O estado selvagem e poroso da Vida

O estado selvagem e poroso da Vida
O poeta Gary Snyder (Foto: Radim Beznoska/EPA)

 

Celebrar os 90 anos desse poeta fundamental que é Gary Snyder é reverenciar uma voz e uma postura amorosamente crítica, que nos convida a um importante redimensionamento da nossa mente e da nossa história. O convite ao “mundo poroso” vai pra muito além de metáforas e é mesmo um chamado para que se experimente a floresta em todas as suas possibilidades. Rastejar com energia para encontrar um caminho por áreas de florestas degradadas; experimentar a busca e tornar tangível o encontro da paz e do sentido primitivo, raro, transcendental. Buscar. Ouvindo o barulho das folhas no chão, o rastejador, feito lontra, segue no rastro do urso de mensagens ancestrais. Baixar a guarda de nosso “orgulho de hominídeos”. Desviar da trilha convencional e segura. Embrenhar-se pela mata cerrada na lógica dos outros animais que habitam o espaço. Despojando-se do apego a ficar em pé é quanto se toca o orvalho. Viver na casa-floresta de imensidão original. Oikos. Na rede de seres interconectados em existência una. Ter um lar é pertencer e re-habitar.

Gratidão imensa ao Snyder pela obra magnífica, pelo chamado, pela coragem em “se posicionar contra o desequilíbrio e a ignorância do nosso tempo”. Conservar a porosidade, ter novos olhos, como ele nos ensina, é compreender o gesto e a energia verdadeira da Vida. Gasshô, querido Mestre e amigo. Budas dos três tempos e os tesouros do Dharma sempre em sua expressão.


Dois textos de Gary Snyder traduzidos por Luci Collin. “Vivendo ao ar livre” (1991) e “Rastejando” (1992) apareceram nos números 2 e 3 de Tree Rings, boletim informativo do Instituto da Bacia Hidrográfica do Yuba, USA.

O mundo poroso

Rastejando

Aos poucos e com dificuldade, eu avançava no cume de uma montanha, procurando um caminho por entre grossos troncos vermelho-vivo de manzanita madura, escolhendo a rota e progredindo com energia. Rastejando. Não caminhando ou passeando, nem perambulando, mas rastejando, firme e determinado, pela mata. Normalmente imaginamos uma incursão pelo mato como um exercício de se andar verticalmente. Nos vemos dando passadas vigorosas por um amplo terreno alpino – ou atravessando o sublime espaço de uma enseada de artemísias tridentadas – ou por um bosque de bordos sacarinos antigos e sombrios.

Mas não é tão fácil caminhar verticalmente pela elevação central de florestas da Sierra do fim do século 20. Há, usualmente, muitas áreas se recuperando de incêndios ou do desmatamento e o histórico de incêndios da Sierra indicaria que sempre houve áreas de campos de manzanita. Então, as pessoas tendem a permanecer nas antigas estradas de corte de madeira ou nas trilhas, e este é o modo de experimentarem a floresta. Os campos de manzanita e de lilases da Califórnia, ou o solo coberto de mato e os arbustos da floresta são deixados na paz selvagem.

Este rastejo aconteceu em fins de dezembro e, embora o céu estivesse claro e ensolarado, a temperatura era quase de congelar. Havia, pelo chão, pontos remanescentes de neve. Alguns do grupo estavam fora, em busca de recessos e linhas divisórias na área da Árvore do Urso, da “Comunidade da Floresta Inimim”, com um guarda florestal aposentado da Agência de Administração da Terra, um homem que tinha trabalhado com aquela terra há muitos anos e ainda se lembrava das buscas. Não há nenhum modo de avançar fora da trilha a não ser mergulhando: engatinhando com as mãos e joelhos na cobertura barulhenta de folhas de manzanita, e rastejando ao redor, por entre os troncos. Luvas de trabalho de couro, um chapéu bem ajustado, uma jaqueta jeans de manga comprida e velhas calças impermeáveis Filson compõem o equipamento adequado a um rastejador. Ao longo do cume há alguns caminhos e então abaixo surge um declive íngreme pelo mato; o jeito é escorregar de barriga na neve e nas folhas como uma lontra – você se torna flexível fazendo isto. E você vê os velhos tocos de árvores outrora cortadas, cercados por espessa manzanita, galhos resinosos ainda duros de antigas sinforinas, pinhas resistentes, alargamentos de estradas, tocos de árvores quadrúpedes abandonados, teias de velhos ramos e galhos e a recompensa periódica de um excremento de urso. Assim, com o rosto enfiado na neve, eu me deparei com o primeiro de muitos rastros de urso.

Mais tarde, alguém do nosso grupo nos pediu para que voltássemos um pouco: “Uma árvore de urso!” De fato, havia uma cavidade num grande e velho pinheiro, aberta depois de um incêndio ter deixado cicatrizes ali. Uma explícita toca de urso negro, com arranhões na casca da árvore. Para ir aonde ursos, cervos, guaxinins, raposas – todos os nossos outros vizinhos – vão, você tem que estar disposto a rastejar.

Assim nós começamos a superar nosso orgulho de hominídeos e aprendemos a sentir prazer em nos desviar da trilha e entrar diretamente na mata cerrada, para encontrar as formas e as criaturas da área inexplorada da mata. Não exatamente inexplorada, pois existe todo o universo de trilhas de pequenos animais que têm sua própria lógica. Você se abaixa, rasteja rapidamente, descobre uma passagem, fica em pé e anda alguns metros, e se abaixa de novo. O truque é não ter nenhum apego a ficar em pé; sinta seu corpo confortável no chão, seja um quadrúpede ou, se necessário, uma cobra. Com o rosto você toca o orvalho fresco de um jovem abeto. O aroma delicado de bolor de folhas e micélios sobe dos húmus tombados sob sua mão, e um boleto jovem semienterrado se revela. Você pode sentir os cogumelos de outono ao rastejar.

Começamos a fantasiar sobre as mais amplas possibilidades de rastejar. Poderíamos oferecer Oficinas de Rastejo Energético! E de autoestima – sem piada! A Carole disse: “Aprendi uma lição importante. Você pode atingir suas metas se estiver disposto a rastejar!”

Nem sempre é fácil, e você pode se perder. No inverno passado pegamos uma difícil via transversal através da mata, numa parte da terra bem acima do Desfiladeiro Yuba; e a coisa toda logo se transformou num rastejo sério. Nós entramos numa antiga manzanita, cada vez mais densa, que nos levou a rastejar num estilo kommando de lagarto, para alcançar os ramos inferiores. Se tornou um cume estranho e nada familiar, e eu não tinha a mínima ideia de onde poderíamos estar. Por centenas de metros, parecia, estávamos afundando, e então nos deparamos com um gigante Boletus edulis, um fungo muito fresco, sem vermes, o maior tesouro entre todos os boletos. Isso até coube na pequena mochila. E um pouco mais adiante a manzanita se abriu e lá estávamos nós! Era uma abertura debaixo duma velha cabana construída a meio caminho da área do Departamento de Administração da Terra, à margem do acampamento de ioga indiana, e logo encontramos a estrada de terra batida que nos conduziu à casa. Mais uma expedição vitoriosa pela vegetação rasteira.

Como os amplos espaços abertos vêm diminuindo ao nosso redor, talvez tenhamos que descobrir os encantos dos detalhes nas matas cerradas, e suas pequenas aranhas, cobras, carrapatos (cruz-credo!), passarinhos marrons, lagartos, ratos do campo, cogumelos e videiras de sumagres-venenosos. Este universo de pequenos excrementos e rastros minúsculos não é para todo mundo. Mas àqueles que são audaciosos, eu diria: arranjem luvas e uma jaqueta e um chapéu, saiam e explorem a Califórnia.

Vivendo ao ar livre

Podemos escolher um lugar para morar como se fôssemos um tipo de visita, ou tentar nos tornar habitantes mesmo. Desde o início minha família e eu decidimos tentar estar aqui, nas florestas da elevação central da Sierra Nevada, tão plenamente quanto pudéssemos. Esta tentativa corajosa foi sustentada pela falta de recursos e um pouco de fanfarrice. Imaginamos que a simplicidade seria, por si, bonita e tínhamos nossas próprias noções extravagantes de moralidade ecológica. Mas a necessidade foi a professora que finalmente nos mostrou de que modo viver como parte da comunidade natural.

Tudo se resume em como a pessoa encara grades, cercas ou cachorros, frequentemente usados para manter a vida selvagem à distância. (“Manter a vida selvagem à distância” soa como afastar falcões e ursos, mas é, mais comumente, uma questão de evitar formigas carregadeiras e ratos veadeiros). Passamos a levar uma vida permeável, porosa, em nossa casa construída entre os grupos de carvalhos e pinheiros. Nossas construções são totalmente expostas ao longo verão da Sierra. Vespas viajam dum lado pro outro, de dentro da casa até a margem da lagoa, como incansáveis caminhõezinhos de cimento, e derramam suas fundações em vigas, em rachaduras, e (se você está distraído) dentro do cano de um rifle e no bico do extintor-mochila. À medida que se deslocam, elas derramam pinguinhos de lama. Para os mosquitos, que nunca são um problema grave, a casa é simplesmente um outro lugar onde se pode desfrutar a sombra. À noite os morcegos colidem pelos quartos, entrando e saindo das claraboias abertas, e dão uns voos rasantes próximos à sua bochecha, e saem por uma porta corrediça aberta. Na escuridão da noite podemos ouvir os cervos se esticando para apanhar as folhas mais baixas das macieiras e, ao amanhecer, os perus selvagens estão passeando a alguns metros da cama.

O preço que pagamos é o esforço extra para guardar toda a comida da despensa em potes ou outros recipientes à prova de ratos. As roupas de cama de inverno vão para baús à prova de ratos. Então os esquilos terrestres vêm direto para dentro, em busca de frutas frescas na mesa, e os cervos entram no abrigo de sombra para lambiscar uma salada esquecida. Você é desafiado a manter o equilíbrio dos nervos à medida que leva uma porção de galinha à boca com quatro moscas varejeiras que seguem a carne a cada centímetro do trajeto. Às vezes (no final do verão) você tem que cozinhar e comer com as vespas amarelas vigiando cada movimento. Isto pode lhe deixar mal-humorado, mas há um tipo de trégua que normalmente é conquistada quando a pessoa deixa de perseguir e espantar as vespas e abelhas.

É bem verdade que, vivendo e cozinhando nos abrigos de sombra ao ar livre, ocasionalmente alguém é picado. É o preço que você deve pagar por morar no mundo poroso, mas é o pior que pode acontecer. Há um pequeno risco de mordida de cascavel quando caminhamos a passos largos ao redor das pequenas trilhas, e há a usual insociabilidade do carvalho venenoso. Mas se você conseguir se acostumar à vida numa região semiaberta, já é um grande modo de poder desfrutar a floresta.

Também é uma forma de preservação. Como as pessoas, cada vez mais, passam a habitar as margens e terrenos privados em reservas florestais, elas devem pensar cuidadosamente sobre como alterarão este “novo habitat antigo”. O número de pessoas que podem ser, de modo sensato, acomodadas na terra simplesmente não pode ser determinado ao se dizer quantos acres são necessários para uma única casa. Este tipo de planejamento é essencial desde já, e eu sou totalmente favorável a isto, mas nós temos que lembrar que estas práticas culturais de famílias, por si, já podem causar enormes diferenças em termos de impacto.

Estradas necessárias deveriam ser cuidadosamente traçadas e ter uma largura modesta, com desvio para ocasionais carros-pipa. Proteções contra fogo deveriam ser asseguradas através de estradas bem roçadas ao longo das bordas, com bastante desbaste até o caminho da mata, em vez de construir um leito de estrada excessivamente largo. Se as estradas forem um pouco acidentadas, isso reduzirá a velocidade dos carros, o que não é uma coisa de todo ruim. Se não houver nenhuma ou poucas cercas, se as pessoas não estiverem bombeando excessivamente seus poços para irrigar pasto ou pomares, se o número de cachorros for pequeno, se as casas forem bem isoladas e as temperaturas forem mantidas toleráveis no inverno, se não forem permitidos gatos selvagens, se uma atitude de aceitação for cultivada para o dano ocasional de “criaturas”, não causaremos quase nenhum impacto maior no ecossistema da floresta. Mas se houver muitas pessoas que odeiam insetos e coiotes, que se sentem perpetuamente incomodadas por cervos e que se põem histéricas em relação a ursos e pumas, lá se vai a comunidade.

É possível e desejável extrair a lenha com moderação, cortar algumas toras deliberadamente escolhidas, juntar bagas de manzanita para a sidra, buscar a olaia canadense para provisão de cestaria, e buscar quaisquer dos vários outros usos sutis e econômicos da floresta. Como desbastamos árvores novas, removemos a vegetação rasteira e recorremos experimentalmente à queimada ocasional prescrita, estamos até mesmo ajudando a floresta a seguir sua própria direção. Talvez ainda achemos modos para ir além da dicotomia do selvagem e do civilizado. Coiotes e corujinhas-orelhudas tornam a noite mágica; buzinas de caminhão de toras são um despertador para a madrugada.

A permeabilidade, a porosidade, funcionam em todos os caminhos. Quando você se liberta de seus pequenos aborrecimentos e ansiedades, lhe é permitido mover-se pela mata com novos olhos e ouvidos. Talvez seja isso que a grande filosofia budista de interconexão signifique quando fala de “coisas que se movem de um lado para outro sem se chocar”.

Sobre a tradutora
Luci Collin é poeta, romancista, tradutora e professora. Publicou mais de 20 livros, entre os quais: Querer falar (poesia, Finalista do Prêmio Oceanos 2015), A palavra algo (poesia, Prêmio Jabuti 2017), Papéis de Maria Dias (romance, 2018), Rosa que está (poesia, 2019) e Antologia poética 1984-2018 (2018). Participou de diversas antologias nacionais e internacionais (nos EUA, Alemanha, França, Bélgica, Uruguai, Argentina, Peru e México). Desde 1999 leciona Literaturas de Língua Inglesa e Tradução Literária na UFPR.


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