O ópio e o real

O ópio e o real

Em Marx, a “abolição” da religião não poderia ser nunca um ato da vontade política de revolucionários.

 

“A religião é o ópio do povo.” Essa frase é, sem dúvida, uma das mais conhecidas entre as que integram os textos escritos por Marx quando este era um jovem intelectual, há pouco saído da universidade, colaborador e redator de periódicos democráticos radicais e que se iniciava no domínio das formulações comunistas então existentes.

O seu largo emprego como anátema contra todo tipo de crença ou manifestação religiosa – classificadas como alienação ou, pior, manipulação política visando conformar os dominados a diferentes formas de opressão política e/ou econômica – propiciou a aproximação entre a obra de Marx (pelo menos de um determinado tipo de apropriação desta) e a tradição jacobina e anticlerical, marcando, indelevelmente, as tensas relações entre marxistas e todos os que advogaram (ou advogam) uma confissão religiosa. É verdade que o predominante alinhamento político de praticamente todas as instituições religiosas com as classes socialmente dominantes corroborou para que aquelas fossem, de modo quase invariável, consideradas adversárias ideológicas do proletariado (como por diversas vezes assinalaram Marx e Engels), devendo ser combatidas sem trégua, salvo em situações excepcionais, exemplificadas na história mais recente das sociedades latino-americanas e também na da Itália no curso da Segunda Guerra Mundial.

No entanto, as interpretações mais estritamente jacobinas da formulação marxiana – apegadas a uma compreensão mais imediata da crença religiosa como mecanismo de dominação política – simplificam e transcendem as motivações explicitas do seu autor, em virtude da esquematização conceitual que as caracterizam, sobretudo por desconsiderarem as especificidades do universo intelectual e político alemão em que o jovem Marx se formara. Neste, a religião ocupava uma posição de singular importância na medida em que o seu enfrentamento era também o enfrentamento do estado prussiano, que aquela objetivamente legitimava, inclusive quando filosoficamente interpretada.

A famosa frase de Marx faz parte de um conjunto de sucintos comentários sobre a religião situados em um texto1? que tinha como objetivo maior criticar a concepção hegeliana do Estado e, em conseqüência, se contrapor às interpretações conservadoras de que esta era objeto, bem como às posições dos hegelianos de esquerda2?. Para ele, já um materialista convicto (um “materialista prático”, afirmaria mais tarde em A ideologia alemã), as posições da esquerda hegeliana eram idealistas e politicamente equívocas, pois ainda se concentravam principalmente na problemática da religião. Em sua opinião, a “crítica da religião” já havia sido realizada de forma razoavelmente satisfatória por Feuerbach em A essência do cristianismo, sendo necessário, naquele momento (início da década de quarenta do século 19), empreender a “crítica da política”. Como afirmaria: “o homem faz a religião; a religião não faz o homem. E a religião é de fato a autoconsciência e o sentimento de si do homem, que ou não se encontrou ainda ou voltou a perder-se”3?.

Dessa forma, para o jovem Marx, então profundamente marcado pela leitura da obra de Feuerbach, em sua condição de projeção imaginária – alienada – dos homens, a religião é uma resposta, na esfera da imaginação, à opressão vivida por eles. Opressão decorrente das limitações humanas perante a natureza, em particular a morte, mas também diante da ordem social e política, que, mesmo involuntariamente, os próprios homens criaram. É um reconhecimento das dificuldades dos homens de se sobreporem a forças que lhes são, aparentemente, não só muito poderosas como incontroláveis. Nesse sentido, a religião oscila entre ser um modo de mediação imaginária dos homens com o considerado extraordinário, a fim de buscar a concretização de seus interesses particulares, e ser também uma forma de conformismo diante de uma realidade superior ao poder da vontade desses homens.

Dada a sua condição de instrumento de conformação (e por conseqüência, de sujeição), a religião foi, então, metaforicamente caracterizada por Marx como um ópio, um mecanismo de alienação dos dominados.

Conforme assinalou Engels4, na ruptura com o neo-hegelianismo de esquerda – momento necessário para a formulação e o desenvolvimento de sua futura concepção das relações sociais e da história –, a influência de Feuerbach sobre Marx (bem como sobre outros jovens intelectuais alemães) foi decisiva, dado que por meio deste se configurava uma perspectiva materialista – ainda que dotada de certo empirismo ingênuo – que possibilitava somar decisivamente a crítica da religião à crítica do estado prussiano, retirando à problemática da consciência “dos céus para a terra”, fazendo com que a crítica da religião se transformasse na “premissa de toda a crítica”5, pois “o homem não é um ser abstrato, acocorado fora do mundo. O homem é o mundo do homem, o Estado, a sociedade”6. Por conseqüência, seriam as condições desse “mundo do homem” que deveriam ser objeto de transformação, uma vez que a partir dessas condições seria possível, aos homens, realizar a projeção imaginária da realidade em entes transcendentes, capazes de consolá-los diante das limitações impostas pela natureza.

Assim, romper com a religião seria romper com a passividade política. Seria sacudir dos ombros o peso da opressão que conformava os subalternos e dominados à sua submissão e dominação. Isso faz com que o veemente chamado do jovem intelectual à reforma da consciência seja antes de tudo uma conclamação à luta política real, não imaginária: “A abolição da religião enquanto felicidade ilusória dos homens é exigência da sua felicidade real e o protesto contra a miséria real. O apelo para que abandonem as ilusões a respeito da sua condição é o apelo para abandonarem uma condição que precisa de ilusões. A crítica da religião é, pois, em germe a crítica do vale de lágrimas de que a religião é a auréola”.

Entretanto, o reconhecimento de elos entre religião e legitimação da ordem político-social e de que a religião seria uma alienação não significou a defesa da parte de Marx de quaisquer manifestações diretamente repressivas contra as instituições religiosas, por serem religiosas7. Nem tampouco a adoção de medidas políticas que visassem à eliminação das práticas religiosas. Para Marx, as transformações nas condições sociais de existência dos homens implicariam as transformações na consciência dos homens, o que produziria inevitavelmente efeitos sobre as crenças humanas. Assim, a religião não poderia ser nunca eliminada por um ato político arbitrário, apesar de toda a veemência da famosa frase. Sem que desaparecessem as condições objetivas que permitiam aos homens projetarem a sua essência em um objeto abstrato, a religião não poderia desaparecer. Portanto, sua “abolição” não poderia ser nunca um ato da vontade política de quaisquer revolucionários e toda ação neste sentido nada mais seria do que a expressão de uma vontade “dogmática” e também politicamente equivocada.

Mas o tratamento da religião como alienação, presente em suas “obras de juventude”, implicaria afirmar que em Marx as práticas religiosas somente foram pensadas como ideologia, entendendo esta última num sentido restrito, ou seja, o de falsa consciência, ilusão?

Nas obras de Marx, a temática da religião vai, a partir de A ideologia alemã e do Manifesto comunista, ocupar um espaço menor.

Podemos dizer que a religião (e, muito especialmente, os discursos teológicos) será circunscrita à esfera das ideologias, das formas de consciência social, sendo geralmente considerada manifestação de ilusão, devendo ser compreendida conforme os parâmetros analíticos das formulações do autor sobre o fetichismo da mercadoria, expostas no primeiro capítulo do Livro I de O capital.

Neste, na seção sobre o fetiche da mercadoria, Marx ironicamente menciona que a mercadoria é algo cheio “de sutilezas metafísicas e argúcias teológicas”, aproximando a sua análise de anos anteriores sobre a religião. Tal como esta, que teria nas relações sociais e condições de existência dos homens as suas origens e determinantes, a mercadoria seria “misteriosa simplesmente por encobrir as características sociais do próprio trabalho dos homens, apresentando-as como características materiais e propriedades sociais inerentes aos produtos do trabalho; por ocultar, portanto, a relação social entre os trabalhos individuais dos produtores e o trabalho total, ao refleti-la como relação social, existem à margem deles, entre os produtos do seu próprio trabalho”8.

De forma similar às relações entre os deuses e os homens, em que um produto dos homens – os deuses – assumiria uma autonomia que tornaria os seus criadores minúsculas criaturas, assim é na produção da mercadoria. Reencontramos, portanto, no Marx maduro de O capital, posições muito próximas daquelas da juventude, ainda que a categoria de alienação se faça explicitamente presente. O “fetichismo” da realidade ocupa o seu lugar: “Uma relação social definida, estabelecida entre os homens, assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Para encontrar um símile, temos de recorrer à região nebulosa da crença. Aí, os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, figuras autônomas que mantêm relações entre si e com os seres humanos. É o que ocorre com os produtos da mão humana, no mundo das mercadorias. Chamo a isso de fetichismo, que está sempre grudado aos produtos do trabalho, quando são gerados como mercadorias. É inseparável da produção de mercadorias”9.

Em menor escala, embora sem que isso signifique o estabelecimento de parâmetros analíticos distintos, as manifestações religiosas foram também analisadas como elementos constituintes de identidades sociais. De modo especial, em contextos de lutas de classe específicos, quando as identidades de classe se expressaram sob forma religiosa, podendo assim não ser um elemento de conformação à ordem, mas de insurgência. Exemplo típico será a análise de Engels sobre as lutas religiosas na Alemanha do século 16.

Conforme Kesse10, na visão de Marx, a religião não seria um erro, que pudesse ser eliminado sem maiores dificuldades, mas sim a expressão das dificuldades dos homens resultantes das condições objetivas de sua existência.

Na verdade, o esforço por empreender uma compreensão racional do mundo se constitui, para Marx e Engels, num ataque a tudo o que venha a ter a aura de sagrado (não necessitando ser propriamente algo institucionalmente religioso). A compreensão crítica do mundo se constitui em um processo de dessacralização da realidade. A superação da religião como forma de entendimento do mundo se articularia à produção de outras percepções da realidade, cujas bases se encontrariam, intelectualmente, em uma posição materialista filosoficamente mais sofisticada na qual não haveria necessidade de deuses, mas que implicaria também o reconhecimento de se verem os homens diante da “fatalidade” de estarem sozinhos num mundo que não poderiam transcender. Mas superar os deuses, sejam ídolos sagrados ou “deuses profanos”, como o mercado, sacralizado como o deus maior das sociedades capitalistas, as quais já não necessitam da presença de entes fantasmáticos para naturalizar as relações de classe nelas existentes, precisa a sociedade, nas palavras de Marx, “de uma base material ou de uma série de condições materiais de existência, que, por sua vez, só podem ser o resultado natural de um longo e penoso processo de desenvolvimento”11.?

Máximo Augusto Campos Masson
Bacharel em Ciências Sociais (UFRJ), mestre em Sociologia (UFRJ), doutor em Educação (UFRJ) e professor adjunto da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

 Notas
1 Hegel. Crítica da Filosofia do Direito. 
2 A problemática da religião chega a Marx por meio do debate promovido pelos jovens neo-hegelianos de esquerda que combatem as apropriações conservadoras do pensamento de Hegel e que por meio da religião legitimavam o autoritarismo do estado prussiano. Intelectuais como Strauss e Bruno Bauer investiram fortemente contra a religião. Marx, em artigos da Gazeta Renana, argumentaria que o estado moderno, em função de sua característica de universalidade, não poderia privilegiar uma única crença religiosa e, por sua racionalidade, deveria ser a realização da liberdade, não tendo a necessidade de dogmas para existir. Uma análise mais detalhada do universo intelectual da formação de Marx, encontra-se em Frederico (1995).
3 Marx, K. Manuscritos Econômicos-Filosóficos, p. 77.
4 “Ludwin Feuerbach y El Fin de la Filosofia Clássica Alemana” In Marx e Engels, Obras Escogidas.
5 Manuscritos Econômicos-Filosóficos, p. 76.
6 Manuscritos Econômicos-Filosóficos, p. 77.
7 Veja-se por exemplo as observações sobre a religião presentes, entre outros textos, no Manifesto Comunista, em que Marx e Engels reafirmam a posição de que mudanças ideológicas decorrem das transformações nas condições sociais de existência dos homens e não por atos políticos. Observando a presença da obra de Marx no contexto da sociologia da religião, Kesse, em Marx, Religion and Sociology of Religion, reafirma que Marx nunca advogou uma atitude ativamente repressiva contra as práticas religiosas.
8 Marx, K. O Capital, Livro I, volume 1, p. 81.
9 Marx, K. O Capital, Livro I, volume 1, p. 81.
10 Kesse, op. cit.
11 Marx, K. O Capital, Livro I, volume 1,
p.p. 88-89.

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