O século 19 na Rússia e os ícones da prosa mundial
O panorama de um dos períodos maisprofícuos da literatura mundial
Aurora Bernardini
Como explicar o fato de que um país considerado bárbaro pelo Ocidente no início do século 19 tenha conseguido reunir, justamente nessa época, uma floração de escritores, entre os mais importantes da modernidade – de Aleksandr Púchkin (1799-1837) a Mikhail Lérmontov (1814-1841), passando por Nikolai Gógol (1809-1852) e Ivan Turguêniev (1818-1883), até chegar a Fiódor Dostoiévski (1821-1881), Liev Tolstói (1828-1910) e Anton Tchekhov (1860-1904)?
Quais características os marcaram que até hoje influenciam os rumos da literatura mundial?
Para tentar desvendá-las, adotemos o ponto de vista russo, o mesmo proposto por Georges Nivat – professor da Universidade de Genebra e um dos eslavistas mais importantes da atualidade – em seu livro recente Vivre en russe [Viver como russo, 2007].
Vejamos como essas características são ressaltadas na obra desses e outros escritores.
O temporal e o espiritual
Em primeiro lugar, vem algo profundamente ligado à natureza do povo russo (eurasiano: entre o asiático e o europeu), que o príncipe Nikolai Trubetskói, o grande filólogo colaborador de Roman Jakobson, considerava a pedra de toque: a fraternidade enquanto grupo e o individualismo na prática cotidiana. Um impulso inato de solidariedade entre os moradores do mesmo ziemstvo (organização fundiária com administração local), do mesmo mir (comunidade, mundo) e a busca indeterminada de um sentido, a tendência ao absoluto: o temporal que se funde ao espiritual.
Tolstói soube interpretar bem isso em seus contos para os filhos dos mujiques de Iásnaia Poliana (sua propriedade perto de Moscou, onde implantou uma escola), da mesma forma que Turguêniev, em Pais e filhos, e Soljenítsin, mais tarde, souberam explicar a preguiça, o fatalismo e a resignação diante da impotência dos mesmos mujiques, tão bem apanhados em seu comportamento e em suas falas em Almas mortas, de Gógol. Tal explicação justifica-se pelo enfraquecimento dos ziemstvos e devido à imposição por Pedro I de um regime europeizante, estranho ao povo.
Entre a razão e a vontade, o que predomina no homem russo – que nunca se constituiu em cidadão em sua jornada do subterrâneo ao sol – é a “alma” (o spinoziano “o ser perseverando no seu ser”), tema tão caro a Dostoiévski.
A esse espírito de irmanação na liberdade das pessoas, Nivat chama sobórnost (termo da igreja ortodoxa russa referente à sua natureza de conciliar) uma colegialidade unânime e livre em espírito que busca a verdade no espírito popular (naródnost), em contraposição ao viés excessivamente individualista e racionalista do Ocidente.
Filósofos como Vladímir Soloviov viram na “interpenetração completa dos princípios individual e coletivo a coincidência interior entre o desenvolvimento máximo da personalidade e a mais completa unidade social” (Lições de pan-humanidade), sem que Deus e/ou o coletivismo tivessem sido impostos de cima.
Já teólogos como Serguei Bulgákov, lembrando que a raiz do termo “camponês” (krestianin) em russo está ligada à de “cristão” (khristianin), insistiram na necessidade de promover um cristianismo social, uma reconciliação entre o homem e a natureza em que a ortodoxia, desprovida do princípio monárquico e mesmo do princípio estritamente eclesial, fosse instada a promover uma democracia econômica. Ou seja, assim como Dostoiévski, consideravam que a ortodoxia seria “nosso socialismo russo”.
Considerando a famosa definição da Rússia do príncipe Uvárov, ministro de Nicolau I, “autocracia, ortodoxia, naródnost”, Nivat contempla a definição que daria conta da Rússia, hoje: “Uma teocracia sem Deus, mas com um patriarca”, obviamente, Pútin; sendo que a própria Igreja Ortodoxa estaria hoje “sofrendo a sedução de uma aliança estreita com o poder”.
A fuga do mundo e a desordem na ordem
Pela fuga ao contingente e por uma curiosa tendência que o homem russo tem de admitir a participação da loucura e da desordem na instituição da ordem, explica-se a figura do iuródstvo – loucura mansa, interpretada como uma força, um dom, uma forma de ascetismo própria do pietismo russo – na qual Dostoiévski se inspirou para criar a personagem de seu livro mais querido,
O idiota.
A desordem como etapa para atingir a harmonia final, cujo respaldo está na antiga lenda russa da “Peregrinação da virgem pelos tormentos”, ilustra aspectos importantes da poética dostoievskiana: seus startsi (ermitões com aura de santos) passaram pelo pecado em sua juventude. Desta forma, ele planejava o percurso de Aliócha, no inacabado
Os irmãos Karamázov.
Visão essa bem diferente da ocidental, que levou Freud (em Dostoiévski e o parricídio) a considerar que a moral consiste mais propriamente em não sucumbir ao pecado, diferentemente das personagens dostoievskianas, que pecam e depois se purificam. Em Recordações da casa dos mortos, Goriêntchikov, o narrador-porta-voz de Dostoiévski, declara:
“Acho que o melhor dos homens pode cair, com o hábito, na crueldade e na estupidez das feras. O carrasco existe em germe em cada um de nós, mas suas faculdades de bestialidade se desenvolvem em nós de forma desigual”.
De fato, o homem como ser bruto e como reflexo divino serão a antinomia constante na obra do escritor, da mesma forma que a antinomia anjo/demônio marcará as principais heroínas de seus romances.
Mesmo os poetas simbolistas russos – como Blok, Biéli, e Ivanov, que atuaram antes e no começo da Revolução na busca pela unidade primeira em que “tudo está em harmonia e um respira no outro” – viram muitas vezes a ascensão e o êxtase beirarem a alucinação ao se transformarem em símbolo. Sintomático é o famoso poema Os doze, de Blok, composto ao mesmo tempo em que o poeta toma conhecimento que sua propriedade familiar de Chakhmatovo havia sido pilhada pelos camponeses. Ele junta um punhado de insurretos, maltrapilhos, marginais e prostitutas e os acompanha em uma marcha frenética e arrasadora, encabeçada por Jesus Cristo.
O episódio da morte de Petia, em Guerra e paz, de Tolstói, é tratado como um modo musical, a fuga, em que cada instrumento, com seu motivo próprio, funde-se aos outros e aparta-se de novo, tal como uma transposição secular de um velho coral da Igreja russa, curiosamente, também chamado sobórnost.
Entretanto, a fuga pessoal do velho conde Tolstói, que acaba com sua morte na estação de Astápovo e é considerada pela família como alienação, é, por outro lado, o símbolo de abandono de seu mundo; a fuga do mundo para refugiar-se no deserto é a característica do famoso peregrino-poeta-profeta de Púchkin (Strannik). Tal como nos ícones de perspectiva inversa, é preciso olhar para o mundo por um outro prisma, para ver o que não se enxerga com as lentes do cotidiano.
Nomadismo x Sedentarismo, a visão global e …a democracia
Pela componente asiática, explica-se o nomadismo inveterado do homem russo, tão presente nas descrições do Oriente de Púchkin e de Lérmontov, com seu lema: fidelidade/lealdade/firmeza de caráter, bem como a insatisfação constante (tema obrigatório em Tchekhov) e os desvios dos quais esse mesmo homem torna-se presa quando obrigado ao sedentarismo.
Um desses desvios seria a Revolução de 1917, na visão que certos membros da intelligentsia têm da mesma. O próprio Nikolai Trubetskói, partidário da visão eurásica e não europeizada da Rússia, achava que “a Rússia de Ivan IV é a Horda russificada e bizantinizada”, concluía que o novo regime bolchevista levava adiante a europeização da Rússia, dando as costas à natureza eurasiana do país. “Não é de se admirar, portanto”, diz ele, “que seus melhores adeptos sejam, assim como sob Pedro I, os indivíduos originários dos países bálticos e que tantos visitantes ocidentais voltem da Rússia soviética convencidos de que, se o comunismo ainda não funciona bem por lá, isso se deve àqueles ‘russos selvagens’”. (Nivat, p.63)
Por outro lado, sempre segundo Trubetskói, contrariando a influência europeia, a visão dos russos é global, não fragmentada e diferenciada como a da Europa. Veja-se a dança, diz ele, por exemplo. Na dança russa, tudo se move, não apenas as pernas. Tudo é um convite à improvisação e à criatividade.
Como exemplo, valha o trecho de Guerra e paz (cap.7) em que Natacha, educada por uma governanta francesa, de repente entrega-se instintivamente a uma dança improvisada, desenfreada, diante de seu tio, estarrecido. O espírito russo não resiste ao apelo do informe, diz Chestov, um de seus pensadores.
Finalmente, o reverso da medalha, Tchekhov. Escreve em chiaro-scuro, termina em pianíssimo, como dizia dele Virginia Woolf, uma de suas leitoras mais entusiastas. No entanto, ao contrário de muitos de seus precursores, Tchekhov, o jovem médico tuberculoso em cujas veias corria sangue de servo, não se exalta, não se alucina, não pontifica. Ele nos mostra como a “alma”, a famosa “alma russa” pode enregelar-se, paralisar-se. Mostra ainda como o homem pode perder partes de si próprio e, sem dar-se conta, apagar sua presença no mundo.
Para apresentá-lo, e com ele concluir, nada melhor que um trecho de uma conversação apontada por Nivat e retirada de Vida e destino (1960), a obra-prima de Vassili Grossman, romance considerado por muitos o Guerra e paz do século 20, ainda não traduzido no Brasil:
“De Avvakum a Lênin, nosso humanismo e nossa liberdade têm sido tendenciosos, fanáticos, têm sacrificado o homem a uma humanidade abstrata. Mesmo Tolstói, com suas homilias sobre a não resistência ao mal, é intolerante e, principalmente, não procede do homem, mas de Deus. O que importa a ele é que triunfe a ideia que afirma a bondade, mas sabemos bem como os teóforos tentam sempre instaurar Deus no homem pela força”.
Na Rússia especialmente, segundo esse desígnio, não se hesitará em alquebrar,
em matar, nada nos deterá. Já Tchekhov, o que diz?
Ele diz: “deixemos Deus de lado, deixemos as grandes ideias progressistas de lado. Comecemos pelo homem. Sejamos bons, importemo-nos com o homem, não interessa qual deles, um bispo, um mujique, um industrial milionário ou um condenado de Sakhalina, um garçom de restaurante. Comecemos pelo respeito, pela piedade, pelo amor ao homem, senão a nada chegaremos. Isso é a democracia, a democracia russa que até hoje não existiu”.