O riso engenhoso do “seicento” e o espírito cômico de hoje
Guilherme Sant’Anna em “L’illustre Molière”, montagem da Cia. D’Alma
Welington Andrade
“A vida é uma comédia para o homem que pensa
e uma tragédia para o homem que sente.”
(Horace Walpole).
Em uma época na qual o humor presente na televisão, no cinema e no teatro quase sempre se volta à exploração ad nauseam da distinção social (para a TV, ser pobre é, literalmente, uma desgraça), da escatologia (roteiristas e diretores do cinema atual não conseguem superar aquela fase infantil em que não há controle dos esfíncteres) e do politicamente incorreto (humoristas de stand up posam de inteligentes quando fazem a defesa apaixonada do “direito ao preconceito”), é mais do que louvável a iniciativa da recém-criada Cia. D’Alma de estudar a obra de um dos maiores comediantes que o teatro já produziu: Molière (1622-1673), projeto que nasceu em consonância com o interesse principal do grupo que é a pesquisa sobre o universo da comédia. Quando a indústria cultural confunde entretenimento com desfaçatez e grosseria e quando uma mentalidade média começa a levantar a bandeira da “liberdade de expressão custe o que custar”, o universo artístico e cultural mais conseqüente deve tratar do chamado “espírito cômico”, com o qual o teatro especificamente mantém uma longa trajetória de intimidade.
Fundada em 2010 pela atriz, diretora e professora Sandra Corveloni e por outros ex-integrantes, tal como ela, do grupo TAPA – como Guilherme Santana e Paulo Marcos –, a Cia. D’Alma está ocupando o Teatro Aliança Francesa com o projeto 2 X Molière, que compreende a retomada do espetáculo L’illustre Molière (ganhador do Prêmio Shell 2012 nas categorias ator, figurino e música) e a estréia de Doente, baseado em O doente imaginário.
Filho de um tapeceiro e valete real, Jean-Baptiste Poquelin, vulgo Molière, fundou em 1643 com uma família de comediantes, les Béjarts, a companhia L’Illustre Théâtre (O Teatro Ilustre), uma trupe mambembe que excursionou durante quinze anos pelas províncias francesas sem obter muito sucesso. A partir de 1659, ele e seu grupo se instalam em Paris onde passam a viver sob a proteção de Luís XIV. Depois de cair nas graças do rei, em virtude de uma bem-sucedida apresentação da farsa Le dépit amoureux (A decepção amorosa), de autoria do próprio Molière, a trupe transforma-se em uma companhia de atores oficiais de Sua Majestade, levando Molière a conceber para o divertimento da corte ou para o público parisiense inúmeras criações em verso ou em prosa típicas da época, como comédias-balé, comédias pastorais, comédias heróicas e comédias de caráter. Homem de teatro com múltiplos talentos, Molière, além de ator e dramaturgo, respondia pela encenação das próprias peças, dirigindo com bastante precisão o jogo dos atores e explorando uma ampla gama de efeitos cômicos que iam da farsa mais desabrida à psicologia mais elaborada.
Como afirma John Gassner, em Mestres do teatro: “Molière não era um reformista do gênero militante; embora fosse intelectualmente superior à maioria dos homens de sua geração, era um verdadeiro filho da época. A indignação não se constituía numa prova de bom gosto quando o ideal predominante da sociedade francesa era o equilíbrio da razão. Ademais, uma demonstração de ira no teatro não estaria em consonância com os pontos de vista de um homem que fazia da irracionalidade e do excesso os objetivos, os alvos de sua inteligência. Nunca trovejava como [Ben] Johnson; simplesmente ria”.
A comédia italiana exerceu grande influência sobre o tipo de humor desenvolvido por Molière, fornecendo-lhe não somente o clima geral de farsa e bufonaria, como também algumas situações básicas para os enredos, além de certos nomes de personagens. Entretanto, o dramaturgo procurou insuflar uma marca de sofisticação literária na energia essencialmente física da comicidade italiana, desenvolvendo no palco tipos mais complexos do que as figuras cômicas da Commedia della’arte, que funcionavam mais como pretextos para a criação de situações engraçadas. A piada do clister no final de O doente imaginário, por exemplo, não trai sua origem nos roteiros da Commedia dell’arte, mas se diferencia pelo efeito mais elaborado que o humorista consegue extrair dela.
O projeto 2 X Molière da Cia. D’Alma propõe a nós, espectadores contemporâneos, um grande desafio: a fruição de um tipo de humor bastante diferente daquele com o qual estamos acostumados. Ambas as montagens partem em busca da natureza da comicidade do barroco francês, procurando criar uma atmosfera lúdica, marcada por delicadeza e contenção, na qual não cabem, naturalmente, excessos histriônicos. A direção de Sandra Corveloni estimula os efeitos próximos ao sorriso, em vez da gargalhada, investindo no “humor do cérebro”, como definia um especialista no espírito cômico, o escritor britânico George Meredith. A propensão para o jogo gracioso e o clima espirituoso é um pré-requisito para esse tipo de humor muito distante de nós, e não é de admirar que tanto a encenação de L’illustre Molière quanto a de Doente pareçam privar de alguns momentos fastidiosos quando a engenhosidade do discurso de Molière (muitas vezes vazada em brilhantes versos alexandrinos) soa obstruída pela tradução para o português. Não se trata, propriamente, de um problema técnico enfrentado pelos tradutores. A rigor, a questão está voltada à incapacidade de o sistema expressivo de uma determinada língua ser plenamente reconstruído em outro idioma. Todo aquele que admira os inúmeros espécimes dramatúrgicos que trabalham com uma enunciação elegantemente lúdica e comedida sabe que basta qualquer construção verbal concebida em arabesco em sua língua original ser pronunciada de forma inadequada na língua de chegada (não nos esqueçamos de que as línguas naturais são formas a serviço de conteúdos) para que muito pouco reste daquela engenhosidade pretendida. Raramente um estilo de humor cabriolante como esse é plenamente captado em outras línguas. Por isso, o espectador de 2 X Molière deve estar atento ao fato de que – para além da língua portuguesa, que desconhece certas ironias e armadilhas de linguagem – subjazem aos espetáculos um refinamento discursivo e uma sagaz vivacidade que a história do humor atribuiu aos mestres do riso de outrora. Para Molière, Oscar Wilde, Bernard Shaw e Machado de Assis, por exemplo, os tolos não conseguem sorrir; eles apenas gargalham.
Por isso, talvez, a adaptação do universo de Molière pela Cia. D’Alma tenha passado pela busca de um “sentimento” de época ou a respeito do próprio autor. As principais linhas de força de 2 X Molière residem na construção de uma atmosfera a um só tempo lírica e naif. Na encenação de Doente sobressai um clima onírico e lúdico, encarnado pelo menino-narrador, pela música, pela presença constante de todos os atores em cena. Na de L’illustre Molière, o jogo de metateatro, somado à também presença da música, costura tudo. Por meio dessa compreensão afetiva, as montagens desejam manter um sabor intelectual que credita à comédia seu caráter de penetrante sutileza, perseguindo a todo momento o tom equilibrado da forma cômica. A Cia. D’Alma foi buscar no autor de O burguês fidalgo, As Sabichonas e Don Juan, dentre outras obras-primas, a mistura ideal de sentimento e intelecto que produziu um espírito de comicidade cujas condições sociais estão há muito superadas. Quando tais condições mudaram, boa parte da crítica, inclusive, alegou que Molière deixara de ser divertido. Em 1822, dizia Stendhal, Tartufo despertava apenas dois risos na platéia.
A Cia. D’Alma compreendeu que o humor de Molière foi o produto de um longo processo de refinamento, atingido apenas depois de superada a arte do apelo fácil. E procura exercitar sua pesquisa sem medo dos riscos que compreende a empreitada. O sorriso a que o barroco francês aspirava representa em ambos os espetáculos algo a ser cercado, sem necessariamente ser atingido – um triunfo do amor ao teatro sobre o erro ou o fracasso. Tanto de Doente quanto de L’illustre Molière emana uma ternura instintiva para com o autor e sua vasta galeria de personagens. 2 X Molière parte em busca de um, hoje, ultrapassado humanismo – para o qual o riso desperta emoções e não sentimentalismo. Molière adquiriu seu lugar cativo na história do teatro, seja como dramaturgo, seja como ator e empresário, por uma engenhosa combinação de espírito, inteligência e envolvente criação de tipos/personagens. É bom saber que a Cia. D’Alma começou sua trajetória querendo mostrar ao publico brasileiro boa parte desse imprescindível legado.
L’illustre Molière
Onde: Teatro Eva Herz, Avenida Paulista, 2073 – (Conjunto Nacional – 1º
Piso) – Bela Vista
Quando: 18/01 até 23/02 (sábado às 21h e domingo às 19h)
Quanto: R$ 40
Info.: 3070 4059
Doente
Onde: Teatro Aliança Francesa – R. Gen. Jardim, 182 – Vila Buarque – São Paulo
Quando: até 29/11 – quintas e sextas, às 21h
Quanto: R$ 40
Info.: 3017-5699
welingtonandrade@revistacult.com.br