O nadador

O nadador
(Arte: @fsaraiva)

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Lá pelos idos dos anos 1980, eu vivia na zona leste, em São Paulo. Aos 12 anos, cursava o antigo primário. Adorava a escola e meu amigo de fé, Jurandir, três anos mais velho, inspirava-me à plena liberdade, vivida em aventuras cotidianas. Figura inesquecível, Jurandir havia nascido com uma deformidade congênita: tinha enormes calosidades nos tornozelos, pernas curtas desproporcionais ao tronco e traseiro proeminente, que lhe rendera o apelido de Zé Bundinha. No entanto, sua autoestima, coragem e alegria de viver davam-lhe a necessária força para ir em frente.

Certa manhã, Jurandir apareceu em casa anunciando que havia encontrado dando sopa por aí dois enormes pedaços de isopor. Combinamos de usá-los como boias naquela mesma tarde na Lagoa Azul, formada pelo córrego Jacu, afluente que serpenteava em direção à marginal do Tietê.

Escondendo das pessoas de casa minhas intenções aventureiras, coloquei um calção de banho entre o material escolar e, logo após as aulas terminarem, estávamos eu e o Jurandir a flutuar nas águas da Lagoa Azul, contemplando o céu e tendo o sol a nos queimar. Em um dado momento o rio começou a ficar turbulento, e o pavor tomou conta de mim. Gritei que queria sair dali e assim o fiz. Rindo bastante da minha covardia, Zé Bundinha continuou sua aventura fluvial, afastando-se pouco a pouco da minha visão.

Já em casa, por volta das 22h, sem ninguém saber o que havia se passado, sou surpreendido pela mãe do Jurandir, dona Joana, querendo saber notícias do filho. Até aquele momento ele ainda não havia chegado em casa. Meu coração disparou de medo. Como contar o que tínhamos feito naquela tarde? Disposto a enfrentar o que viesse pela frente, desembuchei. O desespero tomou conta de todos. Minha mãe não sabia se brigava comigo ou se chorava em solidariedade à mãe do Jurandir. Os três foram à delegacia, não sem antes eu ganhar de meu pai uns bons puxões de orelha e ouvir dele a promessa de, na volta, levar uma bela surra.

Lá pelas 3 da madrugada, bastante cansado, mas feliz da vida, Zé Bundinha chegou em casa, com o pedaço de isopor debaixo do braço. Foi recebido com espanto e alegria por dona Joana, e lhe contou tudo. Aos poucos o rio foi se alargando e a correnteza foi ficando cada vez mais forte. Demorou um bocado, mas ele, que nadava muito bem, conseguiu chegar a uma das margens, 20 quilômetros além de onde tínhamos entrado. Enquanto relatava sua odisseia, Zé Bundinha gargalhava e pulava como um fauno. À mãe não coube outra coisa senão se divertir também. A alegria de viver espanta os males. E cura tudo.

por Rogério César Sampaio


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