O que Angela Davis me ensinou como mulher e pesquisadora branca?

O que Angela Davis me ensinou como mulher e pesquisadora branca?
Angela Davis: filósofa expõe o funcionamento das prisões para mulheres na história dos EUA (Foto: Reprodução)

 

Como a população carcerária feminina nas prisões agora consiste em uma maioria de mulheres de cor, os ecos históricos da escravidão, da colonização e do genocídio não devem passar despercebidos nessas imagens de mulheres acorrentadas e algemadas
Angela Davis

O título do texto de hoje é ruim. Sou péssima com títulos. Não caberia em um texto quinzenal. O que Angela Davis me ensinou não caberia em uma tese nem em uma biografia. Autoras que ensinam como funcionam as relações de poder exatamente ali onde elas produzem seus efeitos – como é o caso da prisão – não cabem em lugar nenhum, são infinitas.

Mas há algo nas minhas andanças em companhia de Angela Davis que eu gostaria, ao menos, de expor a outras mulheres brancas. Penso que, talvez, elas encontrem dificuldades semelhantes às minhas na análise do sistema carcerário e da sociedade de maneira mais ampla. Dito isto, imagino que pessoas negras devam achar o texto de hoje chatíssimo. Adianto minhas desculpas, mas acredito que é preciso escrever sobre o assunto.

Nós, pessoas brancas, somos criadas para não enxergar como as relações de poder funcionam em uma sociedade racista. Ou ainda, somos criadas para não nos enxergar nestas relações. Um bom pedaço do que, na nossa vida, atribuímos ao mérito, à sorte ou a Deus, possivelmente atende pelo nome de privilégios da branquitude. É por isso que hoje resolvi falar sobre operações do intelecto, formas de pensar e a nossa tendência à universalização da condição branca. Escrevo hoje especialmente pensando nas mulheres brancas que atuam no campo penal.

Se vocês pegarem o livro Estarão as prisões obsoletas?, vão encontrar um capítulo chamado “Como o gênero estrutura o sistema prisional”, onde Angela Davis expõe a lógica de funcionamento das prisões para mulheres em diferentes momentos da história estadunidense. Ela fala, por exemplo, das prisões de meados do século 20, onde mulheres eram colocadas para trabalhar em atividades domésticas: cozinhar, limpar, costurar. Se a autora tivesse parado por aí, eu teria concluído, do alto da minha juventude (sim, faz tempo…) que se tratava de uma forma de disciplinar os corpos das mulheres para se tornarem donas de casa. Minha conclusão não estaria totalmente errada, mas ela seria parcial e, por isso, racista.

Antes de seguir na lição que Angela Davis me ensinou, uma observação. Pessoas brancas precisamos urgentemente parar de reduzir racismo a um defeito moral. É verdade que existem pessoas racistas convictas, existem supremacistas, existem neonazistas. Mas a maior parte do racismo que nos habita o faz sem que a gente se dê conta, pelo menos, num primeiro momento. Quando digo que minha conclusão ali em cima seria racista, estou falando, principalmente, de uma forma de pensar e sentir (racionalidade e subjetividade) que universaliza a condição branca, e com isso, tanto apaga as experiências de pessoas racializadas quanto autoriza todo tipo de violência e violação praticadas contra elas. Essa forma de pensar/sentir é racista, e é preciso que se possa chamá-la pelo nome.

Seguindo meu raciocínio sem a ajuda de Angela Davis eu teria concluído que as prisões estadunidenses dos anos 1950 disciplinavam mulheres para serem mães e esposas. Com isso, eu também relegaria ao silêncio e ao esquecimento o fato de que as mesmas prisões disciplinavam as mulheres negras para serem empregadas domésticas. Ou seja, a oficina compulsória de corte e costura que submetia mulheres, brancas e negras apanhadas em alguma armadilha criminal não possuía o mesmo sentido para todas. É importante, como me ensinou Angela Davis, que se diga que as mulheres  disciplinadas pela prisão para serem donas de casa eram as mulheres brancas.

Contar a história dessa forma não é preciosismo, é uma maneira de deixar claro que, mesmo nas experiências de subalternidade e opressão, existem diferenças que precisam ser nomeadas, apontadas e analisadas, pois a universalização da condição branca produz um apagamento, no caso em questão, da condição a que eram submetidas mulheres negras encarceradas, cujos efeitos são muito perversos e duradouros. Quanto menos se fala que a prisão disciplinou mulheres negras para serem empregadas domésticas (agora imaginem quem eram/são suas empregadoras, vamos lá, não é difícil…), menos se conta a história da prisão como atualização de práticas escravagistas, e menos se enxergam as violências que trabalhadoras domésticas sofrem historicamente, do assédio moral ao estupro – para citar apenas algumas.

Contextos e diferenças nacionais à parte, quem lembra da resistência de vários setores da sociedade brasileira à Emenda Constitucional que ficou conhecida como “PEC das Domésticas”, em 2013? Pois bem, 2013. E ainda houve quem resistisse à ampliação de direitos trabalhistas para empregadas domésticas. É importante lembrar disso sempre que uma mulher branca falar que as mulheres conquistaram o mercado de trabalho ou o direito de trabalhar fora de casa no século 20.

 

Assim como me ensinou Angela
Davis, é preciso dizer que as
mulheres brancas, a partir de certo
momento, puderam sair dos seus
lares para trabalhar. Porque as
mulheres negras sempre
trabalharam fora de suas casas,
não raro, nas casas das mulheres
brancas, para que nós, então,
pudéssemos celebrar a conquista
do mercado de trabalho.

 

 

Conquista…?

Esse é o problema, percebem? Quando nos situamos nas relações raciais, fica difícil (ou impossível) falar de nós mesmas como centro da história. Mulheres brancas foram ao mercado de trabalho fora do âmbito doméstico porque deixaram em seus lugares, desempenhando aquele trabalho que não é visto como trabalho, gerações e gerações de mulheres negras, muitas em situação análoga à escravidão. É por isso que, se observarmos apenas a história das mulheres brancas, talvez nos encantemos com algo que se poderia chamar de “evolução do capitalismo”.

Mas é aprendendo com a história de mulheres negras que este encanto se revela tolo, ridículo, coisa de menina mimada. Angela Davis continua me ensinando sobre a prisão nos Estados Unidos: na primeira metade do século 20, a instituição que pretendia reformar mulheres brancas servia também ao propósito eugenista de retirar de circulação mulheres negras em idade reprodutiva. Bastava olhar para a duração das condenações impostas a mulheres negras para perceber. Mas é justamente esse olhar que quase sempre nos falta, a nós, mulheres brancas.

Quando Angela Davis me ensinou que eu devo perguntar sempre “quais mulheres?” ao ouvir qualquer discurso sobre “as mulheres”, ela o fez a partir do meu objeto de estudo que, há muitos anos, é a prisão. Mas é evidente que, em qualquer área do conhecimento ou de atuação militante em que uma mulher branca esteja inserida, haverá uma ou muitas mulheres negras ensinando o tanto que Angela Davis me ensinou, e até mais. No caso das mulheres brancas criminólogas, penalistas, sociólogas da violência e especialistas em segurança pública, a questão racial é incontornável, mas não apenas para ser genericamente apontada como efeito da seletividade do sistema de justiça criminal.

A questão racial precisa ser assumida como centro e inteligibilidade desse sistema de justiça. Em outras palavras, precisamos entender que as relações de poder específicas que nós estudamos – prisão, polícia, justiça etc – não podem ser lidas senão como racismo que produz encarceramento em massa e genocídio, e pelo racismo enquanto gramática do poder na nossa sociedade. Gramática esta que, se não temos condições de aprender a ler sozinhas (e não temos mesmo), não podemos reclamar da ausência de excelentes professoras. Basta ler as criminólogas, penalistas, sociólogas, especialistas em segurança pública e abolicionistas penais negras. Elas existem e são muitas. Obrigada, Angela (Ana Flauzina, Thula Pires, Juliana Borges, Renata Cruz, Andreza Delgado, Suzane Jardim…).

Aline Passos é doutoranda em Sociologia pela UFS, mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP, graduada em Direito também pela UFS. Professora de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia


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