O subsolo – textos de Welington Andrade e Flávio Ricardo Vassoler
“Poucas obras na literatura atual são mais lidas do que Memórias do subterrâneo, de Dostoiévski, ou são citadas com mais frequência como texto fundamental e revelador das profundezas ocultas da sensibilidade de nosso tempo. A expressão ‘homem do subterrâneo’ tornou-se parte do vocabulário da cultura contemporânea, e essa personagem alcançou hoje em dia – como Hamlet, Dom Quixote, Dom Juan e Fausto – a estatura de uma das grandes criações literárias arquetípicas”. Joseph Frank, Dostoiévski: os efeitos da libertação (1860-1865).
“Nenhum livro ou ensaio que estuda a situação precária do homem moderno estaria completo sem alguma alusão à explosiva figura de Dostoiévski. Os desenvolvimentos culturais mais importantes do presente século – Nietzschismo, Freudismo, Expressionismo, Surrealismo, Teologia da Crise, Existencialismo – invocaram o homem do subterrâneo ou mantiveram ligações com ele por meio de zelosos intérpretes; e, quando o homem do subterrâneo não foi aclamado como uma interpretação profética, foi exibido como uma advertência sombria e repulsiva”. Idem.
Com as apresentações de O subsolo, em cartaz no Ágora Teatro desde o último dia 29 de julho, o ator Celso Frateschi encerra “a trilogia do subterrâneo”, voltada à encenação das novelas O sonho de um homem ridículo e Memórias do subsolo e do episódio “O grande inquisidor”, do romance Os irmãos Karamázov – um conjunto precioso de narrativas concebidas pelo escritor russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881). A tríade de peças constitui um grande acontecimento teatral em São Paulo, ungido não somente pelas modestas dimensões do espaço que as acolhem como também pela discrição com que o programa se insere no panorama cultural da cidade, abrindo mão do estardalhaço midiático que transforma muitas vezes a ocorrência mais ordinária em um produto de valor (e preço) extraordinário.
Na segunda edição do Encontro com o Espectador, projeto que os jornalistas Beth Néspoli e Valmir Santos estão realizando mensalmente no mesmo espaço do Ágora – cujo objetivo é promover a aproximação do público paulistano com atores, diretores, dramaturgos e demais realizadores da arte da cena –, Celso Frateschi chamou a atenção para a austeridade de recursos, segundo ele, da qual se pode extrair um elemento formador e educativo, da Mostra de Dramaturgia em Pequenos Formatos Cênicos que o Centro Cultural São Paulo vem realizando desde o ano passado com a curadoria de Kil Abreu e que foi tema daquela segunda roda de conversa. Tanto a Mostra como o Encontro com o Espectador (como, a bem da verdade, uma série de bons projetos teatrais, quase sempre invisíveis, que se espraiam pela cidade) procuram resgatar uma certa dimensão artesanal do fenômeno teatral, cerzida por fatores como inquietação com o mundo circundante, experimentação estética, destemor frente à potencialidade intelectual da arte e da cultura, intercâmbio de experiências socioculturais, políticas, pedagógicas as mais variadas possíveis… Dimensão essa deixada de lado pelo processo de industrialização por que passa certa cena teatral, sustentada por pródigos esquemas de produção e promoção publicitária que nada mais fazem do que adestrar as plateias para um tipo de percepção espetacular que não corresponde propriamente à percepção e à intelecção livres e autônomas que se espera que o teatro proporcione como arte incidente sobre o “artesanato do espírito”.
Artesanalmente confeccionado é o manto com que Celso Frateschi se cobre na segunda metade do breve e belo monólogo O subsolo. Como igualmente manufaturado é o cenário da peça (a cargo, junto aos figurinos e adereços, de Sylvia Moreira). Ao adentrarmos a modesta sala do Ágora, estando o ator já em cena, podemos examinar por alguns instantes o que repousa diante de nós. A parede do fundo, disposta sob a forma de uma alta e larga estante onde se amontoam pilhas e pilhas de processos com a inscrição “carimbado”, carrega em si os sinais do tempo, evocando o velho mundo russo do funcionalismo público e sua melancólica impotência, cujos ecos encontram ressonância na cultura administrativo-burocrática que nós, brasileiros, herdamos dos portugueses. (Como se o auxiliar de guarda-livros do brevíssimo e brilhante conto de Tchekhov, por exemplo, fosse meio-irmão do amanuense Belmiro, do romance homônimo de Cyro dos Anjos). A mobília que compõe o cenário é escassa: uma mesa e uma cadeira, uma poltrona, um samovar que pende do teto de onde respingam (mais insistentemente do que nas duas peças anteriores) gotas d’água acolhidas no chão por uma prosaica bacia. Tais são as alfaias da pequena sala de espetáculo por onde Frateschi transita e nos apresenta seu personagem. O senso geral de parcimônia e intimismo advém do próprio espaço (que oferece assim um raro poder de fruição introspectiva), potencializado pela direção de Roberto Lage, e incide sobre a iluminação e a trilha sonora do espetáculo, sob a responsabilidade de Wagner Freire e de Aline Meyer, respectivamente.
O que parece essencial é a presença do corpo do ator em cena e a teia complexa de ideias que ele irá desfiar diante de nós, dramatizando-as por meio desse mesmo corpo, o que resulta em um processo de intelecção afetiva ao qual o teatro hoje talvez se sinta pouco desafiado a dar curso. A adaptação, realizada pelo próprio intérprete, do texto original privilegia a primeira metade da novela (“O subsolo”), embora insira nela o episódio do esbarrão no oficial na avenida Névski e utilize parte do episódio com a prostituta Liza (ambos integrantes da segunda metade da obra, “A propósito da neve molhada”) como uma abertura em off da encenação. Desse modo, privilegia-se o grande poder de sugestão filosófica do texto original de Dostoiévski (cujo primeiro segmento já foi publicado, inclusive, como compêndio de filosofia), sem que se percam de vista suas qualidades dramáticas. O teatro sempre foi um lugar privilegiado para o amplo debate de ideias, mas muitas vezes elas assumem um aspecto marginal em certas encenações, soterradas por camadas e camadas de pirotecnia ou pelos excessos cometidos por criadores que não compreendem na verdade o material sobre o qual estejam trabalhando. Não é o caso de Celso Frateschi, cujo estilo de interpretação – já aludido nas críticas anteriores – dá corpo, com muita habilidade técnica e emocional, ao personagem tanto quanto encorpa as ideias complexas apresentadas no texto dostoievskiano sem querer concorrer com elas, seja por vaidade, seja por incultura. (Seria o caso, quem sabe, de os monólogos serem apresentados paralelamente a um curso sobre a prosa do escritor russo, de modo que o espectador pudesse usufruir, para além da capa da superficialidade, do ideário polifônico do autor de Crime e castigo).
O que parece central em Memórias do subsolo é a natureza satírica empregada por Dostoiévski para dramatizar, de um lado, a aceitação de todas as implicações da razão e, de outro, o exercício de uma ideologia sentimental e humanitária, segundo a leitura muito articulada proposta por Joseph Frank. Em decorrência dessa visão macroscópica, pode-se salientar também a oposição paradoxal que a novela apresenta entre os homens de consciência e os homens de ação. Muitas referências paródicas dessa Memórias… se perderam (como, por exemplo, o ataque à filosofia do “egoísmo racional” de Tchernichévski, lembrado por Frank), mas vibra ainda hoje o aspecto essencialmente político da discussão que ela enceta, plenamente aderido à sua lógica artística. Se Otto Maria Carpeaux nos lembra em “Ensaios de interpretação dostoievskiana” que “a literatura russa do século 19 é profundamente política” (constituindo uma espécie de tribuna a compensar a falta de imprensa e de cátedras livres), carrear tal debate para o Brasil contemporâneo soa uma proposta mais do que bem-vinda, sobretudo frente à enormidade de tipos morais, psicológicos e socioidelógicos cujos discursos e práticas “não só podem, mas devem até existir em nossa sociedade, desde que consideremos as circunstâncias em que, de um modo geral, ela se formou”, como adverte o próprio Dostoiévski na nota introdutória de sua novela, sem saber que se dirigia ali exatamente a nós, brasileiros tanto do mesmo século 19 em que ele viveu como do aqui-agora.
Afinal, Machado de Assis com sua vasta galeria de egoístas sofisticados também tratou do homem subterrâneo, cujo objetivo é suprimir o mundo inteiro para, desintegrado desse mundo, atribuir-se exclusivos direitos de vida (na acepção de Augusto Meyer, que estabeleceu uma viva correlação entre Machado e Dostoiévski) e reclamar de modo tácito, e odioso, uma liberdade só para si (de acordo com a leitura de Luís Murat). Explorando o caráter dialógico do texto (todas as peças da trilogia fazem isso muito bem), por meio do qual a dissonância interna do personagem é compartilhada dramaticamente com a plateia, O subsolo enreda cada espectador nas malhas do egoísmo e da razão, levando-os às experiências, seja da autoconsciência doentia, seja do altruísmo de superfície, encarado como “amigavelmente social”.
Curioso pensar que os figurinos utilizados pelo homem brasileiro do subterrâneo retratado na trilogia sejam um capote e um manto. Muito embora a alusão a Arthur Bispo do Rosário, por esse último, seja inequívoca, parece que é com Gógol e com Púchkin que eles dialogam melhor. “Descendemos todos nós de O capote”, afirmou Dostoiévski, grande admirador da literatura russa, de cujos poemas prediletos fazia parte O profeta de Púchkin (“… Ergue-te, ouve e vê, profeta,/Da minha vontade te tomes,/Mares e terras percorre, queime/Meu verbo o coração dos homens.”). O último volume da catedralesca biografia que Joseph Frank dedicou ao escritor russo se chama justamente “O manto do profeta” e nele são tratados os últimos dez anos de vida do autor, convertido “num símbolo vivo de todo o sofrimento que a história impusera ao povo russo, e de todo o anseio deste povo por um
mundo ideal de amor e harmonia fraternos (cristãos)”. Ao teatro naturalmente não compete vaticinar nada no âmbito de crenças, religiões e convicções arraigadas. O belo manto confeccionado por Sylvia Moreira, com o qual Celso Frateschi se cobre na segunda parte de O subsolo, talvez esteja ali somente para entronizar um personagem cuja subjetividade, classificada por Bóris Schnaiderman como “agressiva e torturada”, é de um plebeísmo tal que ele se aproxima tão descaradamente, durante os 55 minutos que dura a encenação, de cada um de nós.
A metamorfose
por Flávio Ricardo Vassoler
I. O subsolo, elogio da masmorra
Fiódor Dostoiévski pode ser tido como um dos autores que mais escavaram o subsolo da síndrome de Estocolmo, o amor da vítima pelo carrasco, o apego do prisioneiro pelas grades de sua cela. No mito da caverna dostoievskiano, os cativos se debatem não para arrebentar os elos das correntes que os submetem, mas para apedrejar todos aqueles que tentam demovê-los do charco de suas sombras, do regozijo em sentir prazer com o embotamento da realidade. É assim que tudo aquilo que desponta como algo terno e despido de confronto – algo que tem o sentido de converter a dor em purgação – parece flagelar o niilista com o mesmo rancor que pauta suas (não-)relações. A reconciliação lembra ao niilista a necessidade de se haver com suas próprias faltas, a necessidade de (se) cicatrizar, ao passo que a inércia tautológica da dor começa a sentir prazer com o punhal a escarafunchar a ferida purulenta. O passo seguinte é se aproximar da fragilidade que ainda sorri não com o ímpeto por compaixão, mas com a partilha da dor – se a dor flagela o niilista, que ela passe então a flagelar a todos os demais. Eis o que o niilismo concebe como convivência.
II. A mão que afaga é a mesma que apedreja,
então escarra nessa boca que te beija!
Eis que o poeta brasileiro Augusto dos Anjos se mostra um exímio frequentador do subsolo de Fiódor Dostoiévski com a visceralidade de seus
Versos Íntimos
“Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!”*
III. É preciso imaginar Sísifo eterno
- O dostoievskiano Albert Camus rola a pedra d’O mito de Sísifo (1942) com a seguinte lápide inaugural: “Só há apenas um problema filosófico verdadeiramente sério: o suicídio”.
Para além de quaisquer legitimações vãs da vida-a-ser-ceifada-pela-morte – contra, portanto, o belo (e idílico) aforismo de Camus de que “é preciso imaginar Sísifo feliz” –, imaginei a resposta que o homem ridículo, personagem dostoievskiana de O sonho de um homem ridículo (1877), daria ao niilismo (parcial) de Camus: - Só há apenas uma ação niilista verdadeiramente séria: o suicídio.
Após a cicatrização de seu espírito por meio do sonho escatológico e redentor que leva o homem ridículo do penhasco do suicídio à tangibilidade da utopia e do sentido, assim falou o herói dostoievskiano: - Só há apenas um problema existencial verdadeiramente sério: a eternidade.
IV. A mão que fere é a mesma que pode curar,
então ampara essa boca que ainda não beija
Após arremessarmos Dostoiévski contra Camus e o homem ridículo contra Dostoiévski, arremessemos a verve demoníaca de Augusto dos Anjos contra si mesma, de modo a descobrirmos que a mão que fere é a mesma mão que pode curar.
A metamorfose
Ouves? Alguém já ausculta a formidável
Súplica de tua Fênix.
Não só a Gratidão – esta Pandora –
É tua companheira inseparável!
Levanta-te do charco que te prostra!
O Homem, que, nesta terra ainda purulenta,
Mora, entre feras, sente inextirpável
Vontade de já não ser fera.
Toma um fósforo. Reconcilia tua noite com o dia!
O beijo, bela, é o prenúncio do amparo,
A mão que fere é a mesma que pode curar.
Se a ninguém causa ainda pena a tua chaga
Cura essas mãos vis que não afagam,
Ampara essa boca que ainda não beija.
Flávio Ricardo Vassoler, escritor e professor, é doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP.
O subsolo
Onde: Ágora Teatro (Rua Rui Barbosa 664, Bela Vista – SP)
Quando: Até 18 de setembro. Sextas, às 21h30; sábados, às 21h; domingos, às 19h
Quanto: Preços: R$ 60,00 e R$ 30,00 (meia)
Info: (11) 3284-0290