O rosário da crítica para a meditação dos mistérios
FOTOS: Bob Sousa
Mistérios gozosos
1º mistério: “A ciência conseguiu juntar/ o Mangue com o mundo/ e de lá saiu/ um malungo boy malungo/ Antenado, camarada, malungo/ Sangue bom./ Francisco de Assis./ Malungo sangue bom”. Malungo, Jorge Du Peixe-Gilmar Bolla 8-Fred Zero Quatro.
Tomando a lama escura e mole que constitui o solo dos mangues tropicais como uma veemente metáfora, Oswald de Andrade compôs um poema dramático ao qual deu, até onde se sabe, quatro versões ao longo de sua vida. Em 26 de dezembro de 1936, ele concebeu O santeiro do Mangue – poema para fonola e desenho animado, dedicado aos poetas católicos Murilo Mendes e Jorge de Lima. E também, com a mesma ironia, “às Senhoras Católicas” e “ao Exército da Salvação”. A data de 25 de fevereiro de 1944 marca a finalização da segunda versão da obra, ainda oferecida àqueles dois poetas que cultivavam uma “poesia em Cristo”, mas agora rebatizada de Rosário do Mangue – uma pantomima religiosa em trinta mistérios, um intermezzo e um epitáfio. Em 11 de junho de 1950, o poema volta a se chamar O santeiro do Mangue e é dedicado a quatro poetas (Goethe e Claudel; Murilo e Jorge, mais uma vez), a seis amigos do autor, “aos michês em geral” e “às Senhoras Católicas em particular”. Quase dois meses depois, no dia 6 de agosto, a derradeira versão – O santeiro do Mangue – mistério gozoso em forma de ópera é concluída; desta vez, não oferecida a ninguém.
2º mistério: “Não posso mudar minha massa de sangue/ Você pode ver que palmeira do Mangue/ Não vive na areia de Copacabana”. X do problema, Noel Rosa.
O diretor José Celso Martinez Corrêa encenou pela primeira vez O santeiro do Mangue em um dia de finados lá pelo início dos anos 1980, quando retornava do exílio. O local: a Escola de Arte Dramática da Universidade de São Paulo (EAD-USP). Uma segunda encenação ocorreu em frente ao Solar da Marquesa de Santos, no centro velho da capital paulistana, durante o Carnaval de 1994. E posteriormente veio a cumprir temporada no Teatro Oficina, de dezembro de 1994 a maio de 1995. Eis que agora, passadas duas décadas dessa série de apresentações, Zé Celso dá à luz a sua terceira versão da peça, pouco antes de se encerrar, diga-se de passagem, o lamacento ano de 2015. A adaptação dramatúrgica conduzida pelo diretor amplia o texto-matriz oswaldiano em tamanho e variedade temática e o faz chegar até os dias atuais, mantendo, entretanto, intacta a estrutura narrativa do poema dramático – plasmado, como se viu, a partir de quatro versões sucessivas. Assim, sob os augúrios no número sete (que representa a “totalidade em movimento”, segundo a simbologia religiosa), Mistérios gozósos ganha uma vez mais a cena. Em nova e fervilhante versão. Matéria movente, matéria vertente.
3º mistério: “Minha pobreza tal é/ que não trago presente grande:/ trago para a mãe caranguejos/ pescados por esses mangues;/ mamando leite de lama/ conservará nosso sangue”. Morte e vida severina, João Cabral de Melo Neto.
A forma artística na qual Zé Celso investe uma energia criativa de grande fôlego é a da margem móvel. Mistérios gozosos não pode ser classificado simplesmente como um espetáculo teatral. Conforme o próprio nome anuncia, a experiência também priva do caráter de culto, dramatização e festa. Rito jubiloso e orgiástico a um só tempo. Ali onde o espectador mais afeito às teatralidades convencionais espera assistir a uma interpretação convincente, a uma cena bem-feita, a um golpe de teatro, enfim; surge uma cerimônia anti-teatral. Por deslocamento contínuo de significantes e significados, deslocamento próprio das ondas do mar e do canal do mangue. Zé Celso tem a incrível capacidade de matar em nós toda e qualquer expectativa por um tipo de teatro que já está morto há muito tempo. Embora muitos não saibam disso. Daí a frustração, convertida em escândalo ou má-fé, por parte de alguns que ainda imputam ao diretor uma malevolência que está neles próprios. “Voltando-se para si mesmo para ‘salvar a vida do outro’, sua voz torna-se o instrumento de sua própria aniquilação potencial”, adverte Judith Butler em nome do não controle e da não violência. A partir do despedaçamento ritualístico do teatro, o diretor do Oficina renova ciclicamente a arte teatral. Puro ato político que não deixa os sentidos se cristalizarem em formas rígidas e ainda aponta para a obsolescência da cultura oficial. O que já não cabe é a cultura institucionalizada no mundo do Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona, movediço sempre.
4º mistério: “De tudo que é nego torto/ Do Mangue e do cais do porto/ Ela já foi namorada/ O seu corpo é dos errantes/ Dos cegos, dos retirantes/ É de quem não tem mais nada”. Geni e o Zepelim, Chico Buarque.
Os grandes temas da encenação são o mar e o mangue, desdobrados nas imagens do seco e do úmido. (Vale notar que a peça integra um projeto maior: Oswaldianas, teato na cidade seca sobre rios, que congrega também a Universidade Antropófaga, um centro de transmissão de conhecimento e troca de experiências). A crise hídrica que se abate sobre o Brasil, um país, paradoxalmente, de ampla costa litorânea e grandes reservas de água doce, motivou Zé Celso a discutir a metáfora da esterilidade. Presente nas negociatas políticas, nas falcatruas financeiras, nos desmandos ecológicos. Há uma nação ressequida, paralisada por meio da calamidade trazida pela secura do ethos social. A água, assim, se desregula e se converte em lama. Que invade um rio mineiro, uma praia capixaba e o Congresso Nacional. Longe de reproduzir o discurso das indignações da moda, tão farisaicas quanto estéreis, a encenação nos lembra que a lama é também matéria fecunda, elemento primordial de onde o homem surgiu. É superfície que se move o tempo todo em virtude da terra infirme que há embaixo dela, encharcada pelas águas. A lama, o lodo, o mangue são fermentados pelo mar e fermentam o amor. O amor sublime da prostituta sagrada. O amor degradado das putas mequetrefes. Oswald de Andrade e Zé Celso ministram para nós essa surpreendente lição de botânica: no mangue as excrescências respiram.
5º mistério: “No Mangue, tudo é, foi ou será caranguejo, inclusive o homem e a lama”. Homens e caranguejos, Josué de Castro.
Mistérios gozósos está filiado à tradição não somente dos ritos que conheceram grande popularidade no mundo grego e romano, como também da liturgia cristã que se desenvolveu a partir do Novo Testamento – o que constitui um outro registro da matéria movediça que rege a experiência, um misto de culto pagão e celebração cristã. Muitos símbolos eleusíacos, dionisíacos e órficos estão presentes no terreiro eletrônico do Oficina, desdobrados na sacralidade da atividade sexual (‘Para que não falte o pau nosso de cada noite”), da fertilidade vegetal (“Hosana banana”) e do alimento (“Jesus da Comidas”). Dos mistérios de Elêusis preserva-se a presença das duas deusas: Perséfone e Deméter; Eduleia e Deuzólinda. Dos ritos dionisíacos recuperam-se os atos escatológicos, licenciosos e orgiásticos, ligados às forças naturais da vida e da fecundidade. Dos rituais órficos resgatam-se a magia da música e a alegoria do desmembramento – sublimada pelo caráter antropofágico da empreitada. Mas há que se falar também na atmosfera cristã (cuja gênese, a rigor, é órfica), radiografada em inversão paródica pela encenação. Do mesmo modo que na Antiguidade Clássica os cultos mistéricos gozavam de grande popularidade junto a indivíduos que se decepcionavam com o discurso da religião oficial, o Evangelho paródico anunciado pelos atuadores do Oficina também transgride a esfera institucional do cristianismo, que, ao lado das outras duas grandes religiões monoteístas – o judaísmo e o islamismo –, sustenta, com toda a sorte de proselitismos, a ideologia tri-funcional do homem indo-europeu, assentada sobre práticas caducas nas esferas da religião, do trabalho e da guerra.
Mistérios dolorosos
6º mistério: “Quando acordei tava aqui/ Entre São Paulo e o Mangue/ Brasil via MTV/ Num clip de bang bang”. Pretobrás, Itamar Assumpção.
É preciso adentrar o espaço do Oficina orientado pela moral pansexual do corpo (“Porque os corpos se entendem, mas as almas não”, apregoa Manuel Bandeira, o poeta dos prostíbulos e dos cabarés) para usufruir plenamente do ritual, já que o corpo é o grande mediador das relações que ocorrem entre os atuadores e a plateia e entre esta e os sentidos que se pretendem veicular. (A moral discursivo-normativa do espírito, que sempre priva o homem do contato com o Outro pelo cume da frigidez, quase nunca consegue entender que, em se tratando do corpo, o buraco, quente, é sempre mais embaixo). Envolvida pela música pélvica que vai e volta durante os cento e oitenta minutos que dura o ritual (“Cá em baixo a rua cheia/Lá em cima a lua cheia”) – disposta a marcar o movimento de expansão e recolhimento que está implícito na imagem tanto do mar lambendo a areia da praia como de corpos libidinosos entregues ao vai-e-vem do sexo –, a plateia precisa se despir dos discursos normativos, dos valores tradicionais, do bom-mocismo reativo. E deixar-se contaminar pela pansexualidade que impregna tudo. E adotar uma certa humildade intelectual também. Que em tempos de arrogância desmedida soa como um ensinamento. “Nós somos muito subdesenvolvidos para reconhecer a genialidade da obra de Oswald de Andrade. Nosso ufanismo vai mais facilmente para a badalação do óbvio, sem risco, do que para descoberta de algo que mostre a realidade de nossa cara verdadeira”, declarou Zé Celso em 1967 a respeito de O rei da vela. Palavras idênticas – a plateia há de entender – aplicam-se também à obra do diretor.
7º mistério: “Já não somos como na chegada/ O sol já não é claro nas águas quietas do Mangue/ Derramemos vinho no linho da mesa/ Molhada de vinho e manchada de sangue”. Miserere nobis, Gilberto Gil- Capinan.
Em O santeiro do Mangue, Oswald de Andrade expõe os conflitos da inteligência cosmopolita burguesa que sofreu o grande golpe da crise de 1929, satirizando, com o espírito corrosivo que sempre foi sua marca registrada, o Brasil das elites mundanas das grandes capitais. De lá para cá muita coisa mudou, mas nem tanto assim. Artista antropofágico que é, Zé Celso deglutiu o condensado poema dramático oswaldiano e o regurgitou sob a forma de uma caudalosa epopeia em que os fumos do drama e do lirismo originais se misturam aos ventos dialéticos que o diretor sabe soprar tão bem sobre suas criações, sem soar didático ou professoral, brechtiano que é por subtração. Vale notar que a encenação ecoa sete Brasis diferentes: o de 1936, o de 1944, o de junho de 1950, o de agosto do mesmo ano, o do início dos anos 1980, o de 1994 e o de agora. E vale se dar conta de que a aspereza, a brutalidade, a dor e a tragédia se mantiveram as mesmas em todos esses momentos da vida nacional. Como se o intervalo que separa o Brasil modernista da década de 1930 e o Brasil moderno de 2015 fosse preenchido por uma linha contínua e tautológica: em se tratando de modernidade, só a violência nos une. O que Mistérios gozósos denuncia tão bem é a permanência da velhice dos mesmos e eternos personagens, das mesmas e eternas ocorrências, da mesma e eterna mentalidade. Em tempo: 1936 é o ano imediatamente anterior ao do advento do Estado Novo, implantado por um golpe de estado de viés nacionalista, anticomunista e totalitário. Para o glossário dos tempos que correm, o resto é silêncio.
8º mistério: “E há partidas para o Mangue/ Com choros de cavaquinho, pandeiro e reco-reco/ És mulher/ És mulher e nada mais”. Mangue, Manuel Bandeira.
Se Oswald de Andrade dá voz no texto a uma corrosiva crítica social direcionada, sobretudo, à sociedade burguesa cujos modos de vida tanto o exasperavam (“O que importa a uma sociedade organizada é manter o seu esgoto sexual. A fim de que permaneça pura a instituição do casamento. Para que não seja necessário o divórcio. E vigorar a monogamia e a herança. A burguesia precisa do Mangue”, declara o Estudante Marxista no epílogo da obra), Zé Celso e os atuadores do Oficina ampliam a discussão para a máquina capitalista onipotente e hipertrofiada do mundo globalizado de hoje, sem se esquecer, naturalmente, de satirizar, entre nós, impeachadores, ruralistas, gângsteres e religiosos de toda sorte e nenhum caráter. Enquanto Oswald faz do mistério gozoso uma ópera-bufa, Zé Celso transgride esse mesmo gozo pelas experiências da dor e da glória, mais cabíveis na forma de um oratório. Sagrado e lúbrico. No qual o hierofante e o hierodulo, a mater dolorosa e a prostituta sagrada se equivalem. Oratório que soa como uma espécie de A paixão segundo são Mateus à brasileira, tropicalista e antropofágica (“Ó Deus vos salve esta casa santa”) em que mestre Bach saúda o povo e deixa seu discípulo Villa-Lobos passar com seus nonetos, convocando também a soprano Isaurinha Garcia para cantar duas vezes a ária Sofre porque queres, de Pixinguinha e Benedito Lacerda, e convidando ainda as atrizes-cantoras Letícia Coura e Madalena Bernardes a conduzirem um vibrante coro em Gloria in excelsis Deo, do qual, para a excelsa glória da plateia, ambas também fazem parte.
9º mistério: “Atenção para as janelas no alto/ Atenção ao pisar o asfalto, o Mangue/ Atenção para o sangue sobre o chão”. Divino, maravilhoso, Caetano Veloso.
Em O santeiro do Mangue, o gongorismo de Oswald de Andrade, que sempre dividiu a crítica, atinge um grau de expressão genuína, escudado pela estrutura operística do poema. Como bom emulador do estilo do escritor modernista, Zé Celso concebeu um material dramatúrgico cujo foco é o caráter portentoso dos jogos de linguagem, que transitam entre uma dimensão estética e seu inegável endereçamento ideológico, valorizando o tempo todo a permeabilidade das soluções poéticas e musicais da palavra. O aspecto gráfico-visual do texto escrito – próximo da geometria dos olhos dos atuadores, mas longe da visão da plateia – é plenamente compensado no plano acústico da encenação por meio da vocalização criativa executada em cena. As cerca de três mil palavras do poema dramático original adquiriram uma nova e insuspeita plasticidade, espraiadas sob a forma dessa espécie de roman-fleuve (o qualificativo não é mera coincidência) construído com quase onze mil vocábulos que em seu fluxo contínuo e caudaloso não abrem mão do verbo poético, manejado à luz de uma arte de “essências e medulas”, como imputou James Blish à poesia de Ezra Pound.
10º mistério: “A vida de Marina era no Mangue/ No Mangue atrás da escola militar/ Cresceu nos arredores do colégio/ Catando caranguejo/ Vendendo no farol/ Chupando oficial por dez real”. Mangue e fogo, Rodrigo Campos.
Há que se falar também sobre o texto do programa, assinado por Zé Celso. “Aposta no milagre impossível dos Mistérios gozosos” é uma peça de penetrante palavrosidade, caleidoscópica e invulgar, herdeira da Ensiqlopedia de Qorpo-Santo, do português desterritorializado de Guimarães Rosa e dos manifestos oswaldianos. No âmbito do avançado estágio da sociedade informacional em que vivemos, a comunicação meramente fática é que orienta a produção dos discursos; não há compromisso algum com o exercício estético, a capacidade crítica ou o poder de invenção tão próprios da singular experiência que o uso gozoso de uma língua é capaz de proporcionar. A língua por meio da qual a população se expressa é uma forma estereotipada; a língua em que boa parte do jornalismo cultural é vazada é uma “instituição repetidora”; a língua utilizada quase sempre por aqueles que se arrogam o dever de pensar o Brasil é uma estrutura que raramente escapa à produção do senso comum. Daí a importância de Zé Celso dar plasticidade nesse texto aos chamados conteúdos da consciência por meio do uso de uma língua brasílica, rarefeita e utópica, cuja dinâmica é surpreender a palavra “gozando o direito de ser símbolo, de viver o gozo de ser ela mesma”, segundo a acepção de Jean-Paul Sartre.
Mistérios gloriosos
11º mistério: “O Mangue injeta, alimenta, abastece, recarrega as baterias da Veneza/ Esclerosada, destituída,/ depauperada, embrutecida!”. Cidade estuário, Fred Zero Quatro.
Em meio a um numeroso elenco, afinado pelo mesmo diapasão da energia criativa e da prontidão para o risco, há duplas de atuadores que merecem destaque, por encarnar personagens adversos, mas complementares. Glauber Amaral é o santeiro Olavo, cuja virilidade nordestina invoca toda uma tradição de interpretação executada com encorpada energia, fazendo ressoar de deuses e diabos a dragões da maldade e santos guerreiros. Marcelo Drummond é o Jesus das Comidas, lascivo, cínico, ladino. Ator cuja auto-ironia não é trejeito de ser, é jeito de atuar. Camila Mota é atriz discreta e camaleônica, a transitar, entre compungida e devassa, por vagidos e vaginas. Mariana de Moraes é a doce e lânguida Eduleia, a prostituta sagrada, cujos olhos vislumbram o intangível das coisas sem transcendência que seu corpo acaba por tocar. Joana Medeiros é a desabrida Maria Mágica e também a tragicômica Madame Bovary, de máscara facial faiscante, de olhar coruscante, de corpo em ebulição. Sérgio Siviero encarna o Comendador do Mangue. Trata-se de ator cujo corpo e voz apolíneos organicamente se deixam conduzir pelo dionisismo reinante.
12º mistério: “Jeje, tua boca do lixo,/ escarra o sangue/ De outra hemoptise no canal do Mangue”. Nação, João Bosco-Aldir Blanc-Paulo Emílio.
No âmbito da esfera musical, duas duplas de atuadoras-cantoras tecem com suas vozes privilegiadas atmosferas bastante especiais. Denise Assunção tem sorriso de menina e alma ancestral, vazada em voz potente, enervada, lancinante. Céllia Nascimento é a cantora de voz suave e doce, mas melancólica e meditativa, sempre disposta a entoar um samba pro infinito. O duo de Denise e Céllia em Flores horizontais é um dos pontos altos do ritual, nada deixando a dever à comovente interpretação de Elza Soares, já que ambas também cantam do cóccix até o pescoço. Letícia Coura e Madalena Bernardes têm destacados momentos de protagonismo vocal, mas também funcionam como uma espécie de baliza na geleia geral sonora que o Oficina anuncia.
13º mistério: “Pobres flores gonocócicas/ Que à noite despetalais/ As vossas pétalas tóxicas!” Balada do Mangue, Vinícius de Moraes.
O anjo-anfitrião de Roderick Himeros está lá, com os cascos fendidos do demônio. Também lá estão a prostituta paulista Lurdes de Sylvia Prado; a Madame La Garde de Vera Barreto Leite; o michê de Tony Reis; a Maroca de Lucas Andrade, o Navá de Luiz Felipe Lucas. A rigor, todos os demais atuadores não citados aqui também estão lá, com suas pessoalidades visíveis e seus corpos diluídos nas belas formações corais. O mesmo se pode dizer da Banda Oficina, cuja espessa massa de ritmos e sons remete à celebração e ao entusiasmo.
14º mistério: “Eu sei que o progresso/ o Mangue vai fechar/ Quem ornamentou/ Foi o Barão de Mauá”. Na beira do Mangue, Ary do Cavaco-Otacílio.
Cenário, iluminação, figurinos e adereços concorrem para transformar o já belo espaço do Oficina em uma belíssima catedral – pétrea, vítrea e arbórea – aberta ao mundanismo da rua e à feiura do viaduto, como convém a uma anti-igreja que está anunciando o Evangelho do século 21, em louvor a “Jesus de Nazaré e os tambores do candomblé”, conforme sentencia o profeta Jorge Mautner.
15º mistério: “Esse Mangue de longe que tu vê/ É apenas a imagem que é tu”. Corpo de lama, Chico Science-Jorge Du Peixe-Lúcio Maia.
Em recente conversa de bastidor, o entoador deste rosário ficou sabendo que, sempre que indagado por alguém a respeito de quem seria o mais importante diretor do teatro brasileiro, o cenógrafo e também encenador Gianni Ratto respondia de pronto: José Celso Martinez Corrêa. Quando eventualmente o interlocutor duvidava da escolha, Gianni alegava haver no Brasil pouquíssimos homens de teatro tão impulsionadores como ele. Impulso, movimento, arroubo, desejo. Há um grande mistério de explicar o Zé.
Mistérios gozósos
Onde: Teatro Oficina (Rua Jaceguai, 520, Bixiga, São Paulo).
Quando: até 25 de janeiro de 2016 (sextas e sábados, às 21h; domingos, às 19h).
Ingressos: R$ 40, inteira; R$ 20, meia e R$ 5, moradores do Bixiga.
Info: (11) 3106-2818.