O negro, o drama e as tramas da masculinidade no Brasil

O negro, o drama e as tramas da masculinidade no Brasil
O racismo representa a negação da humanidade das pessoas negras; por isso, “o negro não é um homem” (Foto: Rony Hernandes)

 

“O homem negro não é um homem!”, afirmava-nos provocativamente o psiquiatra e ativista Frantz Fanon (1925-1961). Em seu diagnóstico da sociedade moderna – leia-se, colonial – o homem negro está imerso em uma série de contradições sociais (racializadas) que o impedem de ser plenamente reconhecido como “homem”. Em nossa sociedade, denuncia Fanon, quando se pensa “o homem” ou o “humano”, o negro não está incluído. O homem negro não é, portanto, humano… O homem negro não é um homem.

Esse jogo de palavras acima apresentado nos introduz a três grandes problemas nem sempre equacionados conjuntamente: 1. o machismo; 2. o racismo; 3. o lugar dos homens negros diante de ambos. Tendo em vista o primeiro aspecto, é válido mencionar a já extensivamente debatida sexização da linguagem nas sociedades ocidentais ao destinar à palavra “homem” o status de representante geral do gênero humano.

É verdade que em sua origem indo-europeia a palavra homem poderia remeter tanto a “homo” (humano) quanto a “humus” (chão ou terra), marcando a ideia de que os “homens” (seres humanos) seriam seres terrenos, em contraposição aos deuses (celestiais). Mas esse imaginário decidiu em algum momento que o homo (o homem), em seu contraponto progressivo à “natureza original”, seria o macho e este subsumisse a si as demais expressões sexuais – mesmo que a própria Terra, fonte de todo húmus existente, tenha continuado representada como um substantivo feminino. Assim, desde então no Ocidente, não apenas “o homem” é figurado como representante (i)legítimo de toda a humanidade, como também, à própria imagem e semelhança de Deus, invisibilizando as mulheres enquanto representação do humano. Se Deus é homem, os homens são deuses, e as mulheres, quando referidas, no máximo o segundo sexo, lembrando Simone de Beauvoir.

O segundo problema, muito bem descrito por Frantz Fanon, está relacionado ao racismo antinegro. O autor – que também toma a palavra “homem” como sinônimo de gênero humano – denuncia o caráter necropolítico das sociedades modernas. Para ele, negros e negras não são vistos como humanos porque o desenvolvimento moderno da noção de humanidade teve na Europa colonialista o seu apogeu. Diante dessa realidade, os povos colonizados não poderiam compor a “orquestra da humanidade” como sujeitos, exceto como instrumentos (objetos), via trabalho forçado e apropriação não reconhecida de suas contribuições societárias. O racismo, representa, assim, antes de qualquer coisa, a negação substancial – e não apenas linguística – da humanidade das pessoas negras; por isso, “o negro, não é um homem”.

O terceiro aspecto a ser considerado está no cruzamento dos dois problemas anteriores. Não cabe discutir aqui qual deles é mais importante ou determinante (se o machismo ou o racismo), mas sim reconhecer que eles se entrelaçam e se potencializam na sociedade capitalista, atravessando racialmente a experiência vivida das pessoas negras. Essa trama de relações foi denunciada, primeiramente, pelos movimentos de mulheres negras ao apontar para a composição histórica de um complexo de complexos sociais historicamente determinados, que nega duplamente a humanidade das mulheres negras – como mulher e como negra, conforme lembram Djamila Ribeiro e Grada Kilomba.

As perguntas que poderiam ser feitas a partir daí são: qual é o lugar dos homens negros nessa sociedade que, ao mesmo tempo, exalta os homens em detrimento das mulheres, mas inferioriza ou nega a humanidade das pessoas negras? Seriam os homens negros privilegiados ou desprivilegiados das relações de poder? Em que medida partilham das dores e das delícias previstas nos padrões hegemônicos de masculinidades? Para além disso, podemos pensá-los de forma homogênea?

Não há espaço aqui para tratar adequadamente de cada uma dessas questões mas, ainda assim, é válido dizer que está emergindo no Brasil, nas encruzilhadas dos estudos de gênero, raça e masculinidade, uma série de reflexões acadêmicas, políticas e culturais sobre masculinidades negras. Essa produção tem apontado para a existência de uma agenda que desafia as abordagens mais maniqueístas ao revelar algumas cisões, flexibilidades e câmbios dialéticos entre as polaridades vítima/algoz, sujeito/objeto, privilegiado/desprivilegiado.

É possível que em determinados momentos os homens negros gozem de quase todas as dores e delícias de qualquer homem em uma sociedade patriarcal, interiorizando, re-produzindo e externalizando determinados padrões hegemônicos de masculinidades. No entanto, e ao mesmo tempo, o racismo destina a esses homens um lugar muito particular – para não dizer, ambíguo – na divisão sexo-racial do trabalho na sociedade moderna, limitando quase sempre as possibilidades de corresponder plenamente a esses padrões.

Com vistas à história e ao presente do nosso país, poderíamos acrescentar ainda outras perguntas à nossa reflexão: quais seriam as chances, na escravidão, de um homem negro reagir à violência sexual impingida à sua companheira conjugal, por exemplo, já que ele e ela eram apenas propriedade de seus donos brancos? Como esses homens poderiam desempenhar os papéis – patriarcais, lembremos – de provedores em um país que saiu da escravidão não apenas sem indenizar os ex-escravizados, como que substituindo sua força de trabalho por outra estrangeira, negando-lhe, portanto, a possibilidade de ser um assalariado regular na sociedade de classes? Até que ponto se pode falar em “privilégio masculino” quando descobrimos que os homens negros estão abaixo até mesmo das mulheres negras no quesito mortalidade, encarceramento, violência urbana? Pode um homem negro “ser homem” e ser cobrado como tal em uma sociedade racista?

Essas perguntas não nos permitem isentar os homens negros de sua responsabilidade e eventuais privilégios enquanto homens em uma sociedade machista, mas considerar, antes de mais nada, que a permanência do colonialismo os lega uma série de estranhamentos que os impedem de corresponder integralmente às expectativas patriarcais de masculinidade.  

Ao mesmo tempo, a própria crítica à invisibilidade dos homens negros nos estudos mais gerais sobre masculinidade – fato explicado pelo racismo – nos provoca a pensar em quais outras invisibilidades o próprio termo “masculinidade negra” pode conter, uma vez que homens negros podem ser homens trans, cis, gays, bissexuais, ribeirinhos, classe média jovens, velhos, moradores de rua, universitários ou, simplesmente, “nem-nem”, mas a própria literatura presente no campo, por vezes, o generaliza como cis-hétero, sudestino e urbano da periferia.

Se as masculinidades (negras) são plurais, também o são as diversas abordagens e perspectivas teóricas a seu respeito. A produção no campo varia – não sem tensões e rupturas internas – entre perspectivas inspiradas no feminismo negro ao tomar as relações sexo/gênero como estruturais para entender o racismo, até perspectivas que invertem essa equação, argumentando pela centralidade do racismo para entender as relações de gênero nas sociedades marcadas pela colonização. Outros estudos buscam um meio-termo epistêmico que interseccione gênero e raça.

O ponto que não se pode mais ignorar é que o drama negro – ou o negro drama – legado pelo racismo e pelas tramas que marcam a procura de sua cura tem, nas relações de gênero (e classe), uma dimensão que também lhes diz respeito e que, felizmente, começa a ser problematizada e publicizada.

DEIVISON FAUSTINO é doutor em Sociologia e professor do Departamento de Saúde, Educação e Sociedade da Unifesp. É também integrante do Instituto AMMA Psique e Negritude e do Grupo Kilombagem


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