O racismo por trás da tragédia

O racismo por trás da tragédia
Girolata Triptych, Joan Mitchell, 1964 (Foto: Reprodução/Wikiarte)

 

Até os anos 1970, em certas áreas das Humanidades como ciências sociais e história, intelectuais com inclinação à esquerda empregavam o conceito de classe social como a variável explicativa predileta para todos os fatos sociais. Não se podia discutir um fenômeno cultural, uma questão de estética ou linguagem, um fato religioso, em suma, nada, se questões de classe (desigualdade social, pobreza, concentração de poder e modo de produção) não estivessem dentre as hipóteses dominantes. Acho que foi por volta dos anos 1970 que reivindicações de outras chaves-de-leitura da sociedade conseguiram enfim, ganhar cidadania em certos ambientes progressistas. A psicanálise pôde assumir o desejo, a semiótica trouxe os processos de significação, a antropologia ofereceu as mentalidades e os imaginários, o estruturalismo encontrou sistemas universais de organização do mundo, os estudos culturais trouxeram o gênero e a raça, de modo que a classe, pouco a pouco, ficou contida nos limites do marxismo como forma de explicar os fenômenos do mundo. 

Chegamos ao fim de 2020 e temos outra hipótese dessas que abrem todas as portas e definem qualquer fato do mundo para os intelectuais de esquerda: a raça. Para muitos, não se trata mais de uma variável a ser considerada na interpretação dos fatos e cujo impacto sobre a realidade deve ser medido antes de ser apontado como a causa principal de um fenômeno qualquer. Em ciência, uma hipótese referente a uma variável é formulada para ser testada com base em dados e tratada estatisticamente na relação com outras hipóteses e variáveis que com ela devem competir. Se sustento a hipótese de que o fenômeno X se explica com base na variável (a), eu preciso encontrar um modo, replicável por outros, de testar essa hipótese, inclusive fazendo-a competir lealmente com hipóteses que defendam as variáveis (b), (c) e (d). 

Por outro lado, posso também decidir a priori, isto é, sem considerar fatos, medidas e hipóteses concorrentes, que a (a) explica tudo, mas aí não estarei mais fazendo ciência e sim ideologia. 

Está acontecendo hoje com a raça o que já aconteceu com a classe. De forma que se, em certos ambientes da esfera pública, você pedir testes da hipótese da determinante racial do fenômeno X ou Y, se pedir evidências baseadas em dados, se pedir argumentos que também considerem hipóteses alternativas e até mesmo se você suspender seu juízo acerca da hipótese apresentada até que ela seja demonstrada, o mais provável é que você seja acusado não de ceticismo ou prudência científica, mas de racista mesmo. “Como assim você não está vendo o que todo mundo sabe que só os racistas não veem?” é a afirmação que demonstra cabalmente que não, não se trata mais de ciência, mas de ideologia. Não é uma hipótese científica, uma afirmação provisória à espera de testes, é um dogma, uma tese definitiva e que não apenas não será empiricamente testada, mas também repele como moralmente inaceitável a reivindicação de testes e provas. 

Duas meninas foram mortas, pela mesma bala, ao brincar no portão de suas casas numa rua sem pavimentação em uma favela da Baixada Fluminense. Até os anos 1970 não poderia haver dúvida alguma de que o fato de as meninas serem pobres e vulneráveis, numa parte desassistida da cidade, seria a melhor hipótese para esta morte. E para as outras 12 causadas pela polícia em favelas do Rio apenas neste ano de 2020. 

Depois dessa fase, seria muito provável que se mostrasse que a hipótese de classe poderia ser melhorada se considerássemos como há também aqui uma mentalidade policial sobre quem são os pobres, quanto eles valem, como podem ser tratados, e como a polícia pode se portar quando entram nas áreas onde eles moram. Uma mentalidade que se materializa em uma atitude, a da “autoridade policial” em face de quem é socialmente subjugado, desimportante e descartável. Por isso a polícia não entra do mesmo jeito na favela e no condomínio de luxo, não aborda do mesmo jeito o desembargador de Santos caminhando no calçadão e o garoto favelado voltando da escola, não se porta do mesmo modo ante a baixaria na porta do Rubaiyat entre muitos ricos e muito mais ricos e a confusão no Pancadão de Paraisópolis entre meninos da comunidade. 

Já em 2020, parece não haver um segundo de dúvida sequer: foi racismo; faz parte de um projeto de extermínio dos jovens negros; a carne mais barata é a negra; a bala da polícia sempre encontra os nossos corpos negros.

 

Ok, não há dúvida quanto
ao fato de que todas as
crianças mortas eram
mestiças, algumas pretas.
Mas o racismo é efetivamente
a única e a melhor hipótese
para explicar o que aconteceu?

 

 

Para sustentar que “o racismo está por trás da tragédia” seria imprescindível ter mais alguma coisa a sustentar o argumento, para além do sentimento de que o racismo tem que ser o principal fator na equação. Temos o fato de que nenhuma das crianças eram brancas, mas há mais certamente mais coisas em comum entre as vítimas do que a cor das suas peles, não? Não moravam, pois, todas em favelas? Não eram todas crianças de famílias muito pobres? Por que um dos fatores universais explica tudo e as outras duas variáveis são descartadas? E, afinal, as crianças foram mortas por racismo de quem as matou ou porque compartilhavam a sina de serem pobres e faveladas? 

Ah, sim, claro, tem o racismo estrutural. Mesmo que a mão que disparou o tiro não seja efetivamente de um policial racista (uma hipótese de trabalho), há o racismo que não é circunstancial, mas uma condição da existência em uma sociedade racista. Naturalmente, temos evidência suficientes de que há estruturas, sistemas e instituições sociais operando, mesmo sem que o faça mediante políticas explícitas e assumidas, para discriminar racialmente os cidadãos, de modo facilitar a vida de uns (dando-lhes privilégios raciais) e infernizar a vida de outros. Mas há pelo menos dois modos de se lidar com a noção de racismo estrutural. 

O primeiro assume que é preciso considerá-la como variável explicativa em muitos fenômenos sociais e que, portanto, ela é sempre uma hipótese a ser considerada (quer dizer, a ser formulada e testada) em fatos em que negros e outros grupos étnicos ou raciais minoritários estejam envolvidos. O segundo diz que não se trata de uma hipótese, mas de uma lei da natureza aplicada à sociedade, de uma descrição do modo como funciona o mundo, que sempre valeu e sempre valerá, independentemente do fato de que os homens a conheçam e reconheçam ou não. Entretanto, como o pensamento científico não admite leis naturais, resta que aqui entramos no terreno dogmático da fé ou da ideologia. 

Como a hipótese do racismo estrutural poderia socorrer a ideia de que o racismo explica a morte das criancinhas no Rio de Janeiro? Ora, a pergunta principal deveria ser se as noções de racismo sistêmico, racismo institucional ou de racismo estrutural foram inventadas para explicar absolutamente todos os fatos envolvendo negros e mestiços. Se a resposta for afirmativa, não estaremos então falando mais de demonstração, prova, dados e fatos, e sim de uma crença que não pode ser testada, desafiada com evidência e pronta para enfrentar a concorrência.

Por outro lado, neste país, pobres são descartáveis. Crianças, jovens, velhos, homens, mulheres, honestos, mulheres, negros, mestiços, indígenas e até brancos, pois todo pobre é preto. Na hora em que a polícia – composta em toda parte por homens pobres e, em muitos lugares, por homens pretos e mestiços – entra na Pobrelândia para matar ou morrer, eu posso ser até azul, posto que o fato é que sou pobre e, portanto, ninguém dará por minha falta. Se alguma seleção fosse feita, não se matariam menininhas brincando na porta de casa, pretas, mulatas ou brancas que fossem. 

Acontece que não há crianças na Pobrelândia, só pobres, logo, descartáveis. Pobres não têm amigos influentes na Corregedoria, não têm recursos que provêm da escolarização ou da conta bancária para recorrer às ouvidorias, ao Ministério Público, aos jornais; pobres não têm números de secretários de Segurança Pública, de deputados ou de governadores em suas listas de contato do WhatsApp. Pobres rosnam, uivam, mas não mordem. Quem morde mora nos condomínios da Barra e nos apartamentos do Leblon, mas ai do policial que se atreva a alçar a voz ou levantar os olhos contra eles.  

Pobres podem ser mortos pelo crime, pelo descaso ou pela polícia nas prisões, nos portões ou dentro das suas casas, nas igrejas das “comunidades”, dentro de colégios de pobres ou no confronto com a polícia, na fila de espera para uma consulta ou em enfermarias lotadas. Nós temos pobres demais, um monte a menos não parece fazer falta. 

Eu bem sei que pretos e pobres se confundem nesse Brasil de segregações. A mente lúcida de Caetano já cantou de maneira impecável “a fila de soldados, quase todos pretos, dando porrada na nuca de malandros pretos, de ladrões mulatos e outros quase brancos, tratados como pretos, só para mostrar aos quase pretos (e são quase todos pretos) como é que pretos, pobres e mulatos e quase brancos, quase pretos de tão pobres, são tratados”. E conclui lindamente a amarga elegia de uma Bahia, Brasil, Haiti: “E pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos”. 

Isso, contudo, não nos dá o direito de esconder os pobres nos pretos nem os pretos nos pobres. De usar a denúncia da brutal discriminação racial, em que o Brasil é pródigo, para ocultar a medonha discriminação de classe social, em que somos igualmente bons. 

A impressão que tenho é que o progressista brasileiro acha que nos acostumamos tanto às precárias condições de vida de uma parte considerável do país, que se não acrescentarmos camadas de misérias à pobreza e à miséria de classe não conseguiremos mais chamar a atenção dos outros para o nosso gravíssimo problema social. Estão todos dessensibilizados de tanto que normalizaram a miséria e a pobreza. Como há uma sensibilidade nova e internacionalizada (não subestimem este último fator) para as opressões raciais, resolveram colocar a camada da tragédia racial sobre a nossa tragédia de classe para aguçá-la. 

É como se a ideia de um cidadão morto a pancadas pelo segurança do supermercado já não nos fizesse saltar da cadeira e rugir de indignação pelo simples fato de estar ali um ser humano arrebentado na porrada até morrer. Não, é preciso acrescentar à sua humanidade e à sua pobreza o rótulo “negro” para acionar o gatilho da revolta. Ou é como se já não fosse suficientemente repugnante que duas crianças (1) pobres (2) fossem mortas pela mesma bala de fuzil no portão de suas casas, se não acrescentarmos a esta tragédia a seguinte nota: eram negras (3). O Brasil presumido nesta estratégia retórica é um monstro de insensibilidade com a nossa miséria cotidiana. 

Não tenho certeza da eficiência da tática. Primeiro porque isso dá ampla margem para uma operação que a extrema-direita vem realizando com eficácia: indicar que a hipótese racial, em cada caso, está sendo usada ideologicamente e não cientificamente. Ao partido do “tudo é racismo” se contrapõe o partido do “nada é racismo” contrastando a hipérbole do primeiro com a minimização do segundo. Afinal, ninguém gosta mesmo de fatos, é só questão de opinião. 

Segundo, isso gera uma convicção de que quando progressistas indicam racismo o fazem apenas hiperbolicamente, isto é, por meio de um exagero retórico que não encontra amparo em fatos. Surge, como contraposição direta, o discurso “todo mundo hoje em dia vê racismo em tudo” (e dá-lhe exemplo de uma hipérbole desmoralizante), que vira um álibi preventivo justamente para racistas e conservadores. É como a história do menino que vigiava rebanhos e gritava “lá vem o lobo” a toda hora mesmo quando o lobo não vinha e que não encontrou mais palavras para alarmar os outros quando o lobo realmente veio. 

Terceiro porque, como já disse, ideologias não fazem boa ciência e transformar uma variável explicativa em tese universal deve ser ótimo para tretas e lacrações, mas é péssimo para uma interpretação consequente de fatos.

Quarto, não vejo ganhos em subsumir o conceito de classe no conceito de raça. Nem vice-versa. Cada um dos conceitos tem o seu âmbito próprio e explica um número determinado de fenômenos. E é óbvio que em um país com tanta pobreza e desigualdade de renda não faz sentido imaginar que a miséria do racismo seja a nossa única nem a principal miséria.  

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)


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