fugidio: basta tentar reter a existência presente do tempo e ele escoa para o passado, que já não existe. Isso indica que apenas um átimo (momento indivisível) pode ser presente.

Ora, se o tempo é tão fugidio, como explicar o fato de que contamos, comparamos e atribuímos duração aos tempos? Como falarmos de acontecimentos futuros e passados? Esses acontecimentos, que não existem na realidade (porque o que já passou não mais existe, e o que ainda virá ainda não existe), referem-se a uma presença interior à alma; eles têm alguma realidade apenas para a alma que pensa neles.

O que se percebe pelos sentidos fica registrado na memória e, a partir de então, passa a existir em regime de interioridade. Em outros termos, é regido por uma temporalidade espiritual (da alma). Encontram-se na memória as sensações, imaginações, experiências passadas, ideias.

Assim, o passado consiste no presente do que passou (fora) e está armazenado na memória (dentro). Quanto ao futuro, ele é pensado com base no que há na memória (com base no passado), mas com outra disposição da alma, que Agostinho chama de “expectativa”. E o presente é exatamente o olhar da alma. Aqui, o pensamento de Agostinho é inédito:

“Isto agora é límpido e claro: nem as coisas futuras existem, nem as coisas passadas, nem dizemos apropriadamente ‘existem três tempos: o passado, o presente e o futuro’. (…) Existem, sim, três tempos: o presente das coisas passadas, o presente das coisas presentes, o presente das coisas futuras. (…) [os] três estão de alguma maneira na alma e eu não os vejo em outro lugar: o presente das coisas passadas é a memória, o presente das coisas presentes é o olhar, o presente das coisas futuras é a expectativa.” (Confissões XI).

Portanto, toda experiência humana da temporalidade é regida por uma referência interna, independente da mudança dos corpos. Mas, se o tempo existe internamente, como medi-lo? Se o tempo sempre passa, então não tem duração “espacial”, ou seja, é impossível afixar dois tempos para compará-los, medindo um em função do outro. Dois tempos não são como duas vigas colocadas lado a lado, porque não é possível estabilizar o curso do tempo (ele não é como um traço que conserva seu começo e seu fim).

Resta que medimos o tempo não pela distensão de algo exterior. O que medimos é uma distensão interior: o tempo é distensão da alma. Agostinho mostra dois sentidos de distensão. O sentido mais facilmente reconhecido refere-se à exteriorização exagerada, processo em que a alma habita o mundo exterior e desgasta-se com preocupações e ocupações excessivas, alheias ao regime da interioridade. O outro sentido é tomado por Agostinho do texto bíblico de Josué 10,12. Nessa passagem, Deus para o sol a fim de completar uma batalha virtuosa. Esse texto mostra que o senhor do tempo é o criador onipotente. A referência, portanto, é Deus, e, se a via de acesso a Deus, para os homens, é a interioridade, então será também nessa dimensão puramente espiritual que o tempo admitirá outra velocidade. Nesse sentido, o tempo é medido pela distensão da alma, e não por algo exterior a ela.

A distensão da alma
Ao aproximar-se de seu âmago, o homem converte-se para seu coração, onde a eternidade fala como Princípio, Verbo e Verdade. As ações e reflexões assim direcionadas produzem também uma distensão, outra temporalidade, menos fugidia e menos desatenta, mais ampla e mais concentrada, um preenchimento total, e então o homem tem a experiência de que o tempo reflete a eternidade. Nesse estado o homem pode realizar tantas coisas e tão bem (por não haver distração, nem exageros causados pela falta) que, aos olhos de outros homens, parecerá que o tempo parou para aquele homem agir.

Para pensar essa temporalidade, Agostinho compara a medição humana do tempo com a medição do silêncio na música. Assim, medimos o silêncio como se houvesse som, mas sem haver som; ou seja, medimos não o som, mas certa “extensão” que o silêncio ocupa na alma. Aplicando essa comparação ao tempo, quando o medimos, medimos a distensão mesma do ato de a alma ocupar o tempo, ocupar sua existência e ser presente a si mesma. Explorando o exemplo do canto, Agostinho mostra como o ato de cantar revela o que ocorre em “todas as ações do homem” (Confissões XI):

“Vou entoar uma canção que conheço. Antes de iniciar, minha expectativa se estende totalmente, mas quando começar, tanto quanto eu tiver tirado da expectativa, também minha memória se estende, e a vida desta minha ação se distende na memória (em razão do que cantei) e na expectativa (em razão do que cantarei). Minha atenção também está ali, presente, pela qual o que era futuro é arrastado para tornar-se passado. E quanto mais isso acontecer e acontecer, a expectativa será abreviada e a memória será prolongada, até que toda a expectativa seja consumida, quando toda a ação terminada houver transitado para a memória. E o que ocorre na canção toda também ocorre nas suas partículas singulares, e o que ocorre nas partículas singulares também ocorre na ação mais longa, da qual talvez aquela canção seja uma partícula, e o mesmo em toda a vida do homem, das quais são partes todas as ações do homem.”

Ao cantar uma canção conhecida, o homem sabe o que deverá cantar no futuro e que ainda não foi cantado. Enquanto canta, reconhece o que cantou. No cantar, a alma vive os três tempos e a medida dos tempos e dos silêncios; ela sabe que algumas notas devem ter duração mais breve do que outras, e o mesmo quanto aos silêncios. Para cantar, a alma alarga-se internamente em três tempos e experimenta o tempo mais estável e menos fugidio, mais próxima que está da presença íntima da eternidade. Ao cantar, é menos refém do tempo exterior, que foge vertiginosamente, e mais próxima de si mesma, porque mais voltada à eternidade.

O verso escolhido por Agostinho para ilustrar a métrica do tempo é “Deus creator omnium” (“Deus criador de todas as coisas”). Ao entoá-lo, deve-se respeitar a alternância entre sílabas longas e breves: com o canto, o homem cria o que na exterioridade antes não havia. O cantar é revelado como o ato humano semelhante ao ato da criação, com base no conhecimento simultâneo dos tempos. Por que cantar? Por que senão por generosidade e graça?

Na meditação sobre o tempo, Agostinho propõe adotar o ponto de vista cada vez mais próximo da eternidade-verdade-princípio. Isso se dá por uma depuração do pensamento humano, que, aos poucos, vai se despojando de um referencial exterior. E, embora o homem se equivoque nas respostas que oferece ao pensar a eternidade, isso significa a exposição de parâmetros humanos em vias de depuração. Significa também tomar o homem como portador de um elo fundamental e interior com a eternidade; um vínculo que, se consultado, esclarece os equívocos humanos. Nesse sentido, o tempo é espelho da alma.

 

Cristiane Negreiros Abbud Ayoub é mestre e doutora em Filosofia pela USP e especialista em História da Filosofia Medieval.

 


> Assine a Cult. A mais longeva revista de cultura do Brasil precisa de você. 

(2) Comentários

  1. Gostei bastante do texto. Já utilizei o texto de Agostinho em aulas de física, sobre Teoria da Relatividade. A Cult não poderia produzir um dossiê sobre o apelo filosófico que envolve Filosofia com as ciências Naturais?

    Congratulações.

    Luciano Simões

  2. Professora Cristiane Negreiros, seu texto revela um suspiro poético de uma síntese traduzida em palavras que demonstram a profundidade de uma reflexão apurada e uma perspectiva focalizada na Filosofia agostiniana. Desfrutei com prazer da leitura deste texto! Estou plenamente certo de que é de pessoas do seu calibre que a humanidade precisa para continuar projetando-se em direção ao desvelar dos segredos ocultos e ricos da alma humana. Obrigado por ser e, continuar sendo, o que és: uma alma profunda que publica ao mundo a música retumbante do coração divino.

    Dominus decun!

Deixe o seu comentário

Novembro

Artigos Relacionados

TV Cult