O Ney Matogrosso de Esmir Filho
O cineasta paulistano Esmir Filho tem 42 anos e quatro longas-metragens no currículo. O mais recente, Homem com H, é seu maior sucesso de crítica e público, que levou mais de 600 mil espectadores aos cinemas e, após ser disponibilizado pela Netflix, alcançou mais de 190 países.
Filho de um auditor com uma psicanalista, ele estudou no Colégio São Luís, na Avenida Paulista, e fez faculdade na FAAP. Sempre quis estudar cinema e o clique bateu depois de ter visto uma sala lotada numa sessão do filme Central Brasil, em 1998. Tapa na Pantera, curta-metragem de 2006, estrelado por Maria Alice Vergueiro, fez um tremendo sucesso no YouTube, numa época em que a plataforma ainda engatinhava.
Sua estreia na tela grande, com Os Famosos e os Duendes da Morte, ganhou prêmios, foi bem recebida pela crítica, mas naufragou nas bilheterias. Vieram, em seguida, programas e projetos para a TV, e os longas Alguma Coisa Assim (2017) e Verlust (2020), além da série Boca a Boca, da Netflix, também de 2020. Esmir recebeu o repórter Miguel Barbieri em sua produtora, no bairro de Moema, em São Paulo, para um bate-papo.
Seu filme de estreia, Os Famosos e os Duendes da Morte, de 2010, foi bem avaliado pela crítica, mas o público não compareceu em massa aos cinemas. Te causou frustração?
Eu gostaria que ele tivesse tido mais alcance. Entendi que talvez muitas pessoas não estivessem abertas a uma experiência cinematográfica como aquela, mas as que estavam falaram coisas lindas. Me lembro, por exemplo, de uma adolescente que disse que não tinha entendido nada, mas que tinha amado. Tinha gente que me abraçava chorando. Fui expandindo o público, mas sempre pensando mais no quão profundo consigo atingir alguém do que em quantas pessoas posso atingir. Era preciso abrir o diálogo, conversar para agregar mais gente nessa “conversa”.
Qual é o “seu” cinema?
Fazer cinema é conversar com as pessoas. É a forma que tenho para me comunicar. Não é escrevendo artigos, ou me expondo nas redes sociais. Através dos filmes, eu questiono, lanço perguntas. Sinto que estou “conversando” mais com o público, mas sempre com muito cuidado. Eu toco em questões profundas, balanço a emoção de quem está assistindo porque me interessa gerar emoção e tocar as pessoas.
Quais mudanças ocorreram na sua vida profissional e pessoal ao longo dos anos?
Fui me abrindo pra escutar o outro e percebendo o que isso pode agregar ao meu trabalho. Isso me instiga a fazer diferente e aprofundar o que crio. Tanto na vida pessoal quanto na profissional, fui ficando mais aberto a entender a resposta do público. Virei uma pessoa atenta às situações, a como as pessoas agem ou como elas se comportam publicamente.
Antes de Homem com H, você já tinha tido uma experiência com a Netflix com a série Boca a Boca, de 2020, durante a pandemia. Te chateou não ter uma segunda temporada?
Me frustrou por não ter continuidade. Foi um momento em que conversei com um público grande. A série teve um bom engajamento na internet e o público-alvo, de jovens adultos, se envolveu. Para uma série ter continuação, a Netflix faz um cálculo em que a média seria 7; Boca a Boca ficou com 6,8.
Senti que Boca a Boca previu a pandemia, mas você já tinha escrito muito tempo antes.
Eu gostei muito das análises e das relações que as pessoas fizeram com a pandemia do coronavírus, mas já tínhamos passado por outras epidemias. Fizemos estudos e muitas pesquisas, tanto sobre o HIV quanto sobre a tuberculose, e todas elas mostram como nossos comportamentos se repetem diante de uma pandemia. Achei que as pessoas iam associar ao HIV, mas veio a Covid-19 e isso se sobrepôs. Os fatores foram os mesmos: o medo; o preconceito; o isolamento; alguns corpos sendo privilegiados sobre outros; políticas públicas que favoreciam certos grupos… Isso vem do comportamento humano. Eu não previ nada, só olhei para o passado. Nós nos comportamos da mesma maneira e isso tende a se repetir.
Quanto tempo durou o projeto de Homem com H?
Foi um processo criativo de quatro anos. A Paris Filmes [umas das produtoras do filme] me convidou para escrever e dirigir o filme. Achei muito sensível da parte deles, porque se trata da biografia de uma pessoa a quem me sinto muito próximo em vários níveis. Eu ainda não tinha falado com Ney, mas passei a ler tudo a seu respeito. Li todas as biografias e escutei todos os discos e em ordem, do primeiro ao último. Eu relacionava coisas da minha vida e que eu tinha passado em épocas diferentes ao que lia, e percebia como sua história dialogava com a minha. Me interessava entender o que o artista vivia enquanto cantava e como havia sido sua evolução musical.
E como foi a recepção de Ney ao seu nome?
Ele foi muito generoso e disse que ficou feliz por eu ter sido escolhido para dirigir. Quando conversei com ele, falei do recorte que tinha me chamado atenção na primeira frase de seu livro de memórias, que trata da reação e do combate ao autoritarismo. Ele combateu um pai que representava uma figura autoritária, uma imagem de controle que quis colocá-lo em uma caixa, e que também se expressou em outras formas de controle: a aeronáutica, a repressão que sofreu nos Secos & Molhados, a imprensa, a ditadura e a própria epidemia de Aids, que tentaram reprimi-lo, fazendo ele aderir a um determinado comportamento. E ele combateu tudo isso para ser o homem que é.
Qual foi a participação dele?
Eu fico muito feliz pelo fato de que, quando dá entrevistas, Ney costuma dizer que tudo no filme é verdade: a verdade do sentimento, não necessariamente uma coisa que aconteceu exatamente igual. O roteiro teve doze versões e mais algumas para pequenas mudanças. Ele leu todas elas e deu detalhes preciosos e profundamente cênicos. Eram coisas importantes, como dizer que sua mãe, embora fosse carinhosa, nunca o beijou na testa.
Quanto tempo de filmagem?
Foi um filme que começou a ser filmado logo depois do Carnaval e terminou na Páscoa (de 2024). Durou uma quaresma.
Como foi a escolha do ator Jesuíta Barbosa para interpretar o Ney?
Jesuíta sempre esteve na minha cabeça. Ele e Ney exalavam o mesmo perfume, no sentido de mistério, da forma como eles se colocam no mundo, na exposição, na sexualidade. Eles sempre foram muito abertos e também muito reservados. Eu nem achava Jesuíta tão parecido, mas sabia que ali morava um Ney. Ney também aderiu à ideia depois de vê-lo na novela Pantanal. Antes de bater o martelo, fiz uma pesquisa de casting pelo Brasil inteiro, mas não teve jeito: Jesuíta chegou onde outros não chegaram. Ao mesmo tempo, foi muito bom ter feito testes porque eu consegui colocar em outros papéis atores que foram testados para interpretar Ney, como Jeff Lyrio, que faz o Gerson Conrad, do Secos & Molhados.
E como foi a preparação do Jesuíta?
Eu falei para o Jesuíta que iríamos construir o Ney na sala de ensaio, para ele não vir com trejeitos, nem nada. Só pedi que ele lesse as biografias, ouvisse as músicas e visse tudo a respeito de Ney na internet. Que ele “bebesse” Ney Matogrosso. Ele e Ney passaram uma tarde juntos e foi muito lindo. Eu ficava só observando os dois conversando sobre a vida. Foram cinco frentes de preparação para o personagem: ele iria viver as situações que Ney viveu; a dança; a prosódia, que é a forma como o Ney fala; o canto, porque ele precisava ter uma certa musculatura, por mais que fosse dublar; e a nutrição, porque ele precisava ter o corpo de Ney — ele perdeu doze quilos. A única música que eu deixei com a própria voz dele foi Rosa de Hiroshima porque sua interpretação foi linda.
O que você acha da discussão de que para interpretar um personagem gay precisa ser um ator gay?
Jullio Reis, que interpretou Cazuza, e Bruno Montaleone, que é Marco de Maria, não são gays, mas são pessoas muito abertas e fluídas. Acho importante Jesuíta ter a sexualidade fluída porque Ney também é assim, e esse é o tema do filme. O que vale para mim é o jogo de carne e química que esses atores héteros tiveram com o Jesuíta. Todos os personagens homens que se envolveram com o Ney têm todos os tipos de expressão de sexualidade. Eu entendo, por exemplo, a discussão sobre haver apenas um personagem gay em um filme e colocarem um ator hétero para fazer o papel, mas vamos assistir ao filme e ver o que esse ator fez.
O que você responderia para algumas pessoas que dizem que o filme tem muitas cenas de sexo gay?
Que é um filme sobre Ney Matogrosso! E eu fico feliz que Ney tenha sido uma licença para mostrar como dois homens se relacionam afetivamente. Talvez essas pessoas nunca teriam visto isso se não fosse pelo Ney. Se elas amam Ney dançando, falando… é importante saber o que Ney vive na intimidade. Não acho as cenas de sexo desnecessárias; pelo contrário, elas podem até abrir a cabeça das pessoas para que elas vejam que pode haver um relacionamento de amor e confiança entre dois homens. Ney é afrontoso, debochado, erótico, sensual e o filme precisava traduzir sua linguagem para o cinema.
Homem com H levou mais de 600 mil espectadores aos cinemas, estava fazendo sucesso e, de repente, entrou na Netflix e o circuito exibidor chiou. Por que foi tão rápido para o streaming?
Questões contratuais. Ele já era um licenciamento Netflix, mas deixamos isso em sigilo, justamente para as pessoas irem ao cinema. Mas eu acho muito bom que o filme tenha sido um veículo para a discussão da janela [o tempo que leva para um filme estrear no cinema e ser lançado no streaming].
Na Netflix, o filme pode ser visto em mais de 190 países, você tem recebido mensagem do exterior?
Muitas pessoas agradecem por poderem ver a história de um homem que elas não conheciam. A maioria vem da Itália, Turquia, Holanda, Argentina e Uruguai. Do Brasil, recebo muita mensagem de jovens que viraram fãs do Ney depois do filme.
Está recebendo muitos convites para projetos cinematográficos?
Muitos e de todos os tipos, de escrever roteiro e dirigir até dirigir um filme que já tem um roteiro. É difícil dizer o que virá primeiro. Estou escrevendo um projeto desde 2017 que se chama Indetectável, sobre dois personagens que vivem com HIV hoje. É um filme difícil de captar financiamento, provavelmente por preconceito. Muita gente acha que é filme de nicho, mas não é. Não existe um filme brasileiro que fale de alguém com HIV hoje, só na época em que matava gays.
Acredita que o cinema nacional está vivendo um grande momento?
As pessoas estão interessadas e consumindo. É muito legal aplaudir o cinema nacional e fazer disso uma bandeira. Mas só estamos vendo coisas boas hoje porque muitos projetos saíram do papel. Mesmo com essa euforia, faltam editais e incentivos. Ainda estamos vivendo as consequências de um desmonte bolsonarista.
Tem medo do que pode acontecer nas eleições de 2026?
Eu fico assustado, principalmente por causa da IA [inteligência artificial], porque já fomos vítimas de fake news nas eleições passadas. Agora, as armas estão muito mais afiadas. É preciso ficar atento e forte.
Miguel Barbieri é jornalista e crítico de cinema





