O que é um hipócrita?

O que é um hipócrita?
(Ilustração: Charge de Angelo Agostino)

 

 

Não é monstruoso que esse ator aí,
Por uma fábula, uma paixão fingida,
Possa forçar a alma a sentir o que ele quer,
De tal forma que seu rosto empalidece,
Tem lágrimas nos olhos, angústia no semblante,
A voz trêmula, e toda sua aparência
Se ajusta ao que ele pretende?

William Shakespeare, Hamlet

 

— Hipócrita leitor, meu igual, meu irmão!

Charles Baudelaire, As flores do mal

 

 

Para responder a essa pergunta, digamos de saída que ela mesma é ardilosa, algo traiçoeira, em certo sentido enganadora. De certa forma, trata-se de uma pergunta hipócrita, sim. Que seja: estamos entre iguais. E não apenas – como veremos – porque partilhamos correntemente esse significado, já bem cristalizado, que de imediato condena (moralmente) o hipócrita ao limite do dissimulado, do falso, do fingido; que aponta o hipócrita como aquele que, de acordo com esse senso comum, leva ao erro, por insinuação ou outra astúcia, o que muitas vezes passa por uma forma de tramoia, isto é, pelo tramar de um ardil, de uma cilada ou armadilha.

Estamos entre iguais, sim, mas sobretudo, a meu ver, porque o hipócrita – e por extensão o seu fazer, seu trabalho: a hipocrisia – nos remete a um campo semântico mais complexo e sem dúvida mais rico, que encontra sua origem, por assim dizer, coincidindo com o que, para muitos, apresenta-se como a própria origem da civilização ocidental, sua cultura e sua barbárie. Pois é no contexto da invenção da tragédia grega, que por sua vez é inseparável dos marcos inaugurais da democracia, que podemos situar o coetâneo aparecimento dessa figura absolutamente fundamental para a dinâmica das artes e da política na pólis. É do fundo desse abismo da memória estética e política do Ocidente que o hipócrita interroga, ou melhor, responde à história da modernidade e, ainda mais intensamente, hoje, ao nosso mundo contemporâneo.

Os dicionários etimológicos nos permitem armar, mais uma vez, a sua possível história. Hipócrita vem de hypokritès, termo que mobiliza uma gama de sentidos realmente notável (rapsodo, profeta, adivinho, declamador, explanador etc.). De qualquer modo, parece ser fundamental o seguinte: o hypokritès é antes de tudo o intérprete, o ator, no sentido teatral do termo; e principalmente é aquele ator que, no drama trágico, atravessado por um entusiasmo de natureza dionisíaca, desempenha o papel de responder, em excesso – ou seja, como herói –, à estrita medida humana imposta pelo ditado apolíneo.

É assim, em suma, aquele que atua: colocado como problema, destacado com sua máscara diante do coro e da plateia, apresenta ao público o homem trágico por excelência; por meio de sua persona (a máscara em si) ressoa amplificada a voz dessa figura que, ao agir, confronta a humanidade como um ser de confusão, de caos, um ser sem essência, enigma que é sempre reposto, pois não tem resposta. Como personagem, está cindido entre o mundo dos homens e o mundo dos deuses; assim como o teatro mesmo se mostra dividido, no contexto das festividades que eram celebradas na pólis, entre o antigo mundo mítico que se eclipsa e a nova ordem democrática que se estabelece, com o advento do direito, na passagem do século 6 ao século 5 a.C.

Nos marcos das Grandes Dionísias – festividades urbanas que, no fim de março, começo da primavera, prestavam homenagem a Dioniso – aconteciam as apresentações das peças, que concorriam ao longo de três dias. O hipócrita se liga, desse modo, ao culto de um deus disruptivo, que tensiona, no coração da pólis, esse mundo da ordem, da moderação e do contrato que é elaborado com o novo pensamento jurídico e social: afinal, como sabemos, Dioniso é, precisamente, o deus-máscara, representante do estranho, do “estrangeiro”, do “outro”; é o deus da dissimulação e da sedução, da epifania, da embriaguez feliz e libertadora, que se manifesta, em suma, por meio da metamorfose, do disfarce que abre a condição humana a uma existência carregada de pathos, não pré-determinada, sempre inventiva.

Quanto a isso, as palavras de Jean-Pierre Vernant e Françoise Frontisi-Ducroux são precisas: “O que Dioniso realiza, e aquilo que a máscara provoca também, quando o ator a coloca, é, através do que foi tornado presente, a incursão, no centro da vida pública, de uma dimensão da existência totalmente estranha ao universo cotidiano. A invenção do teatro, do gênero literário que encena o fictício como se fosse real, só podia intervir no quadro do culto de Dioniso, deus das ilusões, do tumulto e da confusão incessante entre a realidade e as aparências, a verdade e a ficção”.

 

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Diz-se que com Shakespeare é colocado em cena o teatro do mundo: o mundo histórico como teatro, abandonado pelos astros. Em outras palavras, a hipocrisia não se restringe aos palcos, e cada vez mais o mascaramento parece ser entendido como elemento indissociável do jogo dos efeitos sensíveis, jogo das possibilidades mundanas do ser humano, da vida em comum e da política. Seja como for, o hipócrita não simplesmente é, de acordo, digamos, com uma natureza ou substância: ausente da verdade de um “si mesmo” dada a priori, mostra-se, ao contrário, como o resultado contingente de uma construção do sujeito; como um fazer-se que é fruto de uma natureza de segunda ordem, já que dependente, para esse vir a ser, de uma série de artifícios, de técnicas, de ensaios, de gestos, palavras e hábitos, ou seja, de formas cosméticas que insistentemente desafiam o ordenamento silencioso do cosmos.

A modernidade poderia ser pensada como essa situação marcada, no curso da história, pelo aparecimento de uma hipocrisia generalizada. Trata-se de uma espécie de forma de vida que deixa exposta uma condição ontológica radical: como hipócritas, somos atores de nossa própria existência; nossa verdade é assim a verdade do mascaramento – eis, em outros termos, o fundamento ausente que nos estrutura, individual e coletivamente. A partir daí, as infinitas possibilidades e a mesma medida de riscos são a contraparte dos ostensivos dispositivos contratuais, de normalização, de disciplinarização, de imunização, de discriminação (etc.) que criamos.

Disso decorre, também, que as sociedades burguesas modernas, nascidas sob esse ambivalente signo do Ocidente, estejam repletas de sujeitos cada vez mais urbanos e técnicos e, em igual medida, tomadas de mal-estar. Fartos dos suplementos mais avançados, suplementos que nos assemelham – escreveu Freud – a deuses protéticos, nos tornamos sujeitos quase ilimitados em potência, mas desamparados diante da tragédia da cultura que nós mesmos encenamos.

Baudelaire talvez tenha sido, nesse sentido, o maior dos hipócritas modernos, numa época que expressou seu fanatismo pelas máscaras. “Baudelaire não gostou, como Gautier, da sua própria época, nem, como Leconte de L’Isle, conseguiu iludir-se a seu respeito”, escreveu Benjamin. “Como não tinha convicções próprias, assumiu constantemente novas máscaras. Flâneur, apache, dândi e trapeiro eram para ele outros tantos papéis. Pois o herói moderno não é herói – representa papéis de herói. A modernidade heroica revela-se como drama trágico em que o papel do herói está disponível.”

Baudelaire fez seus elogios aos paraísos artificiais, à maquilagem da mulher, às aparências. E seus pouco comentados projetos de teatro reforçam, a meu ver, o que venho tentando propor aqui. Sobre eles, Roland Barthes anotou num texto de 1954: para Baudelaire, “o corpo do ator é artificial”; “o ator traz em si a própria sobreprecisão de um mundo excessivo, como o do haxixe, onde nada é inventado, mas onde tudo existe numa intensidade multiplicada”. Trata-se de uma “teatralidade perturbante”, por certo, que “põe o ator no centro do prodígio teatral e que constitui o teatro como lugar de uma ultra-encarnação, em que o corpo é duplo, simultaneamente corpo vivo, vindo de uma natureza trivial, e corpo enfático, solene, gelado pela sua função de objeto artificial”.

É verdade que os projetos teatrais de Baudelaire não são mais que isso, projetos. Para Barthes, essa teatralidade intensa e artificiosa existe neles “apenas em estado de vestígio”. O que só reforça o argumento de que a condição moderna é eminentemente hipócrita. “Tudo se passa como se Baudelaire tivesse posto o seu teatro por toda a parte, exceto precisamente nos seus projetos de teatro”. Ou seja, afastada do teatro, a teatralidade de Baudelaire se estende pelo resto de sua obra, essa incontornável máscara da modernidade capitalista.

 

***

 

Nós, hipócritas contemporâneos, mobilizadores de uma miríade de papéis, os mais diversificados e singulares, temos à nossa frente uma condição quem sabe ainda mais complexa. Como diz Alain Badiou, “o semblante contemporâneo do real capitalista é a democracia. É a sua máscara”. Emprestando o título de Molière, Badiou afirma que “o capitalismo é esse mundo que está sempre representando uma peça cujo título é A democracia imaginária”. Enquanto a peça dura, atuamos no teatro do mundo com a representação da suposta igualdade coletiva; mas, sob essa máscara, a desigualdade e a pilhagem global continuam, e o fascismo avança.

No entanto, Dioniso é – insisto nisso – um deus disruptivo. Nesse sentido, mais do que a pluralidade dos papéis e a qualidade da representação, importa, em cada situação, a performance que atravessa a persona: é a força da atuação que trabalha a forma, desestabilizando-a, fazendo-a ressoar. Badiou propõe que é preciso afirmar o ponto do impossível do capitalismo, que é a mais absoluta igualdade. Vale dizer, é preciso encontrar meios de agir, de atuar sobre o real, reivindicando, sim, as máscaras (técnicas, artifícios, signos, consignas, formas de ser etc.) que nos cabem, se no centro da vida pública de fato quisermos criar uma dimensão da existência totalmente estranha ao atual universo cotidiano.

 

Artur de Vargas Giorgi é professor de Teoria Literária na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)


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