O teatro e a prosa do mundo

O teatro e a prosa do mundo
Fotos Bob Sousa

“Imprensa e polícia dão-se as mãos para produzir o embuste sinistro”.
Sábato Magaldi, A peça que a vida prega.

A tragédia carioca em três atos O beijo no asfalto, de Nelson Rodrigues, serve de mola propulsora à experiência cênica inquieta e provocativa – O que você realmente está fazendo é esperar o acidente acontecer – que a Cia. de Teatro Acidental está apresentando até o próximo dia 16 de maio na Oficina Cultural Oswald de Andrade. Formado por atores egressos do curso de artes cênicas da Unicamp, o grupo aposta na variedade de linguagens cênicas (teatro de rua, palco italiano, espaços alternativos) e de fontes dramatúrgicas (autores brasileiros, estrangeiros ou criações próprias) para criar espetáculos que proponham questionamentos políticos e sociais sustentados por uma teatralidade advinda da presença coletiva em cena.

Com direção de Carlos Canhameiro (ator e dramaturgo da Cia. Les Commediens Tropicales), responsável também pela concepção dramatúrgica do projeto, em parceria com os integrantes da própria companhia, a peça elege como tema, de um modo áspero e sem rodeios, o comportamento que sempre pairou, discreto e sinuoso, sobre a experiência social brasileira e que agora, diante do advento da imperiosa cultura digital loquaz que nos rodeia, assumiu uma configuração explícita, somente chocante para aqueles muito distraídos ou ingênuos: o exercício de intolerância e de ódio, travestido de liberdade de expressão, que milhares de cidadãos cordiais bem-pensantes Brasil afora têm devotado, dia após dia, a seus conterrâneos.

A primeira grande qualidade da proposta da dramaturgia é a de fazer uso de um texto que integra o cânone do moderno teatro brasileiro, sem prestar excessiva reverência a ele, ou melhor, prestando-a, sim, mas sob a forma da ousadia estética. O material de divulgação não deixa dúvidas: não se trata de uma adaptação de O beijo do asfalto, a peça que Nelson Rodrigues escreveu em 1961 a pedido da atriz Fernanda Montenegro, mas de um comentário desenvolvido a partir da obra. Entretanto, a matriz rodriguiana está lá, servindo não só como pano de fundo para a temática da intolerância, mas também exalando, formalmente, as marcas de sua inerente temporalidade histórica, das quais a Cia. de Teatro Acidental se apropria tão bem com o intuito de convertê-las em traços de inequívoca contemporaneidade. “Há alguma coisa de podre no funcionamento do jornalismo exercido no Rio de Janeiro da década de 1960, amparado com toda solidez por práticas e instituições oblíquas como a opinião pública e a polícia, respectivamente” parece advertir O que você realmente está fazendo é esperar o acidente acontecer – espetáculo de nome proverbial que aproxima de maneira sombria tal contexto, vazado em sincopada tragédia afiliada ao melodrama, daquele hoje vivido por nós.

Acomodados em torno de uma grande mesa retangular, os oito atores do grupo iniciam uma vibrante conversação a respeito da peça de Nelson, que, aos poucos, se transforma de pretexto em subtexto para o estabelecimento de um colóquio vertiginoso sobre o Brasil da comunicação fática que se nos apresenta aqui, ali, em todo lugar, no qual a palavra polida – base da civilização ocidental desde Homero – cede lugar à mais bárbara das verborragias. É o momento, então, de eles todos se levantarem e darem vazão, de pé, a um tipo de loquacidade irrefreável, desregulada, histérica, que aponta de modo irônico para o fato de que talvez a espécie humana tenha abandonado com precocidade sua postura quadrúpede, acreditando que a cabeça apontada para o alto pudesse levá-la a experimentar mais rapidamente a culminância intelectual.

Os debates giram em torno de temas complexos e rugosos, sobre os quais qualquer cidadão brasileiro hoje, de posse de sua inatacável e hipertrofiada opinião, acha ser possível discorrer de forma desabrida (palavra-irmã de desavergonhada): pena de morte, homossexualidade, racismo e aborto. Muito cedo o espectador haverá de perceber que grande parte dos textos proferidos foi colhida diretamente, sem mediações, de colunas mantidas na Internet ou na mídia impressa por jornalistas e comunicadores, além daquela nauseante miríade de postagens, anônimas ou não, de que se alimenta o fascinante mundo das mídias antissociais que nos engolfa. (Desde que Aristóteles descobriu no século IV a. C. a famosa anfibologia trágica, vale notar que ironia e morfologia vêm andando sempre de mãos dadas).

Assim é que a atmosfera de teatralidade explorada em cena, para dar suporte a um espetáculo que faz da eloquência (e do esvaziamento desta) seu mote, transita o tempo todo por entre as margens do teatro dramático, saltando constantemente para fora de seu centro irradiador. Muitas vezes, não parece mesmo uma peça de teatro, e, sim, um simpósio, uma conferência, um colóquio, que, embora calcado em francas bases de paródia e arremedo, não dissimula jamais sua natural tendência a constituir pura e simplesmente uma peça de conversação. (O Édipo de Sêneca, por exemplo, vive deste mesmo expediente, transformando o envolvente encadeamento dramático das ações da matriz sofocliana em matéria de pura contemplação discursiva). Mas a iniciativa aqui não malogra por estar assentada sobre três elementos essenciais ao tipo de teatro experimental praticado pela companhia: sólido material dramatúrgico, firme direção, excelente nível de atuação.

O elenco, composto Artur Kon, Cauê Gouveia, Chico Lima, Eduardo Bordinhon, Mariana Dias, Mariana Otero, Mariana Zink e Tati Mayumi, lança-se à tarefa com energia criativa e domínio técnico muito bem conduzidos. Saindo a todo momento da esfera das personagens que apresentam/representam e mergulhando em suas próprias singularidades pessoais – operação na qual o risco da superficialidade é sempre iminente –, os oito intérpretes conferem à cena uma instigante dose de ludicidade sinistra que se alterna entre a leveza bem-humorada do que é próprio roçar na aparência e as profundezas amargas do que é preciso de fato tocar, remexer, exumar. Detentores de um trabalho vocal e corporal (este, a cargo de Andreia Yonashiro) bastante expressivo, tais jovens sabem ser desagradáveis em cena, emulando a potencial teatralidade do velho anjo pornográfico. A direção de Carlos Canhameiro ressalta o caráter predominantemente estático da montagem, mas o intercala a poucos e intensos momentos de exótica e vívida teatralidade, cunhada na longa experiência que ele vem acumulando na convivência com a Cia. Les Commediens Tropicales, da qual faz parte. O exotismo reside no fato de momentos banais constituírem relances repletos de politicidade sensível (a expressão é de Jacques Rancière) e objetos prosaicos se converterem em ícones de senso e sentido enigmáticos.

Destaquem-se na condução de toda a atmosfera de estranheza e obscuridade a iluminação de Daniel Gonzalez, que pontua muito bem os ritmos e os contrastes da cena, e o cenário de Mauro Martorelli (concebido em parceria com o próprio grupo). Além dos objetos cênicos, duas televisões de 50 polegadas se insinuam sem nenhuma discrição no espaço: uma transmitindo imagens ao vivo captadas do camarim, a outra exibindo cenas de câmeras de vigilâncias reais coletadas pelo grupo. Igual expressividade é extraída do uso da trilha sonora. Dar início à empreitada ao som da portentosa ária da Rainha da Noite, de A flauta mágica, de Mozart, executada de modo patético por Florence Foster Jenkins, soprano que fez da exposição pública da própria mediocridade artística sua verdadeira razão de existir, é um achado e tanto. Executar a música-tema de um velho filme noir, This gun for hire, de 1942 (exibido no Brasil como Alma torturada), para servir de suporte a uma coreografia anódina executada no suposto intervalo da peça também soa muito bem. Por fim, levar o espectador a ouvir Kiss me, com a banda Sixpence None The Richer, enquanto atores-Arandir se oferecem para beijar, no espaço cênico, os espectadores-atropelados em que nós acabamos por nos converter, e I’m on fire, da dupla Io Echo, pontuando uma frenética destruição de melancias, funciona muitíssimo bem.

A montagem integra um projeto maior, de promoção de debates e de atividades formativas muito bem-vindas em um cenário sociocultural tão estéril como o nosso, no qual atividade cultural é sinônimo de evento, que, por sua vez, equivale a uma atividade de lazer e entretenimento. Paralelamente às apresentações do espetáculo, a Cia. de Teatro Acidental em parceria com a Oficina Cultural Oswald de Andrade está realizando o seminário “O ódio como afeto político”, sempre aos sábados às 17h, do qual participa a cada semana uma personalidade de sólida trajetória no mundo intelectual ou político. Duas oficinas ligadas ao seminário também estão ocorrendo. A primeira, “Dramaturgia brasileira contemporânea: leitura e escrita”, promove reflexões sobre o texto teatral nos dias de hoje e convida os participantes à criação de cenas ou peças curtas. A segunda, “Estética e política no teatro paulistano contemporâneo”, trata do recente ciclo de politização, considerado por muitos como já extinto, da atividade teatral realizada na cidade, que teve início no fim da década de 1990 com o Movimento Arte Contra a Barbárie.

A rudeza formal de O que você realmente está fazendo é esperar o acidente acontecer não faz concessões à racionalidade e ao bom-gosto medianos. Talvez seja um teatro para poucos, embora fosse necessário ampliar seus canais de comunicação com a sociedade que ele espelha. A meta é precipitar o acidente sob a forma, inclusive, de uma teatralidade que se arrisca o tempo todo a não ser verdadeiramente teatral, revertendo-se então na própria vida real da qual ela se alimenta. Belos raciocínios costumam conduzir a atos impensados, já nos advertiu Bertolt Brecht a respeito de Hamlet, uma peça de teatro assaz loquaz. Entretanto, se no original do bardo inglês o falante príncipe da Dinamarca se deixa contaminar, de posse de um velho crânio humano nas mãos, por uma dúvida sublime – “Como julgar a própria existência? –, neste arrojado espécime teatral de jovens artistas contemporâneos, ao homem médio brasileiro cabe uma dicotomia mais medíocre – “Ser ou não ser estulto?”, eis a nossa questão. Talvez por isso todos atores tenham nas mãos por um bom tempo durante a representação pesadas e vistosas melancias, frutos cuja polpa se transforma de maneira muito rápida na água de que seu sumo é de fato constituído. Afinal, o que não é o homem brasileiro opinioso de hoje em dia senão um ser de cabeça avantajada, substância interna mais líquida do que sólida e caule rasteiro?

O que você realmente está fazendo é esperar o acidente acontecer
Onde: Oficina Cultural Oswald de Andrade (Rua Três Rios, 363 – Bom Retiro, São Paulo)
Quando: Até 16/05, de quinta-feira a sábado às 20 horas (exceto 31 de abril, 1º e 2º de maio)
Quanto: Grátis (ingressos distribuídos com meia hora de antecedência)
Info: (11) 3222-2662

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