O retorno à vida comum

O retorno à vida comum

Entrevista com Oswaldo Porchat

Plínio Junqueira Smith

O legado de Oswaldo Porchat pode ser percebido pelas inúmeras referências a seu trabalho, não apenas no âmbito acadêmico do ceticismo, mas também nos estudos sobre Filosofia Antiga, em especial, a obra de Aristóteles. Nesta entrevista concedida à CULT, Porchat fala sobre sua adesão ao ceticismo empírico, sustenta a necessidade de uma filosofia aplicada ao dia-a-dia, analisando suas possibilidades de intervenção política, e avalia o ensino de Filosofia no Brasil, criticando a ênfase excessiva dada ao estruturalismo vinculado à história do pensamento filosófico, na formação dos cursos universitários nacionais: “Desconsiderar a História da Filosofia é um pecado capital na formação do estudante de Filosofia; não menos mortal é o pecado oposto, o da desconsideração da dimensão dialética da prática filosófica.”

CULT – Porchat, você sempre insistiu na importância da vida comum para a Filosofia. De que maneira você julga que a vida comum tem relevância filosófica?
OSWALDO PORCHAT –
A maioria, talvez, das filosofias pretendeu ir além da vida comum, no intuito de descobrir a essência, ou a natureza mesma das coisas, ou uma verdade transcendente; pretendeu dar-nos acesso, através de seus discursos, aos segredos da “Realidade”, do “Conhecimento”, da “História”, da “Linguagem”. E, com grande freqüência, desprezaram, ou desqualificaram, a vida comum, o homem comum, o saber comum, o discurso comum. Desde quando comecei a interessar-me por Filosofia, senti-me sempre visceralmente apegado a essas dimensões comuns do mundo de minha experiência, experimentei sempre uma resistência, por assim dizer instintiva, àquelas aventuras filosóficas extramundanas. Encontrei no ceticismo, no ceticismo pirrônico em particular, ao menos tal como o interpretei, o questionamento crítico da instauração filosófica de espaços extramundanos, ao lado da valorização tranqüila do mundo da experiência cotidiana, do espaço mundano em que vivemos nossa vida comum, um espaço filosoficamente neutro e pré-filosófico que a suspensão cética do juízo plenamente nos devolve. Cabe, por certo, uma investigação não-dogmática abrangente desse espaço. Se a quisermos dizer “filosófica”, isso será, então, a tarefa para uma filosofia cética positiva.

CULT – De outro lado, qual a relevância que a Filosofia tem, ou pode ter, para a vida comum? Qual o impacto que a Filosofia tem para a vida de quem filosofa?
O.P. –
Se adotamos uma postura pirrônica (ou neopirrônica, como é a minha), a vida comum certamente não fica insulada com relação à nossa investigação das questões filosóficas. Ao contrário, nossa suspensão cética de juízo atinge toda a nossa vivência da vida comum, já que passamos a viver adoxástos, como dizia Sexto Empírico, isto é, sem crenças dogmáticas. Se ainda usarmos – como é natural que continuemos a usar – termos como “realidade”, “verdade”, “conhecimento” em nosso discurso cotidiano, nós os usaremos catacréstica e frouxamente, assumindo a vagueza própria a um uso filosoficamente não-comprometido, sem a pretensão de poder defini-los ao modo dos essencialismos filosóficos. E, porque não mais ansiamos por um saber pretensamente transcendente, porque a vida comum é tudo que temos e que valorizamos, podemos “filosoficamente” permitir-nos vivê-la integralmente, “construindo-nos” dentro dela, como indivíduos e como humanidade.

CULT – Seus textos, embora claros e acessíveis mesmo a um leitor sem formação filosófica, escondem muita reflexão e erudição. Como é o processo de composição deles? Como você os redige?
O.P. –
Redijo-os bem devagar, sem pressa nenhuma. Vou anotando no computador, quase diariamente, idéias que me são sugeridas por leituras, conversas, ou que simplesmente me ocorrem à mente. Vou distribuindo-as em arquivos diferentes, conforme os temas em que elas se podem enquadrar. Minhas preocupações com tais ou quais problemas naturalmente me levam a anotar mais sobre eles. Pouco a pouco se vai assim constituindo um material mais ou menos rico para possíveis artigos, títulos para eles se vão também sugerindo. Costumo trabalhar em três ou quatro possíveis artigos, por assim dizer ao mesmo tempo. É um processo que leva meses, senão anos. Quando me parece que tenho algo consistente e mais articulado sobre uma certa temática, considero a possibilidade de publicar esse trabalho sob a forma de um artigo, eventualmente o publico.

CULT – Embora você já tenha defendido a concepção estruturalista de que a tarefa do filósofo se resumiria à de um historiador da Filosofia, você acabou mudando de idéia e afirmando que se deve filosofar. O que o levou a rever suas posições?
O.P. –
Não é propriamente que o estruturalismo em História da Filosofia defenda a idéia de que a tarefa do filósofo se resume à de um historiador da Filosofia. Mas o que entendo é que ele acaba, de fato, por sugerir essa idéia, na medida em que desconsidera, em última análise, a noção de “verdade material” de um sistema filosófico, privilegiando a noção de “estrutura”. Se se é estruturalista stricto sensu, produzir um sistema filosófico não mais seria do que criar uma nova estrutura, a figurar ao lado das outras que a História da Filosofia nos legou, tão-somente como um membro a mais de um imaginário pleroma de sistemas filosóficos. Nesse sentido, eu disse uma vez que o estruturalismo histórico-filosófico pode ter um efeito castrador sobre a criatividade filosófica. Abandonei o estruturalismo – não enquanto método de leitura das obras filosóficas (continuo a defendê-lo, como uma primeira e necessária abordagem das doutrinas), mas como uma meta-filosofia –, quando precisamente me dei conta de que ele instaurava uma meta-filosofia particular; nesse sentido consumava uma opção filosófica particular como outra qualquer, uma opção que eu não vi como justificar e que me pareceu, também ela, como evidentemente dogmática, no sentido cético deste termo. E o problema sobre qual opção filosófica fazer continuava, assim, a desafiar-me. Foi o pirronismo que me fez descobrir que esse problema estava mal colocado, me fez descobrir que filosofar não é necessariamente o mesmo que optar filosoficamente.

CULT – Alguns entendem, a partir de sua defesa da necessidade de filosofar, que a tarefa filosófica por excelência e a própria formação devem privilegiar a produção de teorias filosóficas, e não a mera historiografia das idéias. Como você concebe hoje a investigação da História da Filosofia e a formação de um filósofo?
O.P. –
É um lugar comum – e não há por que rejeitá-lo – dizer que a Filosofia se alimenta continuamente de sua história e que toda Filosofia não tem como não posicionar-se com relação aos problemas e soluções propostas por filosofias anteriores. Concordemos, pois, que, seja para compreender uma filosofia, seja simplesmente para filosofar, um conhecimento razoável da História da Filosofia é necessário e absolutamente indispensável. Um bom curso de Filosofia deve, por isso mesmo, reservar um lugar importante para o estudo das filosofias do passado e do presente, formando os alunos na prática, por certo difícil e laboriosa, de um método adequado e rigoroso de leitura dos textos filosóficos (e aqui quero repetir que a prática do método estruturalista de leitura das doutrinas me parece insubstituível; estou repetindo isso porque alguns parecem ter erroneamente entendido que minha crítica ao estruturalismo incidia também sobre o método estruturalista de leitura). Mas tenho, nos últimos anos, criticado com alguma ênfase uma concepção unilateral dos cursos de Filosofia que, em muitas e boas instituições universitárias do país, substituiu pura e simplesmente o ensino da Filosofia pelo da História da Filosofia. Formar um estudante de Filosofia tem obrigatoriamente de ser, penso eu, prepará-lo para discutir problemas filosóficos, exercitá-lo na prática dessas discussões, introduzi-lo na arte da argumentação filosófica, levá-lo ao debate sobre problemas filosóficos discutidos pelas filosofias contemporâneas. É o que faziam as escolas gregas da filosofia antiga, também as escolas medievais. É o que fazem hoje muitos cursos de Filosofia no mundo anglo-saxão. Desconsiderar a História da Filosofia é um pecado capital na formação do estudante de Filosofia; não menos mortal é o pecado oposto, o da desconsideração da dimensão dialética da prática filosófica.

CULT – Como você avalia o ensino de Filosofia no Brasil? O que poderia ser feito para melhorá-lo?
O.P. –
Inegavelmente o panorama filosófico brasileiro modificou-se muito nas últimas décadas e modificou-se para melhor. Há um grande interesse por Filosofia em todo o país e é elevado o número de jovens que buscam os cursos de Filosofia. O número de mestrados e doutorados em Filosofia aumentou substancialmente. Isso tem repercussão direta no ensino, pois os cursos, tanto públicos como privados, passaram a contratar, em número muito maior que antes, mestres e doutores em Filosofia, cuja formação assegura a melhoria do ensino. Não creio que haja receitas para melhorar o ensino. O aprimoramento dos cursos resultará naturalmente da elevação do nível dos professores e da contratação de um pessoal docente mais qualificado.

CULT – O professor Bento Prado Jr. dizia que o texto que mais prazer lhe tinha dado ao escrever foi o texto com o qual polemizou com você. Como você vê a comunicação entre os filósofos? Como andam, no Brasil, o debate filosófico e a discussão das idéias filosóficas?
O.P. –
O texto de Bento Prado, “Por que rir da Filosofia?”, no qual polemizou com meu “Prefácio a uma Filosofia”, foi certamente, além de extremamente elegante, um de seus textos mais profundos. Em verdade, um exemplo primoroso do que deve ser uma polêmica filosófica. Em nosso país, somente agora começam a ter lugar discussões filosóficas de bom nível. Infelizmente, não temos ainda o hábito do embate sério e aprofundado de posições filosóficas. E isso talvez se deva à ênfase excessiva que os cursos dão à História da Filosofia. Os próprios professores de Filosofia de nossas universidades se contentam, em sua maioria, com ser historiadores do pensamento filosófico – muitos produziram trabalhos notáveis nesse campo –, mas não se comprometem filosoficamente, não defendem posições filosóficas próprias, não polemizam com seus colegas. A perpetuação desse estado de coisas seria mortal para a Filosofia no Brasil. Mas, como disse, isso está começando a mudar. Aqui e ali, alguns debates filosóficos importantes estão ocorrendo e vêm sendo publicados. Acredito que essa nova tendência vai manter-se.

CULT – Como e por que você perdeu a fé? Foi um processo doloroso ou foi uma libertação?
O.P. –
Foi uma libertação dolorosa. Conservei minha fé religiosa enquanto julguei poder ­conciliá-la com as exigências da racionalidade e do espírito crítico, próprias a quem se engaja na investigação de problemas filosóficos. Comecei e continuei a questionar minhas convicções religiosas à medida que aquela conciliação se foi revelando cada vez mais difícil. Até o momento em que me pareceu que ela não mais era possível.

CULT – Normalmente, se diz que o ceticismo tem implicações conservadoras para a política. Qual a sua opinião a esse respeito?
O.P. –
A idéia de que o cético histórico tem uma posição conservadora em política advém provavelmente de uma certa leitura de passagens de Sexto Empírico nas quais o filósofo explica como o cético, seguindo a vida comum, vive segundo as leis e costumes de seu país. Sexto não desenvolve uma reflexão mais demorada sobre essa questão e, por isso mesmo, cabe aos pirrônicos de hoje (ou neopirrônicos) a elaboração de uma tal reflexão. Já há alguns estudos e investigações nessa direção, que precisam ser continuados. A problemática da postura ético-política do cético é certamente complexa. Mas não esqueçamos que uma passagem conhecida, também de Sexto Empírico, nos apresenta uma situação em que um cético é ameaçado de tortura ou morte por um tirano, se não consentir em praticar uma ação vergonhosa; Sexto diz que o cético eventualmente preferirá não dobrar-se à injunção do tirano, escolhendo a tortura e a morte e agindo em conformidade com as leis ancestrais e os costumes. Dir-se-ia acaso que se trata de uma postura “conservadora”?

CULT – De que maneira a Filosofia se insere na atual situação sócio-política do Brasil? Que tipo de intervenção cabe ao filósofo e, mais especificamente, ao cético fazer?
O.P. –
Buscamos na Filosofia uma compreensão, a mais totalizadora e abrangente possível, do mundo de nossa experiência. Mas, sinceramente, não me parece que os filósofos tenham mais competência que os outros intelectuais para intervir nos contextos sócio-políticos de seus paí­ses. As reflexões de caráter ético-político a que eventualmente se dediquem – e a reflexão filosófica me parece naturalmente estender-se a todas as dimensões do humano, portanto necessariamente à esfera ético-política – serão de caráter amplo e geral, dizendo respeito antes à comunidade dos seres humanos que ao contexto particular do país em que o filósofo está inserido. Neste, ele se situa como qualquer outro cidadão, é levado a assumir, como qualquer outro, as obrigações da cidadania. O cético, porque privilegia a vida comum, deve por isso mesmo ter, mais talvez do que qualquer outro filósofo, uma consciência plena de sua necessária integração na vida da comunidade.

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